Política
Falência múltipla
Em meio à estagnação econômica e produtiva, o estado enfrenta o risco de colapso de serviços essenciais


Quem nasceu no Rio de Janeiro e tem mais de 40 anos certamente se lembra de uma autodepreciativa versão da música-hino Cidade Maravilhosa, na qual o bom humor carioca enchia o peito para cantar “de dia falta água, de noite falta luz”. O tempo passou e, embora a histórica precariedade dos serviços básicos tenha sido atenuada ao longo dos últimos anos, a cidade e o estado não pararam de crescer, assim como a complexidade de seus problemas. Menos de uma década após viver a euforia do crescimento econômico nacional, se colocar na vanguarda em projetos de Parceria Público-Privada e sentir o gosto da promessa de se tornar um novo cluster industrial e tecnológico, o Rio encara a ressaca da estagnação econômica e produtiva, agravada pelo risco de falência múltipla de serviços essenciais à população.
Nos últimos meses, de forma quase simultânea, as empresas concessionárias Light (energia elétrica), Supervia (trens) e CCR (barcas) ameaçaram interromper seus serviços e abandonar as respectivas concessões. Além disso, um imbróglio que envolve a empresa concessionária e as três esferas de governo em torno da utilização do Aeroporto Tom Jobim, no Galeão, ameaça deixar de vez o Rio sem voos internacionais. Para tentar rever os contratos firmados, as empresas alegam dificuldades de operação causadas por problemas de segurança pública e a criação de um ambiente hostil aos negócios em consequência da paralisia econômica do estado.
O Poder Público, por sua vez, demonstra dificuldade para encontrar saídas em um cenário que combina degradação dos equipamentos e serviços prestados, falta de ação adequada por parte das agências reguladoras e crise estrutural. “Há uma crise específica no Rio de Janeiro, o que faz as empresas perderem receita. Além disso, o setor público no estado está desestruturado. Por fim, há a questão da violência e dos territórios controlados por milícias ou pelo tráfico”, diz o economista e professor da UFRJ Mauro Osório, especialista em temas ligados ao desenvolvimento econômico fluminense.
No Galeão, o número de passageiros despencou a menos da metade. Em 2019, eram 13,9 milhões. No ano passado, foram apenas 5,8 milhões
Na noite de 2 de junho, ao apagar das luzes do prazo legal estipulado em contrato, a Light Sesa, que opera no Rio, enviou ao Ministério das Minas e Energia e à Agência Nacional de Energia Elétrica seu pedido de renovação de concessão por mais 30 anos. O contrato em vigor, de mesma duração, expira somente em 4 de junho de 2026, mas uma de suas cláusulas determina que o requerimento de renovação seja encaminhado pela empresa concessionária 36 meses antes de seu término. A holding da Light anunciou este ano dívidas que chegam a 11 bilhões de reais e, desde o início de junho, entrou em regime de recuperação judicial. No caso do Rio, o pedido não coloca um ponto final nas queixas apresentadas pela empresa em uma lista que inclui roubo de fios, roubo de energia (o popular gato) e impossibilidade de acesso em áreas consideradas de risco. “A renovação antecipada do contrato de concessão, revisado para alcançar bases sustentáveis, é fundamental para que a empresa volte a ter acesso a crédito e ajuste sua estrutura de capital”, diz Octávio Lopes, presidente do Grupo Light.
A Aneel solicitou à Light a elaboração de um plano de ação para o cumprimento de obrigações, como, por exemplo, redução de perdas e reequilíbrio de caixa. Já a empresa anunciou, na segunda-feira 5, que propôs à agência reguladora um reajuste extraordinário de 10% nas tarifas para “cobrir prejuízos causados pelos gatos”, e afirma que 50% da energia produzida é atualmente desviada pelas ligações clandestinas. O último reajuste, de 7,4%, aconteceu em março. “Não vejo espaço fiscal no governo para absorver parte das perdas com os gatos”, diz Sandoval Feitosa, diretor-geral da Aneel. Ele diz que não há previsão de intervenção, pois a concessionária cumpre suas obrigações setoriais, mas admite que os “problemas associados à Light são recorrentes” e precisam ser enfrentados. “Pode ser algo ligado à concessão ou às gestões que passaram pela empresa, não existe uma causa raiz”, opina.
Um problema constatado no setor de energia do Rio é a pouca efetividade da Agência Reguladora de Energia e Saneamento Básico (Agenersa). Coautor de um projeto de lei que buscava modernizar a agência e aumentar a participação social em seu colegiado, o deputado estadual Carlos Minc, do PSB, viu a iniciativa ser barrada pelo governador Cláudio Castro. “Fizemos uma lei bem moderna, mas o governo foi à Justiça dizer que não tínhamos prerrogativa para tomar qualquer iniciativa sobre isso”, diz. Essa lei, acrescenta o ex-ministro do Meio Ambiente, garantia a presença dos usuários na composição da Agenersa e impedia a nomeação de ex-presidentes do Metrô e da Supervia, de deputados e seus indicados. “As agências são muito ineficientes e politizadas. As agências modernas, em outros países e em alguns estados, avaliam metas por resultado e muitas vezes convertem multas em ações de melhoria dos serviços.” Já Osório lembra que qualquer cenário de transformação de um monopólio público em privado demanda uma agência reguladora organizada, com um competente quadro de funcionários. “Sem isso, haverá dificuldades. As agências reguladoras do Rio estão muito frágeis e necessitam de concurso público. Essa carência é outro elemento que explica o momento pelo qual o estado está passando.”
