Política
Fogo cruzado
O desenho e o controle da Autoridade Climática opõem o PT e o grupo da ministra Marina Silva


Proposta ressuscitada em meio aos efeitos ambientais, sociais e de imagem provocados pelas queimadas criminosas, a criação da Autoridade Climática tem potencial para gerar mais problemas do que soluções ao presidente Lula. A ideia, transformada em promessa, reacendeu a disputa política entre setores do PT e o grupo liderado pela ministra Marina Silva, da Rede. O ponto central da discórdia continua a ser o mesmo que levou a proposta, aventada no período de transição, a ser abatida no nascedouro, antes da posse do petista: quem mandará no pedaço. Os petistas sugerem uma vinculação direta à Presidência da República, enquanto a ministra prefere uma autarquia subordinada à sua pasta.
Em Nova York, onde fez o tradicional discurso de abertura da Assembleia-Geral das Nações Unidas, Lula foi obrigado a adotar uma postura defensiva quanto aos incêndios e inundações que atingem o Brasil neste ano. O entendimento dos ministros mais próximos ao presidente é de que a imagem de liderança global ambiental que o País tenta forjar fica prejudicada com a divulgação quase diária, pela mídia internacional, das dificuldades em lidar com as emergências climáticas. Na percepção de Lula, se a Autoridade Climática estivesse de pé, tanto a preparação quanto a capacidade de reação do governo teriam sido mais efetivas nos últimos meses. “A gente não estava 100% preparado para cuidar dessas coisas. Até 90% das cidades estão despreparadas. São poucos os estados com Defesa Civil, bombeiros e brigadistas preparados. Quase ninguém tem”, lamentou Lula em reunião com os presidentes de Câmara, Senado e representantes do Judiciário antes do embarque para os Estados Unidos.
Lula ressuscitou a ideia, mas alas do governo divergem sobre o formato da autarquia
Criar o novo órgão é um propósito presidencial, mas, antes, Lula precisará arbitrar a disputa política interna. Rui Costa, ministro da Casa Civil, mostra-se reticente com a proposta do Ministério do Meio Ambiente. “No modelo que veio, a Autoridade Climática é uma autarquia subordinada ao ministro, como cargo de segundo escalão. Ou é autoridade ou é departamento. Eu não sei. Precisamos refletir e fazer mais perguntas. A discussão da estrutura não pode ser maior do que a discussão dos objetivos e do conteúdo”, afirmou Costa ao jornal O Globo. O chefe da Casa Civil, que afirma só ter recebido neste mês o primeiro documento da equipe de Marina Silva com o projeto devidamente formalizado, critica as sugestões de incluir a Defesa Civil e a Secretaria de Mudança do Clima na Autoridade Climática. “Não faz sentido”, afirmou.
As divergências em relação ao formato da Autoridade Climática surgiram na reta final dos trabalhos do GT de Meio Ambiente do grupo de transição. No início, Marina Silva defendia um órgão com mandato definido e independente do governo, nos moldes do Banco Central, com função de coordenar e fiscalizar as ações de adaptação ou combate às emergências climáticas de todos os ministérios. A maioria petista não concordou e uma segunda proposta foi apresentada, na qual a Autoridade Climática seria uma autarquia fora do Sistema Nacional de Meio Ambiente, mas ligada a alguma área do Executivo. Também não houve consenso, e o relatório deixou o modelo em aberto.
Seja com autonomia total em relação ao governo, seja ligação direta com a Presidência da República ou autarquia subordinada ao Meio Ambiente, a proposta brasileira não encontra similar em nenhuma das principais iniciativas vigentes no mundo. Caso mais conhecido, a autoridade climática dos Estados Unidos, personificada no ex-secretário de Estado John Kerry, tem seu trabalho basicamente concentrado na diplomacia e nas negociações globais, sem grande interferência nas discussões domésticas. No Reino Unido, a Agência de Meio Ambiente tem perfil oposto e mais parecido com o Ibama no Brasil, voltado à fiscalização e à concessão de licenças ambientais. A experiência mais antiga de autoridade climática nacional é de 2011 e vem da Austrália, onde o órgão é independente do governo, mas tem pouco poder de ação e limita-se ao aconselhamento técnico e à preparação de um relatório anual submetido ao Parlamento e ao Executivo. Entre as alternativas em vigor, a mais parecida com a proposta discutida aqui é a da Dinamarca, onde a autoridade climática é subordinada ao ministério da área ambiental e responsável pela definição e implementação de políticas públicas.
