Política

Governo tem jogo duplo por reformas e coleciona críticas fora do ‘mercado’

Paulo Guedes ajuda a sabotar reforma tributária do Congresso. Na reforma administrativa, Bolsonaro teme servidores

Paulo Guedes e Jair Bolsonaro
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Diante da queda das bolsas de valores pelo mundo, a brasileira incluída, o ministro da Economia, Paulo Guedes, disse que era hora de o País aproveitar “essa crise” e convertê-la “em avanço das reformas”. Um dia antes, Jair Bolsonaro falara por telefone, desde os Estados Unidos, com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, sobre votar uma reforma administrativa e outra tributária.

Não é consenso entre economistas o receituário de Guedes e Bolsonaro para o Brasil crescer acima do 1% visto nos últimos três anos e para proteger-se dos impactos do coronavírus e do declínio do preço do petróleo. Analistas do “mercado” concordam com a rota neoliberal, mas fora desse círculo há descrença.

Mais: o governo jogar as fichas em mais reformas contraria os planos de Bolsonaro ao militarizar todo o Palácio do Planalto, em fevereiro. Forçará o Congresso a ser impopular em ano de eleições (reforma administrativa). E esbarra em uma sabotagem apoiada pelo próprio ministro Guedes (tributária).

“Parem com a ladainha das reformas”, “a ladainha dos economistas que dominam as manchetes”, tuitou a economista brasileira Monica de Bolle, pesquisadora do Instituto Peterson para Economia Internacional e diretora do Programa de Estudos Latino Americanos da Universidade Johns Hopkins, ambos nos EUA.

Para Monica, a crise requer uma “resposta imediata” via investimento público, sobretudo em obras de infraestrutura. Daí ser necessário, disse, abandonar o congelamento de 20 anos dessas despesas, aprovado em 2016.

“Vai piorar antes de melhorar”

Coisa parecida foi dita nesta segunda-feira 9, o de pânico nas bolsas, pelo francês Olivier Blanchard, economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI) de 2008 a 2015. Para ele, diante do coronavírus, os países precisam seguir dois caminhos. Um, óbvio, é controlar o avanço do vírus. O outro: “Prepare medidas fiscais”, ou seja, gasto governamental.

Ex-ministro de Dilma Rousseff, o economista Nelson Barbosa concorda ser preciso apelar ao gasto público, como diz no Twitter. Mas não que seja necessário abolir o congelamento de gastos, o conhecido “teto de gastos”. Por estarmos diante de um “choque”, afirma, haveria dispositivos na lei do “teto” a admitir aumento emergencial de despesas, uma saída mais rápida.

“Se não houver ação fiscal, é porque o governo não quis”, escreveu Barbosa. “Chegamos até ao absurdo de autoridades comemorarem que o governo contribuiu para o lento crescimento, reduzindo seus gastos com infraestrutura, saúde, educação.” E teorizou: “Vai piorar antes de melhorar. Enquanto o resto do mundo discute ações emergenciais de saúde pública e política econômica, por aqui ainda estamos presos em brincadeiras ideológicas de crianças no governo.”

Diante da divulgação de que a economia brasileira cresceu apenas 1,1% em 2019, o primeiro ano de Bolsonaro no poder, a equipe de Paulo Guedes arranjou um jeito maroto de festejar. Diz que um tal “PIB público caiu”, mas um tal “PIB privado” subiu. E isso seria bom. Crescemos pouco, mas crescemos bonito, era a mensagem. Agora, essa equipe prega mais reformas contra a crise global.

Na semana anterior ao pânico mundial nas bolsas, o “mercado” consultado pelo Banco Central (BC) na pesquisa Focus havia baixado para 1,99% a previsão de crescimento do PIB brasileiro este ano. Em janeiro e fevereiro, previa 2,3%. Esse “mercado” comunga da receita de Guedes e sua equipe sobre como proteger o Brasil da crise: reformas.

Sérgio Vale, da consultoria MB Associados, disse no Valor do dia 9: “O espaço para ampliar o investimento público é zero”. Na mesma reportagem, Marcos Lisboa, professor do Insper, escola de economia em São Paulo, afirmava: “O Brasil tem problemas estruturais e nossa economia vai continuar com um crescimento medíocre se não fizermos reformas estruturais”.

