Política
Fardado e elegível
Absolvido pelo TSE, Walter Braga Netto desponta como nova liderança da tropa bolsonarista


Candidato a vice-presidente na chapa de Jair Bolsonaro, mas absolvido por unanimidade pelo Tribunal Superior Eleitoral no julgamento que deixa o ex-capitão longe das urnas pelos próximos oito anos, Walter Braga Netto é hoje a maior aposta do bolsonarismo para manter unidas suas tropas – nos sentidos próprio e figurado. Ungido pelo presidente nacional do PL, Valdemar Costa Neto, ao posto de secretário de Relações Institucionais do partido, o general da reserva, que também comandou o Ministério da Defesa e a Casa Civil no governo passado, será um dos condutores das discussões travadas entre a direção nacional, parlamentares e governadores na reunião de quinta-feira 6 em Brasília, que deve analisar os possíveis rumos da “direita bolsonarista” após a confirmação de que, ao menos nas próximas eleições presidenciais, Bolsonaro é carta fora do baralho. Indicado para organizar os diretórios regionais do PL e a montagem dos palanques para as eleições municipais do ano que vem, Braga Netto também vem cumprindo nas últimas semanas uma extensa agenda de viagens e conversas que têm como norte a busca por candidatos a prefeito, que ao mesmo tempo mantenham acesa a chama bolsonarista e não interfiram nos interesses e arranjos do partido nos estados.
Na ótica bolsonarista, a favor de Braga Netto contam seu bom trânsito com militares da ativa e da reserva, bem como sua ascendência sobre as forças de segurança estaduais de modo geral. Da mesma forma, conta o canal aberto de diálogo que mantém com correligionários ou aliados de peso, a exemplo dos governadores Cláudio Castro, do Rio de Janeiro, e Tarcísio de Freitas, de São Paulo. Tanta desenvoltura tem feito, inclusive, com que o general seja apontado no PL como o nome ideal para enfrentar o prefeito do Rio, Eduardo Paes, do PSD, que tentará a reeleição com o provável apoio do presidente Lula. A decisão, segundo fontes do partido consultadas por CartaCapital, caberá ao próprio Braga Netto, que antes precisará equacionar os interesses do clã Bolsonaro, de Castro e do líder do PL na Câmara, Altineu Côrtes, que preside a legenda no estado.
Durante a intervenção das Forças Armadas no Rio, o general fechou os olhos para a expansão das milícias
Não será tarefa fácil, pois no campo da direita há quem entenda que a concretização da candidatura do ex-ministro deixaria automaticamente à disposição de seus adversários um variado arsenal de petardos com enorme potencial de causar estragos na campanha eleitoral. Em um eventual debate, Braga Netto certamente seria fustigado a falar de sua participação nos arroubos golpistas de Bolsonaro que resultaram nas invasões de 8 de janeiro, de sua conivência com o abuso de poder político e econômico com fins eleitoreiros no último ano de governo e, sobretudo, das inúmeras denúncias de violações de direitos humanos cometidas à época em que o general, então à frente do Comando Militar do Leste, comandou a intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro decretada pelo então presidente Michel Temer.
Nesse período, no qual ocorreram os assassinatos da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, houve, segundo levantamentos de organizações da sociedade civil, aumento dos índices de letalidade policial e expansão das milícias em todo o estado. “Braga Netto terá dificuldades eleitorais por conta de sua forte associação com a intervenção. Criou-se um contencioso em relação à condução do general naquele período que poderá ser explorado por seus adversários”, diz o cientista político Ricardo Ismael, da PUC Rio.
Decretada em fevereiro de 2018, na semana do Carnaval, a intervenção chefiada por Braga Netto, que naquela ocasião passou a comandar a Polícia Militar, a Polícia Civil e o Corpo de Bombeiros, foi responsável pelo recrudescimento da violência nas favelas do Rio e ficou marcada por inúmeros episódios de constrangimento de moradores submetidos a revistas vexatórias e fichamentos forçados, invasões de domicílio e até mesmo estupros. Um relatório da Comissão Popular da Verdade divulgado apenas quatro meses após o início da intervenção já apontava, na comparação com o mesmo período do ano anterior, um aumento de 60% nos registros de enfrentamentos entre policiais e traficantes e de 28% nos homicídios decorrentes de ação policial. “A intervenção atingiu especialmente territórios favelados, periféricos e negros da Região Metropolitana”, afirma o professor Rafael Maul, integrante do Grupo Tortura Nunca Mais no Rio de Janeiro.
Terreno perdido. Heleno e Mourão, do “Grupo do Haiti”, acabaram ofuscados pelo traquejo político de Braga Netto – Imagem: Carolina Antunes/PR
Segundo dados do Ministério Público Estadual e do Grupo de Estudos de Novos Legalismos da Universidade Federal Fluminense (UFF), a curva de crescimento das milícias no Rio, que já era ascendente desde 2016, ganhou impulso durante a intervenção. Curiosamente, essa expansão se deu em 90% sobre territórios que não eram dominados pelo tráfico, mas passaram a ficar sob o controle dos grupos paramilitares, o que explica em parte a formação de um “caldo de cultura” que permitiu o surgimento da onda bolsonarista a partir do Rio. “Com a intervenção, houve uma série de acordos e rearranjos de poderes. O período coincide com a ascensão de Braga Netto no bolsonarismo, uma vez que Bolsonaro, historicamente, é também próximo às forças milicianas”, diz Maul. Ele ressalta a importância daquele momento para a história recente do Brasil: “Era o governo Temer e, de certa maneira, a intervenção também marca o processo de transição desde o golpe contra Dilma Rousseff até o bolsonarismo”.
