Política

Genocídio banhado a ouro

Bem estruturado e fartamente financiado, o garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomâmi teve alta explosiva nos governos Temer e Bolsonaro

Imagem: Bruno Kelly/Amazônia Real
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“Vai demorar muito para a gente reestruturar as nossas comunidades. Os rios, principais fontes de alimentação que o povo Yanomâmi tem, os garimpeiros mataram. O impacto dessa destruição, o mercúrio que foi deixado na água, vai durar pelo menos 30, 40 anos para passar.” O diagnóstico é de Júnior Hekurari, presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomâmi, que se emociona ao falar da tragédia humanitária que se abateu sobre seu povo. Com a voz embargada, ele diz não saber como será a vida dos indígenas a partir de agora, uma vez que o modo de subsistência e a cultura desses povos foram destruídos pelo garimpo ilegal. “As comunidades estão sofrendo e a gente não sabe quando isso vai passar.  É difícil falar. Qual vida a gente vai garantir às comunidades? Ninguém sabe. Ainda não tem um levantamento dos danos causados ao nosso povo. São mais de 2 mil mortos e não chegamos a muitas comunidades.”

Hekurari tenta descrever, de forma superficial, a dimensão da destruição que o garimpo vem provocando ao longo do tempo, mas, principalmente, nos últimos quatro anos, quando o governo Bolsonaro foi conivente e, em vários momentos, até incentivou a exploração dos garimpeiros na Terra Indígena Yanomâmi, em Roraima, ávidos pelo ouro e a cassiterita presentes na região, minerais altamente lucrativos. A mineração ilegal em TIs é histórica, mas tem uma trajetória ascendente a partir de 2016, quando Michel Temer assume a Presidência da República. Essa expansão se potencializa muito na gestão Bolsonaro, a partir das relações com lobistas e garimpeiros não apenas do ex-presidente, mas também de seus ministros e assessores mais próximos. Segundo o relatório Yanomâmi sob Ataque, o garimpo na TI Yanomâmi cresceu 3.350% de 2016 a 2020.

A área degradada pela mineração cresceu 3.350% de 2016 a 2020, revela relatório

Em 2022, de acordo com um levantamento realizado pela Hutukara Associação Yanomâmi, o garimpo ilegal nessa TI cresceu 54%, acompanhado de uma devastação florestal sem precedentes, ultrapassando mais de 1,2 mil hectares só em 2018, aumento de mais de 300% se comparado ao ano anterior. “O garimpo se industrializou nos últimos dez anos. Entrou maquinário pesado, é muito dinheiro, cada máquina dessas custa 500 mil, até 1 milhão de reais. Os grandes empresários entraram no negócio. Estamos falando de uma rede que inclui grilagem, desmatamento, destruição de rios, crime organizado, facções criminosas que usam o garimpo para lavar dinheiro, como é o caso em Roraima. É um convite quase irresistível, é muito fácil você usar a fragilidade da cadeia do ouro para lavar dinheiro, além do ganho econômico imediato”, explica Maurício Ângelo, pesquisador e diretor do Observatório da Mineração.

Segundo Ângelo, ao menos metade do ouro exportado do Brasil é de origem ilegal e tem como principais destinos a Suíça, o Canadá e países da União Europeia. “Historicamente, o lobby mineral sempre foi muito próximo dos governos, seja ele qual for, independentemente de partido. Mas, nos últimos quatro anos, o lobby do garimpo esteve muitíssimo próximo de Bolsonaro, do vice Hamilton Mourão e do ministro Ricardo Salles. E a prova disso são as várias reuniões que esses lobistas participaram em Brasília, nos vários gabinetes do governo anterior”, ressalta o pesquisador, lembrando que muitas associações de garimpeiros usam brechas existentes nas regras impostas pela Agência Nacional da Mineração (ANM) para conseguir a liberação para explorar as terras indígenas.

O delegado Alexandre Saraiva usa o conceito de “omissão dolosa” para explicar a participação do governo Bolsonaro na crise humanitária – Imagem: TV Cultura

Dados publicados, em novembro de 2021, pela Amazon Watch e Articulação dos Povos Indígenas, conhecida pela sigla Apib, mostram que quase 2,5 mil requerimentos minerários ativos, envolvendo 570 empresas, estão sobrepostos a 261 áreas demarcadas, o equivalente a mais de 100 mil quilômetros de extensão, uma área superior à da Coreia do Sul. Os números fazem parte do relatório Cumplicidade na Destruição IV, a revelar ainda a relação das empresas que constam na ANM e financiam a corrida pelos recursos minerais nas TIs, entre elas a Vale, a Anglo American Níquel Brasil Ltda, a Minsur e outras (gráfico à pág. 17).

