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Faroeste bandeirante

A eleição do bolsonarista Tarcísio de Freitas é desastrosa para a juventude negra, pobre e periférica de São Paulo

Freitas ignora os dados e dá carta branca para a PM matar “suspeitos” sem temer punições - Imagem: Mateus Bonomi/Agif/AFP
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“Se soubessem que estavam sendo filmados, tenho certeza que eles jamais teriam atirado contra meu filho”, diz Roseane da Silva Ribeiro, mãe de Rogério Ferreira da Silva Júnior, assassinado pela Polícia Militar de São Paulo em 9 de agosto de 2020, no dia em que celebrava o seu aniversário de 19 anos. Empregado registrado de uma empresa de logística, o jovem pegou emprestada a moto de um amigo para um rápido passeio nas ruas do Parque Bristol, na Zona Sul da capital paulista, naquela ensolarada tarde de domingo. Abordado por dois agentes da Rocam, divisão da PM que faz patrulhamento com motocicletas, foi baleado na região dorsal e agonizou na rua à espera de socorro. Imagens de câmeras de segurança não deixam margem a dúvidas. O rapaz aparece nas imagens sem capacete, trafegando pela Avenida dos Pedrosos. Em seguida, dois policiais cercam o jovem, que reduz a velocidade até parar perto da calçada. Na sequência, ele tomba com a moto, atingido pelo disparo fatal. Estava desarmado.

Mesmo com o crime filmado a partir de vários ângulos, os policiais envolvidos na ocorrência aguardam em liberdade pelo julgamento – alegam que a vítima “fez menção de colocar a mão na cintura como se tivesse uma arma de fogo”. São Paulo havia acabado de bater o recorde de homicídios decorrentes de intervenção policial no semestre anterior. Um ano após a bárbara execução, o governador João Doria, do PSDB, implantou no estado o Programa Olho Vivo, com a instalação de câmeras nos uniformes dos PMs que gravam tudo que acontece, em tempo real.

O resultado é espantoso. O número de vítimas da letalidade policial no primeiro semestre deste ano foi 41,1% menor, na comparação com o mesmo perío­do do ano passado, e 60,7% inferior ao registrado de janeiro a junho do ano de 2020, quando as câmeras ainda não haviam sido adotadas pela PM. As mortes de policiais em confrontos com criminosos também despencaram. Em 2021, foram 11 em todo o estado, o menor número em três décadas. Não por acaso, 91% da população paulista aprovou o modelo, segundo recente pesquisa Datafolha.

Ao tomar conhecimento da vitória de Tarcísio de Freitas na disputa pelo governo de São Paulo, Roseane sentiu até calafrios. Ex-ministro da Infraestrutura de Bolsonaro, o novo governador prometeu em campanha remover as câmeras dos uniformes da PM, a despeito de todas as evidências científicas que mostram que o programa reduziu a letalidade policial e aumentou a segurança dos próprios praças e oficiais da corporação. “A era de tratar policial como suspeito e bandido como parceiro vai acabar”, costumava ­bravatear nos debates televisionados. “Retirar as câmeras é um absurdo, só vai assegurar a impunidade dos PMs que praticam crimes, como os que mataram o meu filho.”

O governador quer retirar as câmeras dos uniformes de policiais e extinguir a Secretaria de Segurança Pública

Logo após a divulgação do resultado das urnas, o advogado Adilson Moreira, doutor em Direito Constitucional pela Universidade Harvard e maior referência em Direito Antidiscriminatório do Brasil, lamentou no Facebook: “Que tragédia para a população negra de São Paulo”. Não se trata de mero descontentamento com o voto dos paulistas. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública atestam que 78,9% das vítimas da letalidade policial no País são jovens negros e periféricos. “Os políticos brancos sabem exatamente que tipo de discurso precisam construir para mobilizar o voto de pessoas brancas de classe média. Fazem uma promessa de violência institucionalizada”, observa o também professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie. “E o governador anterior prometeu a mesmíssima coisa. ­Doria dizia que a polícia deveria atirar para matar os ‘bandidos’.”

Quando políticos brancos falam em “bandido”, acrescenta Moreira, eles se referem a um tipo muito específico de criminoso. “A ideia que vem à cabeça não é a de um homem loiro, de olhos azuis. Quem são os bandidos? São pessoas negras e pobres. Essa turma sabe exatamente como mobilizar o ódio racial em benefício próprio.”

Recém-eleita, a deputada Paula Nunes, da Bancada Feminista do PSOL, avalia que a proposta enfrentará resistência na Assembleia Legislativa. “Vai haver uma forte pressão da sociedade civil e do próprio Parlamento para manter as câmeras”, diz. “Isso representa um enorme retrocesso na política de redução da letalidade policial.”

As anacrônicas iniciativas de Tarcísio de Freitas na área não se resumem à retirada das câmeras. O bolsonarista ameaça trazer uma fracassada iniciativa do Rio de Janeiro, a de extinguir a Secretaria de Segurança Pública, de forma a assegurar mais autonomia para as polícias. O advogado Ariel de Castro Alves, especialista em Direitos Humanos e presidente do grupo Tortura Nunca Mais, explica que essa medida, além de prejudicar a integração das corporações policiais, pode gerar mais conflitos e disputas entre elas. “Pelos nomes cotados por Tarcísio para a segurança pública, integrantes da ‘Bancada da Bala’, notórios defensores da violência policial e do armamentismo, podemos temer um verdadeiro banho de sangue e ampliação dos abusos, torturas e assassinatos de jovens negros e pobres nas periferias. Também deve ocorrer o aumento de prisões forjadas de jovens inocentes, que já ocorreram de forma corriqueira”, denuncia.

Ex-ouvidor das polícias de São Paulo e secretário de Segurança Pública de Diadema, Benedito Mariano não hesita em dizer que a extinção da pasta será um desastre, principalmente para a população mais pobre. “Essa proposta é desastrosa, uma demonstração inequívoca de que o governador pretende lavar as mãos e deixar as polícias cuidarem da segurança. As corporações policiais precisam de mais integração, não de divisão. Há tempos, os especialistas alertam para essa necessidade. O problema é que o Tarcísio não tem nenhum programa. O que vai acontecer a partir de 1º de janeiro é uma incógnita, ninguém sabe ao certo.”

A reportagem entrou em contato com a assessoria do governador eleito para saber se ele pretende, de fato, avançar com as propostas anunciadas em campanha, mas não obteve resposta. Tarcísio adiou o início da transição de governo porque viajou com a família para os EUA, a fim de descansar antes de assumir seu posto no Palácio dos Bandeirantes. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1233 DE CARTACAPITAL, EM 9 DE NOVEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Faroeste bandeirante”

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