Política
Deltan Dallagnol, ficha suja
O TSE cassa por unanimidade o mandato de Deltan Dallagnol, com base na lei que ele tanto defendia


A carreira política de Deltan Dallagnol durou pouco, menos de quatro meses. Eleito com os votos de mais de 344 mil paranaenses, o deputado federal tomou posse em 1º de fevereiro, mas teve o mandato cassado por unanimidade pelo Tribunal Superior Eleitoral na quarta-feira 16. Os ministros da Corte concluíram que o antigo coordenador da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba valeu-se de uma “manobra capciosa” para escapar da aplicação da Lei da Ficha Limpa, que proíbe juízes, promotores e procuradores de lançar candidatura caso tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária com processos disciplinares pendentes.
Ao entregar o cargo, Dallagnol não tinha nenhuma pendência do gênero, e chegou a obter um atestado do Conselho Nacional do Ministério Público. Mas o diabo mora nos detalhes. O ex-procurador acumulava uma penca de reclamações e sindicâncias por suspeita de uso de grampos clandestinos, violação de sigilo funcional, improbidade administrativa e abuso de poder. Não por acaso, saiu meses antes do momento exigido pela legislação eleitoral. “O pedido de exoneração teve o propósito claro e específico de burlar a incidência da inelegibilidade”, observou o ministro Benedito Gonçalves, relator do caso no TSE. “A referida manobra impediu que os 15 procedimentos administrativos em trâmite no CNMP em seu desfavor viessem a ensejar aposentadoria compulsória ou perda do cargo”.
Até então Dallagnol havia respondido a dois processos administrativos. Em 2019, recebeu advertência por quebra de decoro após declarar, em entrevista, que o Supremo Tribunal Federal passava uma mensagem de “leniência a favor da corrupção” em suas decisões. Em 2020, sofreu pena de censura por fazer proselitismo político nas redes sociais contra a eleição de Renan Calheiros à presidência do Senado.
Os ministros da Corte eleitoral concluíram que o ex-procurador valeu-se de “manobra capciosa” para escapar de punição
O ex-procurador não tem, no entanto, motivos para guardar mágoas do órgão de correição do Ministério Público. O CNMP sempre foi indulgente com seus abusos no curso da Lava Jato. O julgamento do caso do PowerPoint contra Lula, para citar um caso, foi adiado mais de 40 vezes e, ao cabo, os conselheiros arquivaram a queixa perto da prescrição. No Judiciário, o episódio teve encaminhamento bem distinto. A 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça condenou o ex-coordenador da Lava Jato a pagar indenização de 75 mil reais ao atual presidente, por ter atuado de forma abusiva e ilegal ao apresentar o petista como “comandante máximo do esquema de corrupção” e “maestro da organização criminosa”, crime que não constava na denúncia apresentada pelo Ministério Público Federal, além de fazer referências a outros fatos exógenos, como o caso do “mensalão”, no qual Lula nem sequer foi réu.
Dallagnol tem o direito de apresentar recursos ao próprio TSE e à Suprema Corte, mas será muito difícil reaver o mandato. Uma das reclamações pendentes no CNMP versava sobre a tentativa do então procurador de investigar, sem autorização, a movimentação patrimonial de ministros do STJ. Em conversas com outros procuradores da Lava Jato, também tentou conectar o ministro José Dias Toffoli, do STF, aos casos de corrupção investigados pela operação. Estas são, por sinal, algumas das revelações das mensagens interceptadas por um hacker e apreendidas pela Operação Spoofing, que desnudaram o conluio do então juiz Sergio Moro com procuradores da Lava Jato para prender Lula a qualquer custo. Insuspeito de simpatia pelo PT, o ministro Gilmar Mendes chegou a declarar, em recente entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, que a República de Curitiba, como ficou conhecido o grupo de inquisidores da Lava Jato na capital paranaense, seria o “gérmen do fascismo” nativo.
Até pouco tempo, Dallagnol demonstrava inabalável confiança na preservação do mandato de deputado. Pudera. As cortes paranaenses parecem completamente alheias aos ventos que sopram de Brasília. Em 19 de outubro de 2022, o Tribunal Regional Eleitoral deferiu por unanimidade a candidatura do ex-procurador, desdenhando dos argumentos apresentados pelos reclamantes, a Federação Brasil da Esperança, formada por PT, PCdoB e PV, e o PMN. “A Lava Jato estará no Congresso Nacional”, celebrou o parlamentar recém-eleito. Não bastasse, em 5 de dezembro, o juiz Augusto César Pansini Gonçalves, da 6ª Vara Federal de Curitiba, anulou um acórdão do Tribunal de Contas da União que condenara Dallagnol a ressarcir os cofres públicos em 2,8 milhões de reais por gastos indevidos com diárias e passagens aéreas da força-tarefa – fato também destacado na ação que pedia a sua inelegibilidade com base na Lei da Ficha Limpa.