Essas mineradoras são bancadas por gigantes do mercado financeiro. Sediadas nos EUA, as gestoras Capital Group, BlackRock e Vanguard investiram 14,8 bilhões nas empresas com projetos que avançam sobre terras indígenas. Do Brasil, o fundo de pensão Previ aportou 7,4 bilhões de dólares e o Bradesco, quase 4,4 bilhões. O documento revela ainda que, em 2020, a área minerada no Brasil era de 206 mil hectares, quase sete vezes maior que a registrada em 1985, de 31 mil hectares.

O resgate ao povo Yanomâmi testa os limites da saúde indígena na floresta amazônica – Imagem: Michel Dantas/AFP

O resultado são os conflitos em torno das TIs na região, que têm como consequência a tragédia vivida pelos ­Yanomâmis. De acordo com o relatório Yanomâmi sob Ataque, em outubro de 2018 a área destruída pelo garimpo na TI era de cerca de 1,2 mil hectares, a maior parte dela próxima aos rios Uraricoera e Mucajaí, hoje praticamente mortos. De 2019 para cá, a área explorada pelos criminosos mais que dobrou e chegou a 3,27 mil hectares em dezembro de 2021. A ganância dos garimpeiros ganhou ainda mais força a partir do segundo semestre de 2020, com a disseminação da pandemia de Covid-19, alcançando o pico em 2021, mais mil hectares de área destruída.

Ex-superintendente da Polícia Federal no Amazonas, o delegado Alexandre Saraiva diz que a tragédia dos Yanomâmis pode ser a oportunidade para se fazer uma varredura, apontar os responsáveis e investigar os financiadores, começando pela desarticulação da logística dos criminosos, fechando o espaço aéreo e as vias fluviais, proposta que converge com as primeiras ações do governo Lula. “É o momento de passar um pente-fino em tudo. O governo Bolsonaro incentivou a tragédia dos Yanomâmis. No Direito Penal temos um artigo que diz o seguinte: quando um servidor público tem por dever evitar determinado resultado e, por omissão dolosa, não evita, é tratado como se autor do crime fosse e deve responder por ele. A tragédia ali não parece ser pequena, as aldeias são muito espalhadas, numa área imensa, é difícil ter a exata noção do tamanho do estrago.”

Em recente entrevista à Folha de S.Paulo, o governador de Roraima, Antonio Denarium, do PP, mesmo com todas as evidências do genocídio, eximiu os garimpeiros da responsabilidade, alegando que a desnutrição entre indígenas é “recorrente há 20 anos”. Bolsonarista raiz, defendeu a aculturação dos indígenas e a exploração comercial das TIs, sob o argumento de que Roraima é dona das terras mais ricas do mundo, por ter “a tabela periódica inteira”, uma espécie de sonho de consumo dos mercadores da mineração. As declarações do governador, que fez questão de adotar uma unidade monetária latina em seu sobrenome – no registro civil, ele se chama Antonio Olivério Garcia de Almeida –, causaram reação imediata dos movimentos indígenas. Mais de 60 organizações assinaram um documento que classifica a fala de ­Denarium como desumana e leviana.

O governador é acusado de facilitar a atuação dos garimpeiros, recorrendo, inclusive, a projetos de lei que proíbem a destruição de maquinários utilizados pelos criminosos. Para além de ter a tabela periódica inteira, Roraima é o estado mais bolsonarista do Brasil. Nas eleições de 2022, Bolsonaro obteve 76% dos votos, venceu em 14 dos 15 municípios. Perdeu apenas em Uiramutá, cidade cuja maioria da população é indígena.

Em resposta à crise humanitária em Roraima, na segunda-feira 30 o presidente Lula assinou um decreto adotando medidas para atender o estado de emergência em saúde pública no território ­Yanomâmi, instalado na semana anterior. O documento convoca os ministérios da Defesa, da Saúde, de Desenvolvimento Social e Assistência Social, Família e Combate à Fome e dos Povos Indígenas a atuarem no enfrentamento à crise humanitária vivenciada pelos indígenas daquela região. O documento determina ainda que o Comando da Aeronáutica crie uma Zona de Identificação de Defesa Aérea sobre o espaço aéreo que cobre todo o território Yanomâmi durante o período que durar o estado de emergência e adote medidas de controle do espaço aéreo contra tráfego de aeronaves suspeitas e ilegais.

O governo também investiga a exploração sexual e adoções ilegais de crianças indígenas, diz Ariel de Castro Alves

“Na criminologia se diz que uma das causas do crime é a ausência do guardião. Quando as pessoas percebem que o Estado não está olhando, o crime vai acontecer. O guardião não precisa ser um policial, pode ser uma câmera, um veículo na área, um satélite, o importante é que as pessoas tenham a percepção de que o Estado está olhando e, mais que isso, que essas ações não sejam vistas pelos criminosos como pontuais. Precisamos ter um protocolo de atuação permanente para aquela região”, defende Saraiva.

