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Governo favorece grileiros e fecha os olhos para o faroeste amazônico

Até agosto de 2021, o Brasil registrou 103 mortes em disputas no campo, alta de 1.044% em relação ao período anterior

Foto: Raphael Alves / AFP
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Teve tiroteio e nossas crianças, mulheres e velhinhos ‘foram assustados’. Fomos atacados com armas pesadas.” O relato foi feito por Dario Kopenawa Yanomâmi poucos dias após garimpeiros atirarem em moradores da comunidade do Palimiu, em Alto Alegre, Roraima. Um vídeo registra os momentos em que crianças e mulheres correm para se proteger dos tiros, enquanto uma lancha passa em frente à aldeia no Rio Uraricoera. Foram dez dias seguidos de ataques.

A situação dramática dos yanomâmis faz parte dos dados sobre conflitos agrários recém-apresentados pela Comissão Pastoral da Terra, a indicar uma escalada­ da violência no campo sob o governo de Jair Bolsonaro. Segundo o relatório, foram registradas no País 103 mortes em consequência de conflitos por terra até agosto de 2021, aumento de 1.044% se comparado ao período anterior. Desses, 101 eram yanomâmis, incluindo 45 crianças.

Em apenas três anos, o ex-capitão superou a macabra marca do governo de Michel Temer, que terminou com 188 sem-terra, quilombolas, lideranças sociais e indígenas mortos. Com Bolsonaro, foram 222 óbitos de janeiro de 2019 até agosto deste ano, o maior número de vítimas da década, revela um cruzamento de dados feito por CartaCapital. Seis dos dez estados onde foram registrados os homicídios estão na Amazônia Legal. O número de sem-terra assassinados triplicou em comparação a 2020. Dos seis, cinco eram integrantes da Liga dos Camponeses Pobres de Rondônia. E foram mortos em ações policiais, incluindo o Batalhão de Operações Especiais, Bope.

Bolsonaro superou a macabra marca de Temer

No relatório da comissão, o governo federal figura como um dos principais causadores de conflitos fundiários no Brasil, atrás apenas de fazendeiros e empresários. “Quando o próprio governo estimula a invasão de garimpeiros e madeireiros, os criminosos se sentem à vontade para atacar os territórios protegidos. Isso tudo gera violência”, diz Ronilson Costa, membro da coordenação nacional da CPT. Ele chama atenção para a criminalização dos movimentos sociais e o impacto causado por projetos de lei que tramitam no Congresso, com o objetivo de facilitar invasões e regularizar crimes ambientais, a exemplo da proposta que libera o garimpo em terras indígenas (PL 191/20), da Medida Provisória da Grilagem (910/19), do projeto do “Marco Temporal” (490) e o que libera a caça esportiva no Brasil (5544/20), esse último com o lobby do setor de armas.

Em meio aos “tratoraços” no Parlamento, há também o sucateamento de órgãos de fiscalização e combate aos crimes ambientais, como o ICMBio e o Ibama. Parte de suas prerrogativas passou para o Conselho Nacional da Amazônia Legal, presidido pelo general e vice-presidente da República Hamilton Mourão, que aposta na militarização da floresta para combater desmatamentos. Apesar do aumento de 178% em investimentos nas operações de Garantia da Lei e da Ordem, o desmatamento aumentou e bateu o recorde dos últimos 15 anos, segundo o Inpe.

Outro exemplo de o governo atuar como gerador de conflitos ocorreu em 8 de ­dezembro, quando o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, de Damares Alves, tentou incluir pecuaristas e garimpeiros como Povos e Comunidades Tradicionais. O conselho nega que o objetivo seja incluir os profissionais na lista e afirma que foi criado um grupo de trabalho para estabelecer critérios de reconhecimento de povos tradicionais. Em nota de repúdio divulgada nas redes sociais, o coletivo Maré Socioambiental classifica a tentativa como “insulto histórico” aos povos tradicionais e alerta para o aumento de conflitos e destruição socioambientais que a medida traria.

Até agosto de 2021, o Brasil registrou 103 mortes em disputas no campo, alta de 1.044% em relação ao período anterior

Vale mencionar que o armamento de civis pelo governo contribui para a violência no campo, levando à revisão de estratégias de ocupação por trabalhadores sem-terra e povos tradicionais. Há registros de verdadeiras milícias atuando no campo. Em julho, famílias sem-terra do assentamento Fábio Henrique, em Prado, no interior da Bahia, foram atacadas por cerca de 20 homens encapuzados e fortemente armados. Além de fazer os trabalhadores reféns, os criminosos atearam fogo em ônibus, carros e depredaram casas da agrovila.

O garimpo ilegal também figura no relatório da CPT como um dos causadores de conflitos, com destaque para a Terra Indígena Yanomâmi em Roraima e no Amazonas, conhecida como a “Nova Serra Pelada”. São 20 mil garimpeiros dentro do território e 2,4 mil hectares foram destruídos até março, segundo relatório da Hutukara Associação Yanomâmi. “Por trás, tem muitas autoridades apoiando garimpos ilegais nas terras indígenas. Governo brasileiro envolvido, cooperativo internacional envolvido”, afirmou Davi Kopenawa, ao relatar a situação de seu povo em uma live com Sônia Guajajara, da Associação Nacional dos Povos Indígenas do Brasil. “Vivemos uma epidemia de garimpo. Imagine se eles garimparem na sua casa? O governo brasileiro vai gostar de tomar água suja?”

