Política

Farinata e a autopromoção de Doria

Como tudo o que vem ou virá do alcaide, teremos não mais do que elitismo sem-vergonha

'Para quem voa tanto em jatinhos empresariais não custava ter consultado a Unicamp'
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O que se pode esperar de um país que apresenta, em nome da renovação política, um apresentador de TV mercadologicamente benemerente, um militar entre os evangelhos de Cristo e um canhão de preconceitos, ou um fabricante de eventos para aliciar ricos, como potenciais candidatos à Presidência da República? Uma “farinata”, claro.

Não, não levem o termo ao pé da letra do italiano Massimo Montanari, autor de “A Fome e a Abundância” (EDUSC, 2003), ótimo livro sobre a história da alimentação na Europa. Ele o entenderia como sopa de aveia e até poderia achar boa a ideia.

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Na Federação de Corporações, entretanto, essa é mais uma ferramenta de autopromoção do alcaide de São Paulo, João Dória Júnior, votado para vencer no primeiro turno, que com todo o respeito, a partir daqui, será tratado como Doriana Jr., adequado a quem se derrete diante de qualquer estrelato.

A essa jogada se associou o cardeal-arcebispo da cidade, Dom Odilo Scherer, que aprovou a ideia, como se estivesse repetindo o milagre da multiplicação de pães e peixes. Como? Nem tão ingênuo assim? Em janeiro foi afastado pelo Papa Francisco, junto a três outros cardeais, da comissão que monitorava o Banco do Vaticano. Deve ter multiplicado algo além de pães e peixes.

Os fatos vocês já conhecem, amplamente relatados em folhas e telas cotidianas sem qualquer rigor científico ou verdade social. Misturam-se restos de alimentos, nutrição granulada, desperdício, lixo, merenda escolar, plataforma sinergia. Vixe, coisa enrolada, trem que não acaba mais ou vai dar numa certa casinha.

Ao contrário de Dom Odilo, a FAO, braço da ONU de alimentos e agricultura, logo tirou o seu da reta, o que não impediu que um monte de organizações, com medo de pecar, acharam bom dar “farinata” aos pobres. Com todo o respeito.

Como tudo o que vem ou virá do alcaide, teremos não mais do que elitismo sem-vergonha, aprendido nos jograis que Doriana Jr. promovia em Comandatuba e outros sítios da riqueza.

No final do século 18, a população da Europa era, praticamente, igual à do Brasil de hoje, e passava pelo terceiro “Século da Fome”. A população crescia a taxas aceleradas e causava escassez de alimentos. O que se fez? Expandiu os cultivos, criou novas técnicas produtivas, e segundo Montanari “em clima de fervor científico, experimentação agronômica, alinhamento aos donos de terras em atividades agrícolas e de pastoreio não mais estanques, impulsionaram o capitalismo agrário, primeiro passo para a economia industrial. O mais, vocês, estudiosos, já sabem.

A equação do alcaide e acólitos foi simples. Parte da população de São Paulo passa fome ou não se alimenta corretamente. Do outro lado, há muito desperdício de comida não aproveitada, que acaba no lixo. Reprocessemos o desperdício e teremos resolvido o problema da fome.

Mais uma vez, Doriana Jr., cria um factoide a partir do brilho de seu cashmere, formação nos guetos de luxo da cidade, amizades com ricaços que pensam distribuição de renda ser dar gorjetas a quem bem lhes serve.

Até o meu amigo de galhofas, Pires, o raso, me segredou: “Puta cara bobo”.

Desde 1981, instituído pela FAO, no dia 16 de outubro, se comemora o Dia Mundial da Alimentação. Em 2015, a Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp e o Núcleo de Estudos em Alimentação (Nepa), me convidaram para uma mesa redonda “Da produção ao consumo de alimentos: desafios e tendências”. Participavam pesquisadores da faculdade, da Embrapa, da Associação Brasileira das Indústrias de Alimentação (Abia), e o diretor científico da GRANOLAB.

Em nenhum momento foi discutida sandice tamanha.

O desperdício, que é alto em todo o mundo e na cadeia alimentar completa, tem que ser reduzido, e já está sendo, dentro da Política Nacional de Resíduos Sólidos, na fabricação de compostos orgânicos capazes de reduzir o uso nas lavouras de produtos químicos e tóxicos. Restos que não servem, como serviam as “lavagens” para alimentar humanos pobres.

Várias casas de repastos, autorizadas e certificadas, fazem doação de comida boa para ONGs e institutos que atendem populações carentes.

O nobre alcaide (e aqui não estou sendo irônico) deveria se informar sobre a Biofortificação no Brasil, trabalhada na Rede BioFORT, coordenada pela Embrapa, que estuda as carências nutricionais na alimentação dos brasileiros e propõe cultivares que diminuem tais deformidades.   

Estão envolvidos mais de 150 pesquisadores nos estudos, multidisciplinares, atuando nas regiões brasileiras de menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), integrados a vários centros de excelência alimentar do planeta. Já se ocuparam de abóbora, arroz, batata-doce, mandioca, milho, feijão, trigo.

Sabe por quê, alcaide Doriana Jr.? São alimentos baratos e capazes de FORTIFICAR BIOLOGICAMENTE a nutrição dos brasileiros pobres.

E diante disso tudo, o que o senhor resolve? Processar tudo o que sobra dos restaurantes de sua preferência, moer polvo, trufas, aspargos, valha-me Deus, e fazer uma farinata ou um granulado para distribuir à população.

Ora, vá … vestir o cashmere em torno de sua cintura. Para quem voa tanto em jatinhos empresariais não custava ter consultado a Unicamp.

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