Política
Ferida aberta
Passados dez anos da tragédia da boate Kiss, nenhum dos responsáveis pelo incêndio foi punido


“Vou morrer”, pensou o jovem Gabriel Rovadoschi Barros, de 18 anos, ao percorrer um labirinto em chamas com as narinas ardendo pela fumaça tóxica. Pelo caminho, corpos desmaiados ou já sem vida serviam de obstáculo na luta pela sobrevivência. “Não queria pisar em ninguém, mas precisava sair dali. A multidão estava desesperada. Lembro de ter visto, do lado de fora, a luz de um poste de rua e me guiei por ela. Pisei de leve sobre os corpos e segui em frente. Foi assim que consegui sair”, relembra, com pesar. Barros, hoje com 28 anos, milagrosamente não sofreu nenhum arranhão ou queimadura. Tornou-se psicólogo e preside a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria.
Era madrugada de 27 de janeiro de 2013 quando a boate Kiss ardeu em chamas. O incêndio deixou um saldo tenebroso: 242 mortos, a grande maioria na faixa dos 20 anos, e mais de 600 feridos. “Para quem não vive em Santa Maria foi apenas um fato. Para nós é uma imensa ferida que não cicatriza nunca”, resume um motorista de aplicativo do município gaúcho, com 296 mil habitantes. O 27 de janeiro deste ano caiu em uma sexta-feira, mas as casas noturnas da cidade permaneceram fechadas em luto.
Após uma década, familiares e amigos se reuniram para lembrar, chorar, protestar e clamar por justiça. Trata-se de uma batalha jurídica que se arrasta pelos tribunais de Porto Alegre e Brasília. Em dezembro de 2021, quatro réus foram levados a júri popular: os sócios da boate, Elissandro Callegaro Spohr, o Kiko, e Mauro Londero Hoffmann, e os músicos da banda que fez a desastrosa apresentação pirotécnica, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha Leão. Após dez dias de julgamento, Kiko foi condenado a 22 anos de prisão, Mauro, a 19 anos e os músicos, a 18 anos.
Oito meses depois, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul decidiu anular o júri, acolhendo as reclamações apresentadas pelos advogados de defesa, sobre “falhas no procedimento formal” do julgamento. Dentre as irregularidades estaria o fato de o sorteio dos jurados ter sido feito em prazo menor do que determina o Código de Processo Penal. Além disso, o juiz que presidiu a sessão, Orlando Faccini Neto, teve contato com o Conselho de Sentença, ou seja, com os jurados.
O magistrado minimiza o episódio. Diz ter sido alertado, no segundo dia dos trabalhos, que “um dos sete integrantes do Conselho, por questões pessoais nada relacionadas ao júri, padecia de algum grau de ansiedade”. Mais adiante, acrescenta o juiz, “um segundo integrante também precisou de atendimento, dado o estresse natural de tão alongado julgamento”. O desembargador relator, Manuel José Martinez Lucas, desconsiderou os pedidos da defesa, mas os demais colegas da Câmara tiveram entendimento divergente. Agora, os advogados das vítimas recorrem às instâncias superiores, em Brasília, para tentar reverter a sentença do TJ gaúcho.
As famílias queixam-se do descaso com os 242 mortos e 636 feridos
“Meu sentimento é de desolação, pois empenhei minhas melhores energias para que o julgamento se realizasse adequadamente”, afirma o juiz Orlando Faccini Neto, responsável pelo caso na primeira instância, a CartaCapital. Para ele, uma década é tempo mais do que suficiente para que se conclua um caso criminal. “Precisamos refletir sobre mudanças legais e operacionais que contribuam para que os processos não se eternizem. A ausência de definição agrava a dor das vítimas.”
Presente na manifestação dos dez anos da tragédia, o matemático Paulo Carvalho, cujo filho estava entre as vítimas, chama esse tempo de espera por Justiça de “cronologia da vergonha”. “Eles (os desembargadores) parecem não se importar se gananciosos empresários e funcionários públicos omissos roubaram a vida dos nossos filhos”, lamenta. “De toda forma, teremos forças para lutar contra canalhas e covardes que, por ação ou omissão, perpetuam a injustiça”, observando que um laudo oficial que apontava 29 irregularidades na boate foi entregue à prefeitura de Santa Maria e ao Corpo de Bombeiros, mas pouco – ou nada – foi feito.
A Polícia Civil indiciou diversos servidores municipais, inclusive o prefeito Cezar Schirmer, do MDB, oficiais do Corpo de Bombeiros e até mesmo integrantes do Ministério Público Estadual. Ao todo, foram denunciadas 28 pessoas, mas somente os sócios da boate e dois músicos foram julgados. Todos os demais acabaram beneficiados por medidas de arquivamento. “A conduta dessas autoridades deveria ter sido judicialmente investigada, para saber em que medida elas contribuíram ou não com essa tragédia”, avalia a advogada Tâmara Biolo Soares, representante da associação das vítimas perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. “Mas todos os servidores acabaram impunes. O prefeito de Santa Maria renunciou ao cargo, mas para assumir a Secretaria de Segurança Pública a convite do então governador, José Ivo Sartori.”
Além da impunidade, o lançamento da minissérie Todo Dia a Mesma Noite, produzida pela Netflix e baseada em livro homônimo da jornalista Daniela Arbex, acirrou os ânimos na cidade. Cerca de 40 famílias manifestaram-se contrárias à exibição da série ficcional, alegando não terem sido consultadas e criticando a exploração comercial da tragédia. A Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria contesta, porém, a alegação de falta de consulta prévia. Em nota divulgada no domingo 30, a organização diz que as famílias “estavam cientes da produção” e a entidade sente-se “representada pela série”. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1245 DE CARTACAPITAL, EM 8 DE FEVEREIRO DE 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Ferida aberta “
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.