Fogo. O ex-advogado da Odebrecht acusa Moro e Dallagnol de extorsão – Imagem: Lula Marques/PT na Câmara
Provavelmente, Dallagnol só se deu conta de que jogava fora de casa quando se espalhou a notícia de que o relator no TSE, Benedito Gonçalves, entregou seu voto aos colegas da Corte em envelope lacrado, não por e-mail. A medida costuma ser empregada para evitar vazamentos de decisões, que, segundo a mística, levam os figurões julgados ao cadafalso. A profecia se cumpriu. O ministro reconheceu a inelegibilidade do ex-procurador por oito anos, e em apenas um minuto e seis segundos foi acompanhado pelos demais. Não houve divergência.
Diante do fim precoce da carreira política, Dallagnol correu ao Twitter para lamentar. “Meu sentimento é de indignação com a vingança sem precedentes que está em curso no Brasil contra os agentes da lei que ousaram combater a corrupção. Mas nenhum obstáculo vai me impedir de continuar a lutar pelo meu propósito de vida de servir a Deus e ao povo brasileiro”, escreveu o político ficha suja, que no passado chegou a propor que a Lei da Ficha Limpa “valesse para todos os cargos públicos”.
Outro indignado com o resultado é o parceiro e senador Sergio Moro. “Estou estarrecido por ver fora do Parlamento uma voz honesta na política, que sempre esteve em busca de melhorias para o povo brasileiro”, escreveu. Em dezembro, o TSE considerou válida a candidatura do parlamentar, acusado de não ter filiação partidária no Paraná no prazo legal, após ter tentado disputar a eleição por São Paulo, apresentando a fatura de um flat alugado na capital paulista. O TSE entendeu, porém, não haver ilegalidade na ação.
Sem a imunidade parlamentar, Dallagnol fica mais exposto às acusações de Rodrigo Tacla Duran, ex-advogado da Odebrecht. Em recente depoimento ao juiz Eduardo Fernando Appio, da 13ª Vara Federal de Curitiba, Duran disse que teve a prisão decretada pela Lava Jato, em 2016, após uma tentativa de extorsão. Seis meses antes, diz o denunciante, foi procurado pelo advogado Carlos Zucolotto Júnior, sócio de Rosângela Moro, a esposa do ex-juiz. Por meio de um aplicativo de mensagens, Zucolotto teria oferecido um acordo de colaboração premiada, a ser celebrado com a concordância de “DD” (iniciais de Deltan Dallagnol). Em troca, cobrou 5 milhões de dólares, que deveriam ser pagos “por fora”.
Sem a imunidade parlamentar, Dallagnol está mais exposto às acusações de Tacla Duran
Mais recentemente, o advogado acusou o procurador aposentado Carlos Fernando dos Santos Lima, outra estrela da República de Curitiba, de cobrar 500 mil dólares de Wu-Yu Sheng, conhecido como “Paulo China”, para livrar alguns doleiros da persecução penal. O valor teria sido rateado entre os alvos da operação e pago de forma fracionada, mensalmente. De fato, o doleiro chinês não figura entre os denunciados da Lava Jato, mas não pode confirmar a história. Faleceu em agosto de 2020.
Tanto Moro quanto os procuradores da antiga força-tarefa negam as acusações e apontam a suspeição do juiz Appio pelo simples fato de ter criticado os abusos da República de Curitiba. Seja como for, as acusações contra políticos com direito a foro privilegiado, caso do ex-juiz e de sua esposa, Rosângela Moro, deputada federal pelo União Brasil de São Paulo, são de competência do STF. E, por lá, a trupe tampouco deve receber tratamento condescendente.
Em meados de abril, vazou um vídeo de Moro dizendo, em tom jocoso, que estava disposto a “comprar” um habeas corpus de Gilmar Mendes. O ministro do STF não esqueceu a desfeita e agora ameaça expor as finanças do casal. “Tacla Duran diz que teria feito um depósito de 5 milhões de dólares para o escritório da mulher do Moro. Basta abrir a conta e esclarecer essa dúvida”, sugeriu, em recente entrevista à TV Record. “Quem deve explicações sobre venda de decisões é Moro.” •
Publicado na edição n° 1260 de CartaCapital, em 24 de maio de 2023.
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