Sob pressão. Impaciente com a novela da renovação das concessões, o governador Cláudio Castro cobra um posicionamento claro das empresas que desejam sair do Rio – Imagem: Tânia Rêgo/ABR e GOVRJ
No caso do aeroporto internacional, o descompasso entre o Poder Público e a concessionária, controlada pela Changi Airport, é ainda maior. A empresa de Cingapura anunciou, em fevereiro do ano passado, sua intenção de abandonar a concessão, 17 anos antes do previsto, devido às dificuldades de faturamento, uma vez que o aeroporto teve sua circulação de passageiros reduzida de 13,9 milhões em 2019 para 5,8 milhões no ano passado. Com a troca de comando no governo federal, entretanto, o CEO internacional da Changi, Eugene Gan, teria anunciado ao Ministério dos Portos e Aeroportos sua intenção de voltar atrás e continuar a gerir o Galeão. Apesar disso, a empresa simplesmente ignorou o prazo estipulado pelo ministro Márcio França, esgotado em 31 de maio, para informar se pretende ou não continuar com a concessão. Caso desista de administrar o Galeão, a concessionária deverá imediatamente recolher a outorga de operação fixada em 1,3 bilhão de reais.
Inicialmente, há o entendimento jurídico de que, uma vez aberto o processo de devolução da concessão, este não poderá ser interrompido. Ainda assim, diante do tamanho do problema que seria reorganizar do zero um processo licitatório para a gestão do Galeão, o governo decidiu fazer uma consulta formal ao Tribunal de Contas da União sobre a possibilidade de reversão do quadro em caso de permanência da Changi. A decisão final do TCU caberá ao ministro Vital do Rêgo, relator do caso, mas ele terá de arbitrar com base em dois pareceres bastante distintos emitidos pela área técnica do Tribunal: “Após a assinatura do termo aditivo de relicitação, a Administração Pública está vinculada a dar prosseguimento ao novo processo licitatório que se encerra com a extinção do contrato vigente”, avaliou o auditor André de Albuquerque Farias, para quem a concessionária não pode mais voltar atrás em seu pedido de desistência. A segunda avaliação, feita pelo auditor Cleiton Rocha dos Santos, é oposta: “Verifica-se que o objetivo do primeiro questionamento é entender se seria possível a revisão de tal processo mediante novo acordo. Nesse sentido, sugere-se a possibilidade de continuidade do contrato de concessão, retornando-se ao momento imediatamente anterior ao da relicitação”, escreveu.
A bola agora está com Vital do Rêgo. Procurado por CartaCapital, o ministro informou por intermédio de sua assessoria que “ainda não há decisão” e que os documentos relativos ao processo “não estão públicos no momento”. Já o ministro Márcio França informou que “aguarda a manifestação do Tribunal de Contas da União” para voltar a dar declarações públicas sobre o assunto. A paciência não é compartilhada pelo governador do Rio, que, na quinta-feira 1º, deu um ultimato para que a Changi se manifeste em até 15 dias: “Chegou a hora de a gente agir e tomar uma decisão independentemente do que a Changi queira ou não fazer. Não podemos ficar reféns. Se quiserem ir embora, que vão. Se quiserem se ajeitar, se ajeitem”. Castro diz que o interesse do governo é resolver o impasse o quanto antes: “A gente quer que se resolva. Por óbvio, você ter um dos maiores operadores mundiais saindo daqui não é uma coisa boa para o Rio. Mas, se for a solução, paciência”.
A Mitsui pretende abandonar a concessão dos trens da Supervia
Castro já se prepara para viver problema semelhante ao do Galeão no caso que envolve a Mitsui, empresa do grupo japonês Gumi, terceira a tentar fazer a gestão dos trens urbanos no Rio nos últimos 25 anos. Em abril, a concessionária anunciou sua decisão de abandonar a concessão após o governo determinar a “injeção de vultosos recursos financeiros” para reverter um cenário que inclui péssimo serviço, uma das tarifas mais caras do Brasil (7,40 reais) e um cotidiano de problemas que vai desde o roubo de fios, equipamentos e sinalizações até a ocupação das plataformas por vendedores de drogas nas estações mais afastadas do Centro ou próximas de comunidades dominadas pelo tráfico. No caso das barcas, a empresa CCR quer deixar a concessão por conta da “redução do número de passageiros” e do “acúmulo de lixo nas águas da Baía de Guanabara” que dificultam a operação. O governo propôs o pagamento de 752,6 milhões de reais para que a empresa permaneça operando as barcas pelos próximos dois anos, período em que seria realizada nova licitação, mas o acordo é questionado pelo Ministério Público do Rio.
A novela parece longe de acabar: “Há aspectos combinados que prejudicam a eficácia de todos esses serviços. Há perdas derivadas do período da pandemia, por isso várias empresas que estão ameaçando entregar suas concessões querem vantagens”, diz Minc. O parlamentar descarta uma ação orquestrada das empresas contra o Estado: “Não acredito na tese do complô. Uma parte do que as concessionárias querem é até cabível, porque hoje há prejuízos. Mas algumas aproveitam para exagerar e aí acontece uma queda de braço com pouca transparência”. A crise dos serviços de concessão, alerta Mauro Osório, permanecerá enquanto não for solucionada a atual “falta de dinamismo econômico” fluminense: “O Rio teve uma perda de participação no PIB nacional de 40% e passou da segunda para a sexta posição entre os estados com mais empregos na indústria de transformação, ultrapassado por Minas, Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina. Então, a gente tem aqui uma crise específica que afeta o consumo e a demanda e, provavelmente, está afetando essas empresas”. •
Publicado na edição n° 1263 de CartaCapital, em 14 de junho de 2023.
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