Em passagem pelo Rio de Janeiro, Marina Silva defendeu que o novo órgão seja subordinado à sua pasta e deu como exemplo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária. “A Anvisa é ligada ao Ministério da Saúde. Há várias outras instituições que estão ligadas aos seus respectivos ministérios. É assim que se constroem políticas públicas para além da sazonalidade da política eleitoral, com uma instituição que seja capaz de atravessar as alternâncias de poder.” A Autoridade Climática, argumenta a ministra, precisa ter uma natureza técnica e ser comandada “por um climatologista ou alguém de notório saber sobre as questões climáticas”. A ambientalista sugere ainda que a criação da Autoridade Climática venha acompanhada de um decreto presidencial de estado de emergência climática nos municípios brasileiros mais atingidos por incêndios, inundações e outros eventos extremos. “Algo que antecede a criação da Autoridade Climática é o estabelecimento da figura jurídica da emergência climática. É isso que vai ordenar todo o processo de criação da Autoridade, do Comitê Técnico-Científico e também dar suporte ao Plano Nacional de Enfrentamento aos Eventos Climáticos Extremos.”
Mãos atadas. Falta dinheiro para a fiscalização e as ações policiais de combate aos crimes ambientais – Imagem: Ibama/PF/AM e Tchélo Figueiredo/GOVMT
Segundo o climatologista Carlos Nobre, integrante do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), da ONU, o Comitê Técnico-Científico daria o apoio necessário à Autoridade Climática para mostrar todos os riscos em curso da emergência climática: “Vai ter de ser de fato uma autoridade que possa levar as políticas de redução das emissões em grande escala para todo o Brasil, todos os setores, e interagir com todos os ministérios, o Congresso, os governadores e prefeitos. É muito bom ter uma autoridade de grande poder político, mas baseado na melhor ciência climática”. Nobre, ressalte-se, é um forte candidato a ocupar o posto.
A ideia de um cientista à frente da autarquia é vista, porém, com desconfiança por setores do PT. “Falam que tem de ser um cientista. Mas no Executivo precisa ter gente da ação política. Pode ser o melhor cientista do mundo, mas, se não tiver trânsito, nada acontece. É assim em qualquer lugar, mesmo nas experiências com realidades e necessidades diferentes em outros países”, afirma o deputado federal Nilto Tatto. A Autoridade Climática, reforça o parlamentar, perderá força se for vinculada a um ministério específico. “Ela tem de articular, no governo como um todo, tudo aquilo que o Brasil se comprometeu e precisa fazer do ponto de vista do acordo da agenda global de mitigação das emissões.” Tatto cita um conjunto de ações espalhadas por diferentes setores do governo. “A principal estratégia está no Ministério da Fazenda, a agenda da transformação ecológica, que repensa todas as cadeias produtivas.”
Para o ambientalista Carlos Bocuhy, presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental, não bastará um sistema competente cientificamente para orientar o comando da Autoridade Climática. “Será necessária uma extraordinária capacidade de atuação interinstitucional para sacudir a zona de conforto e neutralização que se instalou com os conflitos de interesse econômico e a falta de vontade política.” O novo órgão, diz, deve ser um sistema de múltiplas partes, que potencialize sinergias setoriais e corrija a atual desarticulação institucional. Neste caso, é preciso identificar os conflitos e gargalos políticos. “A Amazônia é um exemplo dessa inviabilidade de governança em terreno de interesses conflitantes. Bastaria capacidade para implementar a lei da Política Nacional do Meio Ambiente estabelecida em 1981 e sacralizada na Constituição de 1988”, diz. Uma atuação climática bem-sucedida passará obrigatoriamente por construir e assegurar sua viabilidade política. “Essa capacidade foi esmorecida no esvaziamento federal e na leniência de órgãos públicos repletos de conflitos de interesses que inviabilizam a gestão técnica.”
