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Ferida aberta

Com a missão inconclusa, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos está prestes a ser dissolvida pelo governo Bolsonaro

Escárnio. Torturada, Dilma teve a anistia negada. A identificação das ossadas da Vala de Perus deve ser comprometida - Imagem: Arquivo Público do Estado de São Paulo e Itamar Miranda/Estadão Conteúdo
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Desde os tempos em que era um histriônico e irrelevante deputado, Jair Bolsonaro não se cansa de cultuar a ditadura e tietar alguns de seus mais agressivos torturadores e assassinos. Faz parte dos piores momentos da história nacional seu voto pelo impeachment de Dilma Rousseff em 2016, quando o atual ocupante do Palácio do Planalto prestou homenagem ao coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-chefe do DOI-Codi paulista, uma das masmorras do regime militar. Pouco antes de chegar ao poder, ao apoiar um ato organizado por generais de pijama contra a busca pelos restos mortais de guerrilheiros na região do Araguaia, Bolsonaro disse que “quem procura osso é cachorro”, piada na qual todos os presentes acharam muita graça e que se tornou um mantra para o então parlamentar.

Diante desse histórico e do acelerado processo de desmonte da memória nacional sobre o período da ditadura promovido pelo atual governo por intermédio da agora ex-ministra Damares Alves, era de se espantar que ainda estivesse de pé, embora precariamente, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Para satisfação de Bolsonaro, essa “falha” do governo será finalmente corrigida na terça-feira 28, quando os atuais sete integrantes do comitê deverão votar por sua autodissolução. A morte foi anunciada pelo presidente do colegiado, Marco Vinícius Pereira de Carvalho, um dos braços fortes de Damares no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, pasta para a qual a comissão foi transferida em 2019 por decreto presidencial: “Para o fim dos trabalhos ocorrer, é necessário maioria simples dos conselheiros”, disse.

Para a deputada Maria do Rosário, do PT, ministra dos Direitos Humanos no governo Dilma, ao dissolver a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, Bolsonaro “pretende extinguir os crimes” cometidos pela ditadura. “A dissolução do grupo é a prova cabal do crime continuado desde a ditadura até o dia atual por aqueles que negam informações sobre o paradeiro de mortos­ e ­desaparecidos”, diz. A parlamentar classifica como “abominável” a postura do presidente e alerta: “Esse senhor se dirige a pessoas que foram vítimas da ação do Estado. Portanto, ele se torna responsável pela violência cometida pelo Estado naquele período. Na medida em que trata assim os familiares, assume para si a responsabilidade pelas torturas, mortes e desaparecimentos forçados”.

Subordinado à pasta de Damares Alves, o comitê vinha sendo desmontado desde o governo Temer

Muito antes da Comissão Nacional da Verdade, que só viria a ser criada em 2011 no governo Dilma, a Comissão ­Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos surgiu em dezembro de 1995 com a Lei 9.140, ainda no primeiro ano do governo de Fernando Henrique Cardoso. ­Atual presidente de honra do Grupo Tortura Nunca Mais e uma das principais articuladoras da criação da Comissão Especial naquela ocasião, Cecília Coimbra recorda que o colegiado só nasceu por pressão dos familiares e dos movimentos sociais: “Com o trabalho da Comissão, apesar de todas as limitações e tropeços do governo FHC, muitos casos foram incluídos na listagem geral de mortos e desaparecidos naquele período”. O grupo encaminhou ao secretário dos Direitos Humanos da época, José Gregori, um dossiê com mortos e desaparecidos políticos desde 1964: “Esse material serviu de base ao trabalho da Comissão em seu início. Posteriormente, quando foi criada a Comissão Nacional da Verdade, esse dossiê e outros documentos também foram utilizados”.

O desmonte da Comissão Especial, diz Coimbra, começou ainda no governo de Michel Temer: “Bolsonaro foi a pá de cal em cima de uma coisa que já vinha sendo enterrada há muito tempo. Subordinar [a Comissão] ao ministério da Damares por si só já foi uma coisa extremamente desqualificadora”. Dar fim às buscas por mortos e desaparecidos faz parte da estratégia da direita ora no poder de minimizar os crimes cometidos pelos agentes do Estado brasileiro após o golpe de 1964. A memória sobre o período permanece obscura, com listagens oficiais que pouco ultrapassam 400 nomes e listagens feitas por entidades de direitos humanos que mencionam mais de mil vítimas. Para a experiente militante pelos direitos humanos “é óbvio que não interessa às forças que estão no governo – hoje hegemônicas no cenário político brasileiro – que a história sobre o período da ditadura seja bem contada”.

Coube a Carvalho, ex-assessor de Damares, assumir a presidência da Comissão Especial com a missão de asfixiá-la. Ele substituiu a advogada Eugênia Fávero Gonzaga, afastada do cargo após irritar Bolsonaro com a entrega em 2019 do atestado de óbito de Fernando Santa Cruz, militante da Ação Popular assassinado pelos militares, a seu filho Felipe, então presidente da OAB. “Não há novidade na estratégia do governo Bolsonaro de esvaziar a luta das famílias dos mortos e desaparecidos na busca por respostas e pela verdade e afrontar aqueles que querem encontrar os restos dos seus parentes ou pelo menos conhecer a história que feche esse ciclo de dor”, diz Felipe Santa Cruz.

