Política
Federalismo climático
A política ambiental padece não somente com a falta de recursos, mas também com a atuação desarticulada dos governos


O Brasil caminha para bater mais um recorde de ano mais quente da história, com as enchentes e queimadas também mais trágicas de que se tem registro. A ciência nos indica que os próximos anos poderão ser até piores. Para enfrentar esses desafios, urge a consolidação de mecanismos institucionais e financeiros que possibilitem a implementação de políticas públicas de meio ambiente e clima efetivas e robustas.
Os extremos climáticos avolumam-se em escala, intensificam-se no tempo e acirram desigualdades historicamente construídas. Enquanto isso, as políticas ambientais e climáticas mostram-se frágeis, pouco articuladas entre os diferentes níveis federativos e setores de governo, além de padecerem de crônico subfinanciamento. Às vésperas do 36º aniversário da nossa Constituição Cidadã, precisamos ser capazes de construir o federalismo climático exigido desde 1988 pelo seu artigo 23, incisos VI e VII. Para tanto, é preciso que haja não só distribuição clara de obrigações, mas também suficiente financiamento ambiental e climático. São responsabilidades comuns que devem ser compartilhadas entre os entes.
Chegamos até aqui não só porque estamos expostos aos extremos climáticos de um planeta que se aqueceu sob a era fóssil e com trajetórias de forte industrialização das economias do Norte Global. Em igual medida, falhamos brutalmente ao não sermos capazes de implementar de forma consistente a Política Nacional de Meio Ambiente e o Sistema Nacional de Meio Ambiente, conforme estabelece a Lei nº 6.938/81.
Embora tenhamos uma legislação reconhecidamente avançada, ela ficou estrangulada por falta de financiamento robusto e compartilhado entre os entes da federação, assim como por falta de uma governança efetiva e transparente. O exemplo mais notório é o do Fundo Nacional de Meio Ambiente, criado em 1989 como instrumento auxiliar para viabilizar uma Política Nacional de Meio Ambiente. Hoje, os recursos não apenas são insuficientes (parcos 64,3 milhões de reais em 2024), mas também estão aprisionados como reserva de contingência (93% do total).
Tem sido, portanto, uma escolha deliberada alocar recursos aquém do necessário na prevenção dos eventos extremos e na preservação do meio ambiente, para, mais adiante, gerir crises climáticas episódicas, por meio da decretação de situações emergenciais e da abertura de créditos extraordinários. Tal opção é fraudulenta por assemelhar-se a uma espécie de “emergência fabricada”, ignorando ou distorcendo os custos e riscos ambientais, sociais e econômicos ao longo do tempo. Quem se omite historicamente na defesa do meio ambiente opta quase sempre por remediar, de forma precária e a posteriori, danos consumados.
Já faz mais de uma década da construção da Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (Lei nº 12.608 de 2012), abrangendo ações de prevenção, mitigação, preparação, resposta e recuperação voltadas à proteção e defesa civil. A legislação estabelece também que a Proteção e Defesa Civil brasileiras são organizadas sob a forma de um sistema – o Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil, formado pelos órgãos e entidades da administração pública federal, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios e, também, pelas entidades públicas e privadas de atuação significativa na área de proteção e defesa civil. Contudo, ela permaneceu sem regulamentação e, seu principal instrumento financeiro de implementação, o Fundo Nacional para Calamidades Públicas, Proteção e Defesa Civil, que nunca chegou a ser regulamentado, ainda padeceu no seu desenho jurídico da vinculação da transferência de recursos condicionada à decretação da situação de emergência ou do estado de calamidade pública.
Hoje, nossa maior e mais urgente tarefa é definir obrigações e metas claras para cada ente federativo
Este é o estado dos desafios que precisam ser enfrentados para que o federalismo climático saia do campo das boas intenções. Nesse sentido, a Resolução nº 3, de 3 de julho de 2024, do Conselho da Federação, estabelece o “Compromisso para o Federalismo Climático”. Contudo, ali, as responsabilidades de cada nível de governo e, em especial, do que mais arrecada, foram definidas de forma vaga e insuficiente. A Resolução previu, em seu artigo 5º, que “os entes federativos utilizarão estruturas de coordenação e instrumentos que viabilizem os meios necessários à implementação de ações climáticas, informacionais, capacitação e assistência técnica, acesso a tecnologias e mecanismos de financiamento sustentáveis”. É ilusório, porém, crer que os governos estaduais e, em especial, os municipais teriam condições fiscais de assumir, isolada ou majoritariamente, o tamanho do desafio que está posto.
Interessante seria alargar a compreensão do desafio que temos diante de nós, equiparando as possíveis soluções para o meio ambiente e o clima em patamar de relevância e flexibilidade fiscal aos regimes híbridos que têm sido propostos na PEC 65/2023 (que visa conceder autonomia orçamentário-financeira ao Banco Central) e no Projeto de Lei Complementar 108/2024 (que regulamenta o Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços, excluindo-o das restrições fiscais a que se submetem os estados e municípios).
Em última instância, nossa maior e mais urgente tarefa é definir o que precisa ser feito, quem se responsabiliza e quanto custa para a federação, atribuindo a cada qual suas obrigações e metas. Independentemente das restrições fiscais de curto prazo, a dimensão qualitativa deve preceder os limites quantitativos e a compreensão premente dos riscos ambientais deveria forçar todos os agentes políticos a agir tempestiva e plenamente, sob pena de comprometimento não apenas das futuras gerações, mas até mesmo da perspectiva de médio prazo que ainda alcança as presentes gerações. •
*Alessandra Cardoso é assessora política do Inesc. Élida Graziane Pinto é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo.
Publicado na edição n° 1331 de CartaCapital, em 09 de outubro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Federalismo climático’
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