A autoridade deveria ser chefiada por um cientista ou por alguém com trânsito político?
O problema, ressaltam experientes ambientalistas, é que não dá para, em um passe de mágica, isolar a dimensão política da discussão sobre a criação do novo órgão. “A Autoridade Climática no ministério vai adiantar muito pouco ou quase nada, porque a pasta não tem poder para enfrentar outras ligadas à degradação ambiental, como o é o caso de Minas e Energia, que apoia a exploração do petróleo na margem equatorial do Amazonas, ou dos Transportes, que defende o asfaltamento da BR-319, ou da Agricultura, aliada da agropecuária que desmata e queima”, cita o ex-deputado Liszt Vieira, coordenador do Fórum Global da Rio-92 e presidente do Instituto Jardim Botânico do Rio de Janeiro, órgão subordinado ao Meio Ambiente e responsável por executar as políticas nacionais de biodiversidade durante os dois primeiros governos de Lula.
Ex-presidente do Ibama e hoje coordenadora de Políticas Públicas do Observatório do Clima, Suely Araújo acredita que a Autoridade Climática pode ser útil se for criada da forma correta. “Se for politizada, é melhor não criar. Politizada, ela pode fazer surgirem problemas se houver uma interface mal resolvida com a secretaria no Ministério do Meio Ambiente que trata de política climática.” Araújo defende um órgão subordinado à pasta de Marina Silva e sob a coordenação da ministra. “Na Presidência da República se ganharia em transversalidade, mas geraria sobreposição. Acredito que deva ser uma autarquia enxuta e gerenciada de forma técnica.”
Dirigente do Fórum Brasileiro de ONGs pelo Meio Ambiente, Adilson Vieira avalia que a Autoridade Climática é “um passo em uma direção necessária, mas insuficiente”. Mais urgentes e importantes, diz, seriam o fortalecimento das instituições ambientais, o aumento do financiamento para ações de combate às queimadas e a adoção de políticas rigorosas de fiscalização. “São medidas essenciais para o Brasil enfrentar de maneira eficaz a crise climática em curso. O tempo para agir é agora.” Segundo o especialista, o País enfrenta desafios estruturais que vão além da criação de novos órgãos e envolvem a falta de recursos, o desmantelamento das instituições existentes e a complacência com crimes ambientais. “A estrutura do Ibama e do ICMBio tem sido enfraquecida nos últimos anos por cortes orçamentários significativos. Essa realidade compromete diretamente a capacidade do governo de responder a eventos climáticos extremos, como as queimadas recordes, que ainda atingem níveis alarmantes. Com menos de 2 mil brigadistas alocados na Amazônia Legal para combater os incêndios, a resposta à crise ambiental tem sido ineficiente e insuficiente.”
Na ONU, Lula citou “os incêndios florestais que se alastraram pelo Brasil e devoraram 5 milhões de hectares em agosto”. Antes das críticas, o presidente brasileiro antecipou-se ao explicar que o Sul do País sofreu a pior inundação desde 1941 e que a Amazônia atravessa a pior estiagem dos últimos 45 anos. “O planeta já não espera”, discursou. No Brasil, em particular, a pressa é mesmo grande e talvez não dê tempo de esperar as idas e vindas da gestação política de um novo órgão. “A criação da Autoridade Climática precisa ser levada adiante, mas agora é urgente uma atuação da Presidência da República, que precisa puxar para si a responsabilidade de articulação com os estados e os municípios, pois grande parte daquilo que é queimado ocorre nas propriedades privadas, regidas pelo Código Florestal”, conclama Anne Alencar, diretora científica do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia. •
*Colaborou Fabíola Mendonça.
Publicado na edição n° 1330 de CartaCapital, em 02 de outubro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Fogo cruzado’
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.
O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.
Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.
Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.