Política
Floresta maquiada
Premiada pela ONU, Barcarena, no Pará, enfrenta dificuldades para conter os efeitos da mudança climática
“A tristeza vai acabando com a gente aos poucos”, diz Maria Rita da Conceição, perto do roçado no pequeno quintal. “De uns anos para cá piorou muito porque a gente planta, mas a macaxeira vem bem fraquinha, não pega tamanho. As bananeiras também estão com os cachos tudo mirradinho.” A agricultora faz parte de umas das 3 mil famílias do Quilombo São Sebastião do Burajuba, no município paraense de Barcarena. A região, afirma, em quase nada lembra seus tempos de criança. “Aqui era fresco, mas agora está ficando cada vez mais quente. Eu e meu marido nos levantamos às 5 da manhã e, quando dá 6 horas, o sol já está tinindo de quente. Antes não era assim.”
Distante uma hora de barco de Belém, sede da COP30, a conferência do clima das Nações Unidas, Barcarena, quinto maior PIB do Pará, é um retrato das contradições que permeiam as discussões nos corredores da Blue Zone, área refrigerada na qual representantes de 194 países buscam saídas para adaptar o planeta às mudanças climáticas. Outrora apelidada de “Chernobyl da Amazônia”, por conta dos problemas de saúde recorrentes da população e da contaminação ambiental causados pela concentração de grandes indústrias de alumínio, alumina e caulim, o município de 140 mil habitantes recebeu, durante a cúpula, o título de primeiro “Hub de Resiliência da Amazônia”, prêmio concedido, em outubro, pelo Escritório das Nações Unidas para a Redução do Risco de Desastres (UNDRR).
Segundo as Nações Unidas, Barcarena tem se destacado nos últimos anos por sua “resiliência climática” e por iniciativas em educação e segurança alimentar, além da adoção de uma agenda local de redução de riscos de desastres. A festejada redenção ambiental barcarenense teve início há dez anos, quando a cidade passou a integrar o C40 Cities, grupo de cidades criado em 2005, que, atualmente, reúne municípios de 97 países para discutir projetos de adaptação aos impactos do clima em transformação. Na mesma ocasião, a prefeitura alinhou oficialmente suas políticas públicas aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. De perto, a realidade de Barcarena parece, no entanto, distante do belo quadro pintado na Blue Zone.
Erosão costeira, água contaminada, lixo e sumiço dos peixes… As políticas públicas são insuficientes
Os projetos municipais de fato existem e se valem de recursos financeiros, mas são pontuais e insuficientes, assim como os avanços esparsos conquistados ao longo de 30 conferências do clima, sempre em velocidade muito menor do que exige a urgência imposta pelo aquecimento global. Enquanto isso, a cidade, vítima há décadas da contaminação do solo e do lençol freático por metais pesados, sofre com o aumento da temperatura e dos períodos secos, aliado ao avanço progressivo das águas, o que provoca mais queimadas, ondas de calor extremo e erosão costeira. Comunidades ribeirinhas, quilombolas, indígenas e pequenos agricultores são os mais afetados.
Líder do Burajuba, Maria do Socorro Nerys da Costa, a Dona Socorro, afirma que a situação se agravou nos últimos cinco anos. “Em Barcarena, a mudança climática atinge as árvores, os animais, os frutos e até mesmo a água que a gente bebe. A quentura durante o dia é insuportável. Temos grandes mineradoras aqui há 40 anos, e o clima mais seco e quente tem aumentado o número de óbitos dos parentes. Dormimos e acordamos respirando esses metais pesados, essa fumaça. A quentura é imensa e nossas bacias hídricas, que sempre tiveram uma água geladinha e gostosa, estão ficando mornas. Se a gente vai tomar banho no rio, está morno”, revela Dona Socorro.
A alguns quilômetros do quilombo, os efeitos das mudanças climáticas mudaram a Praia do Caripi. O que antes era um paraíso arborizado às margens da Bacia de Marajó agora tem parte do piso em concreto e áreas desmatadas, resultado da tentativa da prefeitura de transformar o local em ponto de turismo para os abastados, mas que tornou o ambiente mais quente e seco. O incompreensível desmatamento é acompanhado pela erosão, que tragou a maior parte da faixa de areia em diversos pontos da praia. “A situação piorou por conta do calor que aumentou, da falta de árvores, da água que está tomando a areia da praia. Para nós é muita dificuldade, o turista quase não procura mais porque não tem onde ficar, debaixo do sol é muito ruim. Os piqueniques diminuíram muito porque as pessoas vinham para procurar o vento, ficar debaixo das árvores. Hoje em dia é muita quentura”, lamenta Nilcéia Vieira Lopes, moradora local e dona de um quiosque. Outro problema, diz a comerciante, é o sumiço dos peixes. “Ficou mais complicado para pescar. Antigamente, a gente pescava bastante peixe e camarão, mas hoje em dia não tem mais. Agora temos de comprar o peixe na vila para poder vender, não pescamos mais aqui mesmo. Isso tudo mudou bastante o nosso modo de vida.”