Desde 2018, investigações apontam a presença de organizações criminosas ligadas ao tráfico de armas e drogas nos garimpos, o que explica o aumento do poderio bélico dos invasores, incluindo a aquisição de aeronaves. Em agosto, uma operação conjunta da Polícia Federal, do Ibama, da Polícia Rodoviária Federal e do Exército apreendeu seis helicópteros descaracterizados, 10 mil litros de combustível e munições em áreas de mineração ilegal na Terra Indígena Yanomâmi.

O que fazem esses senhores na floresta?

Não bastasse, o relatório da CPT aponta aumento de 119% nos casos de grilagem em comparação com 2020. Mais de 27,2 mil famílias foram prejudicadas. O coordenador da comissão explica como o ciclo da grilagem, com “desmatamento, fogo e gado”, avança nos estados do Norte: “Esse modelo colonial de produção é muito predatório. Ele se sustenta na abertura de novas áreas: tira a madeira, depois taca fogo, aí vem o gado, expandindo os limites da área ocupada. Depois do gado, vem a plantação de soja, eucalipto, dendê. Falam até de plantar cana na Amazônia”.

Os grileiros conseguem “regularizar” a propriedade das terras públicas por meio do Cadastro Ambiental Rural (CAR), um dos instrumentos disponibilizados pelo governo para acelerar a regularização fundiária e feito de forma autodeclaratória. Dados do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia mostram que, até o fim de 2020, ao menos 18,6 milhões de hectares de florestas foram declarados ilegalmente como imóvel rural. Embora o CAR não comprove oficialmente a titularidade da terra, ele facilita a tomada de investimentos para desmatar a área, uma vez que a atividade tem um custo elevado. O Ipam estima que a grilagem de terras movimenta 215 milhões de reais por ano apenas para a derrubada de árvores.

O governo aumentou o investimento nas GLOs em 178%. Mas o desmatamento na Amazônia é o maior dos últimos 15 anos

Outra medida que acendeu o alerta foi a criação de um novo território de expansão agrícola, conhecido como Complexo Geoeconômico e Social do Matopiba – acrônimo de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. O Projeto de Lei Complementar 246/20, de autoria do deputado Pastor Gil, do PL, expande a área agrícola em trechos remanescentes do Cerrado para o cultivo de soja, milho e algodão. O parlamentar afirma que a nova fronteira vai gerar desenvolvimento e reduzir as desigualdades na região, proposta encampada pelo agronegócio. Sua justificativa é, porém, questionada por especialistas, que alegam justamente o contrário: a expansão vai promover o aumento da especulação imobiliária, ampliar a grilagem, o desmatamento e, consequentemente, agravar os conflitos com povos tradicionais.

“Isso é política desenvolvimentista, que agrada ao mercado de commodities, à política mundial de transações e gera uma imensa especulação imobiliária, que vai agravar ainda mais a violência e a expulsão de povos de seus territórios tradicionalmente ocupados”, argumenta Rafael Silva, advogado da CPT no Maranhão, um dos recordistas em assassinatos no campo, com nove mortes em 2021.

Além da expansão das fronteiras agrícolas do Matopiba, os coordenadores da comissão elencam como motivos para o recorde de mortos no Maranhão a “política de extermínio” do governo federal, que paralisou as demarcações, mas também o perfil “desenvolvimentista” do governo do estado, a “apostar em grandes projetos, acreditando que esse modelo predatório será capaz de superar as desigualdades sociais”. Silva cita como exemplo a instalação de linhas de transmissão pela empresa Equatorial Energia dentro do território Akroa Gamella, autorizada pelo governo do Estado e que culminou na prisão de 16 indígenas, incluindo uma lactante, em 18 de novembro, durante uma operação policial classificada como ilegal pelo Conselho Indigenista Missionário.

Fonte: “Conflitos no Campo”, Comissão Pastoral da Terra

De acordo com o advogado, que presta assessoria judicial ao povo Akroa Gamella, a Secretaria Estadual de Meio Ambiente concedeu licença ambiental para a instalação na terra que se encontra em processo de demarcação e sem consultar o povo, desrespeitando, portanto, o artigo 169 da Organização Internacional do Trabalho. Com isso, a Equatorial deu início à instalação do “linhão”, mas foi impedida pelos moradores. No dia seguinte, apareceram dois policiais à paisana, sem mandado judicial e em um carro particular, para tentar realizar a operação. Acabaram desarmados pelos indígenas. Naquela mesma tarde, viaturas da PM entraram na comunidade com mandados de busca e apreensão, fazendo uso de bombas de efeito moral e prenderam os indígenas. “Houve posição política do governo do estado e criminalização dos Gamella.”

Os conflitos na região vêm desde 2014, quando teve início o processo de retomada de suas terras, onde estão desde o século XVIII. O ápice da violência foi em 2017, quando 200 invasores os atacaram, decepando as mãos de dois indígenas com facão. Desde então, eles estão no Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas.

Em nota, a Equatorial afirmou que as obras estão paradas e que obteve as licenças ambientais conforme legislação vigente. A empresa informou não ter contratado forças policiais e que é rotina, em obras dessa natureza, a contratação de empresa de segurança patrimonial desarmada para resguardar os equipamentos. A empresa alega que os funcionários enviados com objetivo de entender o pleito da comunidade teriam sido feitos reféns, o que motivou a chamada dos militares. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1188 DE CARTACAPITAL, EM 16 DE DEZEMBRO DE 2021.

CRÉDITOS DA PÁGINA: MAURO PIMENTEL/AFP E ANDRESSA ANHOLETE/GETTY IMAGES/AFP – ISTOCKPHOTO E ESTEVÃO RAFAEL/CCOM/EB

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