Auxiliar. O presidente da comissão foi braço direito de Damares – Imagem: Redes sociais

O advogado, pré-candidato ao governo do Rio de Janeiro pelo PSD, denuncia a postura oficial: “O governo, assim como o próprio presidente, desde o início se comportou como um defensor dos torturadores e da ditadura. É um governo pró-ditadura, pró-assassinato. Não há surpresa alguma em ver todo o trabalho de reconstrução nacional e de pacificação feito pelos governos pós-redemocratização interrompido no governo de Jair Bolsonaro. Espero que a partir de janeiro do ano que vem, com a saída do presidente do poder pelas urnas, esse trabalho possa ser reconstruído”.

Associações ligadas aos direitos humanos estudam formas de reverter nas ­ruas e na Justiça o fim da Comissão Especial: “O day after da eventual autodissolução aponta para uma vasta discussão judicial. As famílias buscarão anular a decisão, porquanto a Comissão ainda tem parte de sua missão legal a cumprir, qual seja de continuar envidando esforços para localizar os despojos de desaparecidos, proceder à análise das ossadas de que tem, direta ou indiretamente, a guarda e finalmente compará-las com o material genético dos familiares”, avalia o advogado Belisário dos Santos Jr., integrante da Comissão Arns e da Comissão Internacional de Juristas. Ele menciona também o fim do apoio a entidades como a Unifesp e o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense “que estudam os achados da vala de Perus, onde há fortes indícios de nova identificação de mais desaparecidos”.

“Quem procura osso é cachorro”, costuma zombar Bolsonaro, tiete e cúmplice dos algozes da ditadura

Para Gabrielle Abreu, coordenadora da área de Memória, Verdade e Justiça do Instituto Vladimir Herzog, a retomada das buscas e análises demandará um “trabalho hercúleo para vítimas, familiares, legisladores, gestores públicos e pesquisadores da temática”. Mas existe um caminho: “O primeiro passo é a garantia da democracia e da lisura do processo eleitoral. O segundo é a eleição de um presidente que tenha sensibilidade com a questão da ditadura e seus resquícios na sociedade hoje. O terceiro passo é o cumprimento das 29 recomendações da Comissão Nacional da Verdade. A partir daí, podemos sonhar com a possibilidade de reverter os prejuízos construindo políticas de memória, conscientizando a população, reformulando instituições e reparando as vítimas e suas famílias”.

O desprezo pela CNV não é menor nas hostes bolsonaristas. Prova disso foi o veto de Damares e Bolsonaro ao pagamento de indenização pela União à ex-presidente Dilma, que ficou três anos presa pelos militares e sabidamente foi vítima de tortura. O presidente – que, entre outras coisas, recebe 11 mil reais mensais brutos como capitão da reserva, embora tenha sido afastado do Exército com apenas 33 anos – referiu-se ao pedido de Dilma, por quem tem obsessão similar a que nutre por Lula, como “privilégio injustificável” quando celebrou publicamente o parecer contrário à indenização. “O não reconhecimento ao direito da ex-presidenta é mais um capítulo da perseguição política levada a cabo por um governo covarde. Todo o Brasil sabe que a Dilma foi torturada”, diz Rosário.

No caso da Comissão de Mortos e Desaparecidos, Santos Jr. avalia que o Supremo Tribunal Federal poderá ser demandado a propor uma ADPF “com o objetivo de evitar ou reparar lesão ao preceito fundamental decorrente de ato do Poder Público, vulnerando o direito à memória e à verdade”. Ele lamenta que “os familiares que ainda não tiveram direito a reverenciar seus mortos agora veem fechada a única porta ainda aberta do Estado para o drama que os atormenta”.

Lambe-botas. Bolsonaro assume para si a responsabilidade pelos crimes da ditadura, alerta Maria do Rosário – Imagem: Marcelo Camargo/Ag.Brasil

Coimbra afirma que a ditadura não está no passado: “Ela está aqui e agora, no assassinato do Dom e do Bruno, no genocídio dos povos indígenas, nos assassinatos de negros e pobres. Esta história permanece presente na realidade cotidiana do Brasil e seus efeitos ainda hoje estão sendo sentidos”. A fundadora do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro faz um alerta que serve para o Brasil e o mundo: “O conservadorismo e o fascismo que assistimos hoje é muito mais perigoso porque traz os instrumentos utilizados naquele período de forma mais eficaz e com o poder que têm a informática, as fake news e os algoritmos. Aquilo que a direita usava de forma um tanto o quanto rudimentar, hoje é usada de maneira sofisticada”.

Procurado por CartaCapital para explicar o fim dos trabalhos da comissão e o que será feito dos processos em curso, Marco Vinícius Pereira de Carvalho não respondeu à reportagem até o fechamento desta edição. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1214 DE CARTACAPITAL, EM 29 DE JUNHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Ferida aberta”

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