A alteração do clima também tem piorado a situação financeira nas comunidades tradicionais dependentes da agricultura. “O calor desde o ano passado destruiu toda a nossa produção. De açaí hoje, se você for por aqui olhar, vai ver só árvores sem a copa, sem nada. Com essa questão do aquecimento, o crescimento das plantas ficou muito lento”, relata Edinaldo Silva dos Anjos, coordenador da Comunidade Santa Maria, de 400 habitantes. Mesmo quando vingam, as frutas não têm a mesma qualidade. “A gente sente a diferença, não estamos tendo safras boas de manga, de cupuaçu, de bacuri. Quando você corta a manga, vê que ela por dentro está toda rachada. Com o açaí e o uxi é a mesma coisa. As frutas não servem para comer, elas não conseguem se desenvolver que nem antigamente, quando a gente tinha uma fruta sadia.” Associado à cooperativa local, Edinaldo reclama da falta de apoio técnico e financeiro. “A nossa cooperativa vai constantemente em busca desse apoio, mas não consegue, porque esbarra na burocracia, na questão de documentação, essas coisas.” A falta de orientação dificulta a apresentação de novos projetos. “Até outro dia, a gente não tinha esse negócio de internet, então passava despercebido das coisas. E, quando a informação de um projeto vinha, a gente não conseguia se preparar a tempo.” Bem-humorado ao falar da COP30, o agricultor diz que “essa tal de adaptação ainda não deu as caras por aqui”. Em seguida, fala sério: “Já lutamos para plantar e colher, lutamos contra a burocracia e agora estamos lutando contra o clima. Tem que ter força”.
Sina. O esgoto é despejado no igarapé. E outras duas Marias, Campos e Santos, foram obrigadas a reduzir a coleta seletiva por mudanças no contrato – Imagem: Luca Meola
A produção da cooperativa é adquirida pela prefeitura para a merenda escolar, prática que se repete em alguns pontos de Barcarena e, de acordo com a ONU, faz parte da bem-sucedida política de segurança alimentar do município. Apesar da iniciativa, na Comunidade Santa Maria ainda não se ouviu falar de qualquer projeto de adaptação da lavoura à nova realidade climática. “Para você produzir alguma coisa aqui tem que ter irrigação, porque a chuva está escassa. As árvores estão todas secas, os frutos já vêm secos, racham na árvore. O açaí também fica seco”, descreve Maria Marly dos Campos, outra liderança da comunidade. Ela antevê o fim da forma de cultivo integrada à floresta praticada na região. “Os grandes produtores, com condições financeiras e tecnologia, vão crescer cada vez mais. E as comunidades tradicionais que estão aqui há muito tempo vão acabando. Ou a gente vende para eles ou vai trabalhar para eles.”
Ao lado de Maria do Socorro Farias, Maria Marly está à frente de outra iniciativa no passado apoiada da prefeitura. Por meio da Associação Vida e Flora Barcarena, as duas realizam a coleta periódica de resíduos nas residências da região. “A gente ia pegar nas casas porque tinha recurso financeiro, tinha uma Kombi. Quando acabou o projeto, a gente não tinha mais como buscar de 15 em 15 dias, como fazia. O projeto durou dez meses, mas foi renovado porque não conseguimos atualizar a documentação. Agora a gente vai uma vez por mês, às vezes um mês e meio. Aí o pessoal não tem paciência de esperar, diz que fica muito material acumulado e queima tudo. É mais poluição ainda e um risco para a mata.” O material coletado pela associação é levado para um depósito, separado e vendido para reciclagem. “A questão do lixo é um problema grande em Barcarena, porque nós não temos, pela prefeitura, a coleta seletiva. Então as pessoas coletam tudo junto, não adianta eles separarem, depois vai tudo para o mesmo lugar.”
“Eu luto pela vida. Não fomos nós que fizemos isso”, diz Dona Socorro, líder comunitária
O Poder Público não peca apenas por omissão. Quando visitava o Quilombo Burajuba, a reportagem de CartaCapital flagrou o despejo de esgoto, feito pela companhia de saneamento, diretamente no igarapé em torno do território. “Eles estão proibidos de continuar a fazer isso por determinação de uma liminar. Estão descumprindo a lei”, avisa o advogado Edvan Couteiro, defensor das comunidades do Burajuba e da Praia do Caripi. A Secretaria Municipal de Meio Ambiente não atendeu aos pedidos de esclarecimento.
A distância entre discurso, prêmios por um punhado de práticas bem-sucedidas e a dura realidade vivida por quem sente de perto os efeitos das mudanças climáticas é um sintoma de que as políticas de adaptação idealizadas na COP30 precisam ser concretizadas em maior escala e velocidade. “Aqui na Amazônia, uma atenção especial tem de ser dada para o tema da qualidade da água. É necessária uma abordagem transdisciplinar na qual os povos também participem da solução, sejam ouvidos”, defende Sérgio Ribeiro, diretor do Centro Internacional de Água e Transdisciplinaridade. Para Pedro Arrojo, relator da ONU para questões de água e direitos humanos, “temos de construir estratégias de adaptação a partir de uma abordagem de direitos humanos para atender aqueles que vivem em situação de maior vulnerabilidade”.
Várias vezes ameaçada de morte por conta de sua militância contra a ação das mineradoras, Dona Socorro sabe da dificuldade da disputa, mas diz não ter alternativa. “Eu luto pela vida. Não fomos nós que fizemos isso, fomos colocados dentro disso à força”, revela. E diz ter esperança de um dia ver seus parentes novamente à beira do igarapé em Burajuba. “Que não seja eu, que já terei morrido, ou meu filho, mas a minha bisneta. Minha bisavó Januária foi escravizada e eu venho cobrar esse débito. O Brasil já nos deve muito por ter feito os nossos bisavós escravos, e agora terá mais esse débito ambiental com os nossos bisnetos.” •
Publicado na edição n° 1389 de CartaCapital, em 26 de novembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Floresta maquiada’
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