No caso da reforma tributária, há, sabotagem patronal com apoio do próprio ministro Guedes. E um resultado incerto no curto prazo. Já a administrativa esbarra na falta de convicção de Bolsonaro e em um aparente receio presidencial de enfrentar funcionários públicos, os principais alvos, os quais marcaram uma mobilização nacional para 18 de março.

A tributária começou a ser debatida dia 4 em uma comissão de deputados e senadores. O objetivo da proposta, nascida dentro do Congresso, é simplificar a cobrança de certos impostos, ao unificar alguns federais incidentes no consumo (IPI, Pis-Cofins) com o ICMS (estadual) e o ISS (municipal). Surgiria um imposto sobre valor agregado, batizado de IBS.

Ao pagar o IBS, uma firma poderia descontar o que já tiver sido recolhido por seus fornecedores. Bom para a indústria, que é quem mais tem capacidade de inovação e de puxar a economia e os salários de um país, e ruim para o setor de serviços. O imposto médio atual na indústria é de 17% e nos serviços, de 5%.

Um dos ideólogos do IBS, o economista Bernard Appy tem martelado: os mais pobres gastam 9% da renda com serviços e os mais ricos 31%. Por isso, baratear manufaturados e encarecer serviços ajudariam os de baixo, e quem paga são os de cima. É esse o motivo da sabotagem apoiada por Paulo Guedes.

Brasil 200

Na linha de frente do boicote, está uma associação patronal criada em 2018 para apoiar o campanha de Bolsonaro, a Brasil 200. Na entidade, há uns ricaços governistas: Luciano Hang, das lojas Havan, dono de fortuna estimada em 8,2 bilhões de reais; e Flavio Rocha, da Riachuelo, com 2,8 bilhões reais.

O grupo faz campanha na web contra a reforma. Espalha vídeos terroristas. Um é estrelado por Rocha. Segundo ele, “será o caos”, com explosão de sonegação. Outro traz Edgard Corona, da rede de academias Smart Fit. Quem frequenta academia decididamente tem grana: pobre exercita-se na obra, ao limpar a casa alheia, etc. Segundo Corona, seu setor será “dizimado”.

A Associação Comercial de São Paulo (ACSP) está na trincheira. Promoveu em 17 de fevereiro um protesto antirreforma. Rodrigo Maia saiu do sério. “Não vai ser na base da mentira, da chantagem e da agressão que vamos ceder e deixar de fazer o que é correto pelo Brasil”, tuitou. E seguiu: “Parte dos empresários está fazendo campanha contra” e “usam fake news para confundir a sociedade”.

Guedes está com os sabotadores. Almoçou em 3 de março com gente do Brasil 200 e de movimentos direitistas contrários à reforma em curso, caso do MBL. Como reivindicam os empresários antirreforma, o ministro prefere desonerar a folha de salários das firmas e, para compensar a perda de receita, ressuscitar a CPMF. Maia avisa: “Não vamos retomar CPMF na Câmara em hipótese nenhuma”.

Bolsonaro já demonstrou que não bota fé em mudanças no sistema tributário. “Após 28 anos [como deputado] na Câmara sem aprovar nada, eu digo que a melhor reforma é a que será aprovada”, disse em fevereiro, na Fiesp, a federação das indústrias paulistas. Acha também que ela deveria tratar apenas de impostos federais, uma forma de evitar brigas com os estados.

Em relação à reforma administrativa, a proposta de Guedes está há tempos com o presidente e toda semana alguém do governo diz que, na próxima, irá ao Congresso. Segundo CartaCapital apurou, Bolsonaro tem sido aconselhado pelo secretário de Governo, o general Luiz Eduardo Ramos, e pelo secretário-geral da Presidência, Jorge de Oliveira, a não enviá-la, para não brigar com os servidores.

Não é à toa que, desde janeiro, Bolsonaro tem dito que essa reforma só valerá para futuros funcionários. Para os atuais, não. “Tem que ser dessa maneira”, disse em 3 de janeiro. “Às vezes a equipe econômica tem algum problema de entendimento conosco porque eles veem números e a gente vê número e pessoas.”

Ao militarizar o Planalto às vésperas do Carnaval, Bolsonaro sinalizou que não pediria nada ao Congresso este ano, nenhuma reforma. Agora, com o cenário econômico adverso, tornou-se dependente dos parlamentares, diante da agenda do seu “posto Ipiranga”.

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