Política

cadastre-se e leia

Fora de controle

Afastado da Rota por excesso de mortes, “Capitão Derrite” fecha os olhos para a violência policial e colhe letalidade recorde

Respaldo. Tarcísio de Freitas aplaude o secretário e desdenha das denúncias de violações aos direitos humanos – Imagem: Alex Fernandes/GOVSP
Apoie Siga-nos no

“Eu nem sabia que eram 56”, despistou Guilherme Derrite, secretário de Segurança Pública de São Paulo, ao ser indagado sobre o trágico saldo da Operação Verão, encerrada na segunda-feira 1º. A letalidade da PM disparou após a morte do policial Samuel Wesley Cosmo, abatido a tiros durante um patrulhamento de rotina em uma favela de palafitas de Santos, no Litoral Sul. No ano anterior, o assassinato de outro soldado da Rota, a tropa de elite da PM paulista, foi o estopim para a deflagração da Operação Escudo, encerrada depois de 40 dias e uma pilha de 45 corpos. Desde então, Derrite, ele próprio um ex-oficial da Rota, faz pouco caso dos relatos de torturas e execuções sumárias durante o revide policial na Baixada Santista. Não apenas ele, mas também o seu chefe, o governador Tarcísio de Freitas, do Republicanos. “Pode ir à ONU, à Liga da Justiça, ao raio que o parta, que não estou nem aí”, disse recentemente, ao ser indagado sobre casos denunciados pela Ouvidoria das Polícias e organizações da sociedade civil.

Perto de completar 40 anos, Derrite costuma repetir, em entrevistas para podcasts bolsonaristas, que se sente um homem realizado. Aos 18 anos, ingressou na Academia do Barro Branco, a escola de formação dos oficiais da PM paulista, para concretizar o “sonho de infância” de ser policial. No início da carreira, trabalhou no patrulhamento de Osasco, na Região Metropolitana de São Paulo, mas logo se candidatou para uma vaga na Rota. À época, disse a um ­youtuber, foi rejeitado por já ter duas mortes no currículo. A unidade passava por um processo de depuração, queria livrar-se da fama de agir com extrema violência. Com a ascensão do Coronel Telhada para o comando do batalhão, o que era uma desvantagem tornou-se um trunfo.

“Eu nem sabia que eram 56”, diz o secretário, ao comentar o elevado número de mortes na Operação Verão

Derrite tinha apenas 24 anos quando se uniu às fileiras da Rota. Quatro anos depois, foi removido da tropa por excesso de mortes em serviço, como ele próprio relatou a um canal no YouTube. “Tive muita ocorrência de troca de tiro, eu ia para cima. Quem vai para cima está sujeito. Troquei tiro várias vezes, uma atrás da outra e isso acabou incomodando. Não sei quem, mas veio a ordem de cima para baixo, questão política: ‘Tira o Derrite’. Fui convidado a me retirar.” Durante esses descontraídos bate-papos na internet, o atual secretário de Segurança Pública costumava se vangloriar das ações que resultavam na morte de suspeitos e perdia a paciência quando questionado se, em um ­eventual confronto com bandidos, atirava para matar ou só para imobilizar o suspeito. “Se ele está atirando para me matar, eu vou atirar na cabeça, no peito. Não vou atirar no joelho. Ó as pergunta…”

Afastado da Rota, Derrite serviu no Corpo de Bombeiros por cinco anos, até se eleger deputado federal em 2018, no embalo da onda bolsonarista. Na eleição seguinte, já filiado ao PL de Jair Bolsonaro, conseguiu dobrar a votação, obtendo 239.772 sufrágios. Na Câmara, fortaleceu a Bancada da Bala e apresentou projetos que buscavam dar mais poder à Polícia Militar. Em um deles, propôs que o comandante-geral da PM em cada estado seja escolhido pelos governadores a partir de uma lista tríplice elaborada pelos oficiais da corporação. Em outro, sugere delegar poderes investigativos à PM, hoje competência exclusiva da Polícia Civil. Nesse período, estreitou laços com o também deputado Eduardo Bolsonaro.

O filho Zero Dois do ex-presidente é, por sinal, o responsável pela indicação de Derrite para a Secretaria de Segurança Pública. Freitas, ex-ministro de Jair Bolsonaro, não titubeou em acatar a sugestão. No comando da pasta, o ex-capitão da Rota não tardou a demonstrar serviço. Cumprindo uma promessa de campanha do governador, parou de investir no programa de câmeras corporais nas fardas dos PMs, pioneira e exitosa iniciativa para reduzir a letalidade policial proposta por oficiais da própria corporação.

Retrocesso. O governador cumpriu a promessa de campanha e não deu continuidade ao programa de câmeras corporais, que fez as mortes por intervenção policial despencarem – Imagem: Rovena Rosa/ABR e Rodrigo Batista/PM/GOVSP

Lopo após a morte de Patrick Bastos Reis, soldado da Rota morto em julho de 2023 no Guarujá, deflagrou a Operação Escudo. Originalmente, o plano era prender os responsáveis pelo homicídio, mas logo ganhou escala, convertendo-se numa megaoperação contra o narcotráfico, que resultou em 958 prisões e quase 1 tonelada de drogas apreendida. A Defensoria Pública teve acesso a dados de 170 prisões e constatou que, em 90% dos casos, os suspeitos estavam desarmados. Somente um terço deles foi detido com alguma ­quantidade de entorpecentes. O que mais causou assombro, no entanto, foi o saldo de 45 mortos, mais de um por dia.

