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Gol da virada

Alvo do regime, o atacante Reinaldo está prestes a ser anistiado

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Comemoração “subversiva”, segundo o SNI – Imagem: Redes Sociais/Clube Atlético Mineiro
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Um dos maiores atacantes da história do Atlético Mineiro e do futebol brasileiro, Reinaldo está prestes a se tornar o primeiro atleta anistiado pelo Estado por conta da perseguição sofrida durante a ditadura. Na terça-feira 2 de dezembro, a Comissão Nacional de Anistia vai julgar o pedido de reparação do ex-atacante, caso inédito e atípico se comparado às mais de 8 mil solicitações desde o início dos trabalhos, duas­ décadas atrás. Chamado de Rei pela torcida do Galo, Reinaldo entrou na mira dos militares após adotar uma comemoração “subversiva”, o punho cerrado nos moldes dos Panteras Negras, movimento dos Estados Unidos que propunha um combate sem tréguas ao racismo. O gesto, no caso de Reinaldo, era uma crítica ao regime de exceção que não passou despercebida pelos gabinetes de Brasília, pelas casernas e pelos porões.

A implicância militar aumentou depois de uma entrevista do jogador ao jornal ­Movimento, de oposição ao regime, com duras críticas à ditadura, em defesa da democracia e apoio às eleições diretas. A partir daí, o Serviço Nacional de Inteligência passou a monitorar o atacante, segundo a historiadora Crystyna Loren Teixeira em sua pesquisa de conclusão de curso. “O Rei tinha razão, havia algo sendo produzido com seu nome dentro dessas ‘forças ocultas’, como escolheu nomear, que o prejudicou, mesmo que de forma velada”, afirma a pesquisadora. Loren encontrou no Arquivo Nacional relatórios produzidos pelo SNI a partir de recortes de jornais da época, nos quais Reinaldo aparece se manifestando contra a ditadura, que o classificava como uma “ameaça ao governo vigente”.

O centroavante era intimidado em todas as partes, dentro e fora de campo, e chegou a ser pressionado pelo ditador Ernesto Geisel. “Na despedida da Seleção Brasileira para ir à Copa do Mundo da Argentina, em 1978, nós fizemos um jogo em Porto Alegre. Depois da partida, teve aquele protocolo de falar com o presidente da Junta Militar, lá no Palácio Piratini. O ministro de Educação da época, Ney Braga, falou: ‘Olha, o presidente Geisel quer te conhecer’ e me levou até ele. Lá, com aquela farda do Exército, ele falou: ‘Ó, menino, você joga bola muito bem, mas não fale de política, deixa que a gente faz política’. E aquilo me abalou muito, por causa daquela atmosfera, aquele clima que existia”, relembra Reinaldo. “Um general, um presidente, falando isso com um garoto, eu tinha 20 anos, é muita pressão. Isso, de alguma forma, tirou um pouco da minha concentração.”

Na Copa de 1978, suas posições políticas custaram a titularidade na Seleção

Não bastasse o recado de Geisel, no percurso até Buenos Aires rumo ao Mundial, o então coronel André Richer, integrante da comissão técnica da Seleção, sentou-se ao lado de Reinado e foi claro. “Ele falou ‘olha, você vai jogar a Copa do Mundo e, se fizer o gol, não faça aquele gesto’, se referindo ao punho cerrado”, diz o ex-jogador. Mal chegou na Argentina, Reinaldo ainda recebeu no hotel onde estava concentrado um envelope, segundo ele, da Operação Condor. “Quando cheguei no apartamento, pouco tempo depois batem à porta e me entregam um envelope da Venezuela, na época trazendo um relatório da Operação Condor e de militares da América. Na hora que vi aquilo, eu já estava um pouco perturbado, incomodado com aquela pressão do Geisel, coloquei o envelope debaixo da cama, e assim eu passei a Copa do Mundo.” O documento, recorda, citava algumas das mortes descritas como acidentais ocorridas na ditadura, entre elas a do ex-presidente Juscelino ­Kubitschek, cujas versões são contestadas.

“A pressão foi tanta que, quando eu faço o primeiro gol na Copa do Mundo, Brasil e Suécia, no primeiro momento eu abro os braços na comemoração, meio retraído, e, só depois que eu falei ‘ah, vou fazer o gesto’, aí, levantei o braço de punho cerrado.” A resposta foi imediata. A partir do segundo jogo, Reinaldo perdeu a titularidade e ficou no banco de reservas, só voltou a jogar na disputa do terceiro lugar. “Era para eu estar na Copa tranquilo, mais focado no futebol, e acabei pressionado pela alta cúpula militar.” Mesmo com a abertura política, o atacante ex-Galo continuou preterido. Participou das eliminatórias da Copa de 1982, mas foi cortado e ficou de fora do Mundial. Um dos mais importantes comentaristas esportivos do País, o jornalista Juca Kfouri relembra o ocorrido. “Reinaldo foi um gênio na grande área e, infelizmente, não pôde jogar a Copa de 1982, como sonhava o técnico ­Telê Santana. Ele era a cereja que faltou no bolo para formar um quarteto inigualável com Falcão, Sócrates e Zico. Sempre teve a coragem, também, de mostrar seu inconformismo com a ditadura.”

Reinaldo continuou como centroavante do Atlético Mineiro até 1985, clube pelo qual jogou 475 partidas e marcou 255 gols, que fazem dele o maior artilheiro do clube até o momento. Despois de deixar o Galo, vestiu a camisa do Palmeiras, Rio Negro e Cruzeiro, além de ter passado pelo BK ­Hacken, da Suécia, e pelo Telstar, da Holanda, onde se aposentou em 1988. ­Atualmente é comentarista esportivo e relações públicas do Atlético Mineiro. Para Ana Oliveira, presidente da Comissão Nacional de Anistia, é grande a probabilidade de o requerimento ser deferido pela relatora do caso, a conselheira Rita Sipahi. “Pelo que a gente viu dos autos, há realmente indícios, e a relatora está analisando esses dados, de que realmente ele foi preterido por conta da sua posição política.” •

Publicado na edição n° 1390 de CartaCapital, em 03 de dezembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Gol da virada’

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