Para o historiador Francisco Carlos Teixeira, especialista em questões de Defesa e idealizador do Dicionário de História Militar do Brasil (1822-2022), o “sucesso” no comando da intervenção levou o general a um lugar de destaque no bolsonarismo. “Depois de sua passagem pela segurança do Rio, ele se aproximou e ficou cada vez mais íntimo do governo Bolsonaro. Tornou-se ministro, vice na chapa presidencial e uma pessoa de confiança que fala com as bases militares e policiais ao lado de Bolsonaro”, diz. Teixeira avalia que “não dá para separar Braga Netto de Bolsonaro, como o TSE fez no julgamento na ação do PDT”, e aponta uma “contradição” no voto do relator Benedito Gonçalves: “O ministro sublinha inúmeras vezes a participação de militares na tentativa de golpe, mas pede a exclusão do general Braga Netto. Mais uma vez parece que funcionou aquela máxima de que não se deve mexer com os militares. E, assim, a tutela militar sobre a República se mantém inabalável”.
No TSE, o general ainda responde a outros 11 processos que podem abreviar sua carreira política
Teixeira ressalta que Braga Netto foi paulatinamente ganhando terreno junto a Bolsonaro no decorrer do governo, em detrimento do chamado “Grupo do Haiti”, liderado pelo então vice e hoje senador Hamilton Mourão. “Era um general administrativo que não tinha uma função específica de comando que fosse muito clara e importante. A relevância de Braga Netto ocorre quando ele é indicado para a intervenção federal e entra em contato diretamente com as bases do bolsonarismo no Rio.” Embora não tenha a simpatia do Alto-Comando das Forças Armadas, analisa o especialista, Braga Netto goza de prestígio nas médias patentes, junto às quais personifica uma determinada narrativa: “Muitos quadros médios, de major e capitão até sargento e cabo, estão convencidos de que os ministros do Supremo invadiram os atributos do presidente da República e não deixaram Bolsonaro governar. Braga Netto fala para esses quadros mais baixos da hierarquia militar com muita facilidade e busca manter viva a ideia de que a Lava Jato foi vítima de um complô que partiu dos tribunais superiores para ‘descondenar’ Lula e entregar a Presidência da República a ele. Essa narrativa ainda tem um grande efeito sobre a caserna”.
Outro flanco a ser explorado pelos adversários é a eventual responsabilidade de Braga Netto na criação do clima golpista que levou aos atos de 8 de janeiro. Pouco antes das eleições que deram a vitória a Lula, o general protagonizou uma fala emblemática em conversa com apoiadores no cercadinho do Palácio da Alvorada: “Tenham fé. Esta é a única coisa que posso dizer agora”. Durante a campanha eleitoral, o candidato a vice-presidente comandou em uma mansão, no Lago Sul de Brasília, uma espécie de “central do golpe”, que recebia empresários, políticos, militares e outros apoiadores de Bolsonaro para discutir as estratégias do questionamento às eleições. “Tudo deve ser investigado. Hoje, com clareza, nós temos como conspiradores o tenente-coronel Mauro Cid e os coronéis Élcio Franco e Jean Lawand, além de outros oficiais de alta patente da ativa diretamente envolvidos por ação ou inação. Eles tinham informes de inteligência e nada fizeram nem depois que começou a depredação em Brasília”, diz Teixeira.
Caso consiga se sair bem em suas novas funções políticas no PL e no diálogo com as Forças Armadas e de segurança pública, o general ainda precisa crescer politicamente em outros setores, para se tornar de fato um nome forte do bolsonarismo, inclusive com olhos postos nas eleições de 2026. Entre suas deficiências está a falta de proximidade com os eleitores evangélicos: “Eu não sei se Braga Netto consegue aglutinar todos os segmentos do bolsonarismo e evitar que saiam divididos durante o processo de 2026. Ele não parece ter o carisma necessário. Tem bom trânsito com os militares, mas os evangélicos estão mais divididos, inclusive em diferentes partidos, como o Republicanos”, pondera Luiz Eduardo Motta, diretor do Laboratório de Estudos sobre Estado e Ideologia da UFRJ.
TSE. “Como dissociar Braga Netto dos atos de 8 de janeiro?”, indaga Francisco Teixeira – Imagem: Joedson Alves/ABR
Para Ricardo Ismael, o secretário de Relações Institucionais do PL pode até crescer e contornar sua falta de estofo político com as movimentações que tem feito pelo partido, mas isso demanda a confirmação de uma transformação em curso: “Acho que Braga Netto terá muitas dificuldades pela frente, sobretudo para construir apoios e alianças. Nunca se conduziu de forma agregadora na área pública, é uma pessoa mais discreta e com pouca movimentação nos meandros da política”.
O PL e Valdemar Costa Neto continuarão a apostar suas fichas no general. Ao lado de Michelle Bolsonaro, ele foi uma das estrelas das inserções gratuitas de propaganda do partido no rádio e na tevê exibidas em vários estados nas últimas semanas. Circunspecto, Braga Netto pede a adesão de “todos os brasileiros que acreditam nas pautas que defendemos”. Para virar realidade como alternativa bolsonarista, mesmo absolvido dos crimes de abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação que levaram à inelegibilidade de Bolsonaro, o general terá, no entanto, de torcer para não ser enquadrado pela Justiça Eleitoral. No TSE, ele ainda responde a outros 11 processos com denúncias que vão desde o uso indevido do crédito consignado para beneficiários do Auxílio Brasil até a propaganda eleitoral indevida durante o funeral da rainha Elizabeth II. •
Publicado na edição n° 1267 de CartaCapital, em 12 de julho de 2023.
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.