O resultado contribuiu para o expressivo aumento da letalidade policial verificada no ano passado em todo o estado de São Paulo. Ao todo, 333 suspeitos foram mortos em supostos confrontos com a PM em 2023, alta de 34% em relação ao ano anterior. Com o recrudescimento da violência, os policiais militares também ficam mais vulneráveis. No ano passo, nove deles morreram em serviço, em comparação com seis em 2022 e quatro em 2021.

Tanto na Operação Escudo quanto na recém-concluída Operação Verão, a Ouvidoria das Polícias coleciona relatos de torturas e execuções, mas os laudos da Polícia Científica não corroboram as denúncias. De acordo com defensores de direitos humanos, por duas razões. Primeiro, a descaracterização das cenas dos crimes. Quase sempre os suspeitos chegavam sem vida aos hospitais e, segundo testemunhas, já estavam mortos quando a polícia “prestou socorro”. Há, ainda, relatos de necrópsias realizadas na presença dos próprios policiais envolvidos na ocorrência.

A Ouvidoria das Polícias coleciona relatos de torturas e execuções sumárias na Baixada Santista

O ouvidor Cláudio Aparecido da Silva observa que, entre os suspeitos mortos no litoral, há pessoas com deficiência e até uma mulher chefe de família, que deixou 6 filhos pequenos. Além das graves violações aos direitos humanos que tem denunciado, ele ressalta o clima de terror provocado pelas operações policiais em comunidades pobres da região. “Estou vendo senhoras que moram há mais de 40 anos na Baixada Santista e, agora, colocaram suas casas à venda, porque não suportam mais o que está acontecendo. Estivadores do porto têm sido interpelados pela polícia de madrugada, indo para o trabalho. Até as marmitas deles são reviradas.”

Até mesmo oficiais da Polícia Militar ficaram incomodados e passaram a criticar, nos bastidores, a violência das operações. Em vez de recuar, Derrite dobrou a aposta e trocou mais da metade dos coronéis que ocupam postos no alto escalão da corporação. Para o advogado Almir Felitte, autor do livro História da Polícia no Brasil: Estado de Exceção Permanente? (Autonomia Literária, 2023), essa alteração representa uma politização inédita da força. “É importante observar que Derrite não apenas afastou os coronéis contrários ao excesso de mortes, como também promoveu os oficiais mais truculentos a cargos de comando”, diz. “No Congresso, ele seguiu à risca a cartilha da extrema-direita, defendendo a redução dos mecanismos de controle da atividade policial, uma agenda que tem ganhado força nos estados. No futuro, isso pode redundar numa grave crise de segurança. Imagine se esses policiais violentos resolverem se insubordinar. Quem será capaz de colocar freios?”

Confissão. O atual secretário diz que foi removido da Rota por “matar muito ladrão” – Imagem: Redes sociais

Diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno observa que a “instrumentalização política” da atividade policial pode trazer dividendos eleitorais, mas também representa um grande risco. “Parece que o mundo político ainda não entendeu o real significado disso”, lamenta. Há anos a pesquisadora estuda o perfil de “policiais influencers”, seara onde Derrite nada de braçada. Em 2016, ele já contava mais de 1 milhão de seguidores no Facebook.

Hoje, o secretário acumula quase 3 milhões na rede, outros 900 mil no Instagram e ainda mantém um canal no YouTube com cerca de 200 mil inscritos. “O secretário passa essa mensagem de ser quem ‘resolve a parada’, e acredito que tem grande chance de fisgar o público com esse discurso, porque também é carismático e muito afeito às aparições públicas”, diz. “Perceba que ele tem essa trajetória que suscita respeito e admiração entre seus pares. Mesmo sendo um capitão, ou seja, uma hierarquia mais baixa, chegou ao comando da Segurança Pública. Isso também causa incômodo nas altas patentes, é uma figura complexa.”

Carolina Ricardo, do Instituto Sou Da Paz, alerta para os impactos do discurso dos chefes de Estado sobre os policiais que atuam na ponta. “Vários estudos comprovam: é imediato. Se o governo tem uma postura mais moderada, a tendência é ter uma polícia mais pacífica. Se, ao contrário, ele avaliza a violência, automaticamente os policiais também se sentem autorizados a exceder o uso da força. Então é muito grave o que está acontecendo agora, porque temos um governador que diz ignorar se há denúncias de violações dos direitos humanos na ONU, por exemplo.”

Na Assembleia Legislativa, os deputados de oposição tentam colocar freios à atuação do secretário, mas ainda sem sucesso. Na última semana, ele apresentou um projeto para adiantar a aposentadoria de coronéis da PM. Segundo o deputado Carlos Giannazi, do PSOL, é um desdobramento da troca de comandos, mais uma tentativa de afastar quem pensa diferente. “A hora que esse projeto chegar, vamos fazer de tudo para barrá-lo. Mas isso demonstra claramente um projeto de segurança pública pautado na truculência. É o que estamos enfrentando agora no estado.” •

Publicado na edição n° 1305 de CartaCapital, em 10 de abril de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Fora de controle’

Leia essa matéria gratuitamente

Tenha acesso a conteúdos exclusivos, faça parte da newsletter gratuita de CartaCapital, salve suas matérias e artigos favoritos para ler quando quiser e leia esta matéria na integra. Cadastre-se!

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo