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Metade dos lares brasileiros agora é chefiada por mulheres, e isso também tem relação com o elevado abandono parental

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No aperto. Desta vez, Silvia Carvalho da Silva não poderá fazer a festinha de aniversário dos filhos, Manuella e Christian. “O orçamento está curto”, lamenta – Imagem: Acervo Pessoal de Silvia Carvalho Silva e iStockphoto
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Na quinta-feira 7, Manuella fez 8 anos e, alguns dias depois, o irmão, ­Christian, completará 10. Apesar de ambos terem boas notas na escola e de o filho mais velho ter acabado de avançar uma etapa das Olimpíadas de Matemática, não haverá festa, nem mesmo um bolinho. “O orçamento está curto. Conversei com eles, expliquei. É frustrante, mas não vai dar”, lamenta a mãe, Silvia Carvalho da Silva, que assim como milhares de mulheres brasileiras, se desdobra em múltiplas jornadas para dar conta do trabalho, da casa e das crianças. Mãe solo há três anos, a jovem de 32 trabalha em uma central de relacionamento de uma construtora, na capital paulista, e conta com a ajuda dos pais para cuidar dos filhos no contraturno escolar. Do ex-marido não tem nem notícias. “Me bloqueou em tudo.” A mulher diz que ele paga uma pemodesta pensão, mas quase nunca dá as caras. “As crianças ficam muito sentidas. Perguntam, e é difícil explicar.”

A história da família de Silvia é um quadro cada vez mais comum no Brasil. A quantidade de mulheres que chefiam famílias avançou muito nos últimos anos, e agora se equipara à de homens, segundo o novo Censo do IBGE. Em 2022, 49% dos lares brasileiros eram comandados por elas, enquanto os homens continuavam como responsáveis em 51% dos domicílios, 10 pontos porcentuais a menos do que em 2010. Por um lado, isso é sinal de um maior protagonismo feminino no mercado de trabalho, que fez com que muitas mulheres ganhassem autonomia financeira e se tornassem as principais provedoras da casa. Especialistas alertam, porém, que o abandono parental também é um forte componente da mudança em curso. Isso porque, em 29% dos lares chefiados por mulheres, há a presença de ao menos um filho e a ausência de cônjuge. Ou seja, elas são mães solo. Nos domicílios comandados por homens, o porcentual despenca para 4,4%.

Para cuidar dos filhos, são fundamentais as redes de apoio familiar, comunitária e do Estado, avalia Silvia. No caso dela, a rotina começa às 5 da manhã, quando prepara os filhos para a escola. Depois de acomodá-los na van escolar da prefeitura, a mãe vai para o trabalho e só retorna por volta das 20 horas. “Quando chego, a gente conversa, eu vejo as lições de casa, mas logo preciso cuidar do jantar e da limpeza.” No período da tarde, sob os cuidados dos avós, as crianças fazem atividades extracurriculares no Sesc, e até psicoterapia, por meio de um programa de atendimento gratuito da Universidade Mackenzie. “Tem sido fundamental para as crianças lidarem com a ausência do pai”, conta. Formada em Marketing, ela gostaria de fazer especializações na carreira, mas não sobra tempo nem dinheiro. “Já interrompi minha pós-graduação umas cinco vezes, porque sempre preciso escolher entre pagar o curso ou comprar comida, estudar ou comprar o material escolar dos filhos.”

Em 29% dos lares comandados por elas, há a presença de um filho e a ausência do cônjuge. São as mães solo

Não por acaso, o Bolsa Família, principal programa de transferência de renda do País, prioriza as mulheres na entrega dos cartões de benefícios. “Estudos demonstraram que a mulher vai usar esse recurso em prol do conjunto familiar, especialmente dos filhos”, explica Joana Costa, diretora do Departamento de Monitoramento e Avaliação da Secretaria de Avaliação, Gestão da Informação e Cadastro Único, o ­CadÚnico. “Além disso, uma renda fixa estável, mesmo que seja pequena, dá a essa mulher um poder de barganha nas decisões sobre o orçamento familiar.”

O CadÚnico coleta dados e informações para identificar as famílias de baixa renda e incluí-las nos programas de assistência social e distribuição de renda. No cadastro, 73,8% dos beneficiários na primeira infância, até 3 anos de idade, são de famílias de arranjo monoparental. Isso demonstra que os lares chefiados por mães solo são mais vulneráveis economicamente. “Há um leque de políticas que inclui segurança alimentar, cisternas e outros programas de assistência que acaba beneficiando principalmente as mulheres, porque um lar onde tem apenas um provedor de renda, a vulnerabilidade é mais alta”, explica Costa.