Ao contrário do ocorrido no governo Bolsonaro, quando garimpeiros e lobistas eram transportados em aviões da FAB, o decreto presidencial determina que o Ministério da Defesa atue no fornecimento de dados de inteligência e no transporte aéreo logístico das equipes da Polícia Federal, do Ibama e dos demais órgãos e entidades da administração pública federal que participarão diretamente na neutralização de aeronaves e de equipamentos relacionados à mineração ilegal no território indígena. Na quarta-feira 1º, a Aeronáutica deu início à Operação Escudo Yanomâmi, para desarticular a logística que abastece o garimpo, utilizando um radar de controle do tráfego aéreo. A operação foi dividida em três zonas, uma delas é a proibida, em que só estão autorizadas a trafegar aeronaves militares ou que fazem parte da operação. Na área restrita podem ­voar aeronaves que estão em contato com órgãos de controle e, na zona reservada, estão permitidos voos de acordo com as regras e orientações do tráfego aéreo.

“Não vai ter mais sobrevoo, nós vamos proibir as barcaças de transitar com combustível. Os Yanomâmis conquistaram aquela terra. Na verdade, já era deles antes de os portugueses entrarem aqui. Conseguiram a demarcação e nós precisamos dar a eles qualidade e condições de vida, porque do jeito que estão vivendo é uma coisa mais que desumana”, discursou Lula, na segunda-feira 30, diante do chanceler da Alemanha, Olaf Scholz. “O governo brasileiro vai tirar e acabar com o garimpo em qualquer terra indígena a partir de agora. Não haverá autorização para fazer pesquisa em qualquer área indígena.”

Aliado do garimpo, o governador Antônio Denarium gaba-se de ter “toda a tabela periódica” no rico solo de Roraima – Imagem: GOVRR

As medidas adotadas pelo governo para combater o garimpo e a repercussão mundial da tragédia dos Yanomâmis não foram suficientes para intimidar os criminosos. Segundo Hekurari, garimpeiros ­continuam agindo como se nada estivesse acontecendo. “Os caras não têm medo. Sabem que tem policiais, que tem o Exército, mas acham que não vão fazer nada com eles”, diz, ao lembrar da morte de duas crianças sugadas por uma draga dos garimpeiros. As mortes dos curumins foram denunciadas ao governo Bolsonaro, mas não houve sequer investigação efetiva.

Ariel de Castro Alves, secretário Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente do Ministério de Direitos Humanos e Cidadania, esteve em Roraima para acompanhar de perto a situação e apurar falhas nas políticas públicas de proteção aos indígenas. “Estamos verificando, além das causas da mortalidade infantil por motivos evitáveis nos últimos quatro anos, as situações de possíveis adoções ilegais de crianças indígenas, acolhimentos irregulares de crianças em abrigos, abusos sexuais e exploração sexual infantil, falhas no atendimento de saúde de gestantes indígenas, no atendimento de pediatria e de enfrentamento à desnutrição das crianças indígenas na primeira infância”, explica, acrescentando que as irregularidades envolvem os governos federal, estadual e municipal nos últimos quatro anos.

Acolhendo uma solicitação da Apib, o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, determinou que a Procuradoria-Geral da República, o Ministério Público Militar, o Ministério da Justiça e a Superintendência Regional da Polícia Federal em Roraima apurem se existiu crime de genocídio por parte do governo. Ele pede que seja investigado se houve desobediência e quebra de segredo de Justiça e de direitos ambientais por parte do governo passado que colocasse em risco a vida dos indígenas. Há relatos de que o ex-ministro da Justiça de Bolsonaro Anderson Torres – preso na Polícia Federal por ter contribuído com atos golpistas de 8 de janeiro – teria vazado informações sigilosas sobre operações que ocorreriam para combater o garimpo ilegal. Ele teria autorizado a publicação dos detalhes da operação no Diário Oficial, como a data e o local onde seria a ação, dando chance de reação por parte dos criminosos. Há indícios também de que uma operação que seria feita pela FAB chegou a ser alterada, facilitando a organização dos criminosos.

Na ação, Barroso afirma haver “um quadro de absoluta insegurança dos povos indígenas envolvidos, bem como a ocorrência de ação ou omissão, parcial ou total, por parte de autoridades federais, agravando tal situação”. Barroso determinou que o governo retire todos os garimpeiros não apenas da TI ­Yanomâmi, mas também de Karipuna, Uru-Eu-Wau-Wau, Kayapó, Arariboia, Mundurucu e Trincheira Bacajá. A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, anunciou que vai utilizar o Fundo Amazônia para ajudar no combate à crise humanitária na TI Yanomâmi. Na segunda 30, ela se reuniu com a ministra da Cooperação da Alemanha, Svenja Schulze, que anunciou o repasse de 200 milhões de euros (1,1 bilhão de reais) para o Brasil. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1245 DE CARTACAPITAL, EM 8 DE FEVEREIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Genocídio banhado a ouro”

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