Mesmo em lares com dois responsáveis é comum que as mulheres estejam sobrecarregadas, pois precisam conciliar o trabalho com a dedicação aos filhos e aos afazeres domésticos. “A maior presença das mulheres no mercado não teve contrapartida dos homens no trabalho de cuidado”, alerta Laís Abramo, secretária nacional de Cuidados e Família.

Sem amparo. Atualmente, apenas 40% das crianças de zero a 3 anos estão matriculadas em creches. A falta de vagas angustia as mães que trabalham – Imagem: Andréa Rêgo Barros/Prefeitura de Recife

O trabalho de cuidado envolve um amplo conjunto de atividades que visam atender às necessidades físicas e psicológicas de outras pessoas, como cozinhar, limpar a casa, lavar as roupas, além do auxílio a quem apresenta diferentes graus de dependência, como bebês, crianças, idosos e pessoas com deficiência. Quase sempre, isso recai sobre as mulheres. Para que tais atividades sejam encaradas como responsabilidade familiar, e não feminina, a Secretaria está desenvolvendo uma Política Nacional de Cuidados, a fim de promover uma corresponsabilização. “São políticas destinadas, entre outras coisas, a fazer com que os homens entendam que eles também têm de participar do trabalho de cuidado.”

Abramo destaca que a ausência masculina nessas atividades, bem como o abandono parental, é estrutural no Brasil e na América Latina, mas o “discurso misógino proferido por determinados setores políticos sem dúvida reforça esse papel”. A secretária acredita, porém, haver espaço para avançar enquanto sociedade. “Participar do cuidado é um trabalho, mas também é um direito. Mas, muitas vezes, o tempo dedicado nas atividades profissionais não permite.” Por isso, uma das ações da pasta será uma campanha de esclarecimento sobre a licença-paternidade. “Cinco dias são insuficientes”, critica. “É preciso garantir aos pais esse direito ao cuidado.”

No CadÚnico, sete em cada dez beneficiários na primeira infância são de famílias de arranjo monoparental

De acordo com o advogado Ariel de Castro Alves, ex-secretário nacional dos Direitos das Crianças e dos Adolescente, o impacto negativo do abandono parental sobre a vida das crianças e adolescentes é imenso. “Ao crescer sem uma referência paterna, esses jovens tendem a seguir o exemplo e repetir esse ciclo de abandono. A vulnerabilidade só se agrava”, lamenta. O cenário é grave e demanda atenção constante do Estado, alerta o especialista. “Assim como existe o Agente de Saúde, deveria existir um Agente Social, para visitar as famílias mais vulneráveis, constatar a situação e conseguir encaminhar para as soluções mais viáveis.”

Atualmente, apenas 40% das crianças de zero a 3 anos estão matriculadas em creches. Uma parcela não está por opção familiar, mas a maioria porque não tem vaga. “Nesse caso, as mães solo deveriam ser priorizadas, e isso não acontece hoje”, afirma Alves, que também presidiu o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). Sobrecarregadas, essas mulheres muitas vezes delegam o cuidado dos filhos a terceiros, como vizinhos e parentes, e isso pode gerar complicações sérias. “Se acontece um problema grave, a mãe ainda pode ser condenada por abandono de vulnerável. Ninguém leva em conta as falhas do Estado”, observa o advogado, lembrando que as mães devem acionar a Justiça para que os pais cumpram suas responsabilidades, como pagamento de pensão e visitas regulares. “Mesmo que o pai escolha ausentar-se, as crianças têm o direito de crescer com alguma referência. O Judiciário pode, inclusive buscar restabelecer laços com a família paterna, incluindo avós e tios.”

A advogada Daniele Akamine atende vítimas de violência doméstica e mães solo na periferia de São Paulo, em sua maioria mulheres negras. “Com essa carga excessiva de trabalho e de responsabilidades, o impacto na saúde mental é imenso”, alerta. Além disso, as crianças costumam demonstrar insegurança e dificuldade de se relacionar no ambiente escolar. Fundadora do Instituto Akamine, a especialista busca reverter esse cenário com campanhas direcionadas aos pais sobre a importância da paternidade responsável. “Um menino que foi abandonado na infância, e tornou-se pai na adolescência, não vai sentir-se na obrigação de cuidar do filho. O ciclo se repete”, lamenta. Para as mulheres, a instituição presta apoio psicológico e social, promove programas de capacitação profissional e também rodas de conversa, porque “muitas ficam isoladas pela própria rotina”. •

Publicado na edição n° 1336 de CartaCapital, em 13 de novembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Família tradicional’

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