Política

Faísca heterodoxa

Artigo do sociólogo José Luís Fiori abre debate sobre os rumos do “desenvolvimentismo de esquerda”

A "Escola de Campinas" reage à provocação de ter se tornado tecnocrática e obtusa. Foto: "A Provacação", ilustração de autor desconhecido, de 1776
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Tivesse vindo ao mundo por obra e arte de Alexandre Schwartsman, o ex-diretor do BC, baluarte da old fashioned ortodoxia, seria o caso de dizer como o poeta que não havia nada de novo sob o sol. Mas não foi assim, e daí a origem da polêmica que há algumas semanas agita, discretamente é verdade, os corredores do Instituto de Economia da Unicamp, berço da chamada escola campineira de pensamento econômico.

O combustível da fogueira, para surpresa e mal-estar de “campineiros” ilustres, foi um artigo publicado há algumas semanas pelo sociólogo e economista José Luís Fiori, parceiro de longa data de Maria da Conceição Tavares, com quem divide espaço na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o outro polo da mesma matriz heterodoxa, contrária à ortodoxia monetarista e ao liberalismo, que caracteriza a turma paulista de João Manuel Cardoso de Mello, Luiz Gonzaga Belluzzo, Wilson Cano e Luciano Coutinho.

Publicado originalmente no jornal Valor, o artigo de Fiori causou estranheza. Intitulado O “desenvolvimentismo de esquerda”, com aspas, o texto volta aos anos 1930 de Getúlio Vargas, onde localiza as raízes de um programa desenvolvimentista “militar e conservador”. A partir dos anos 1950, teria nascido sua versão “de esquerda”, segundo Fiori, no momento em que as ideias desenvolvimentistas foram encampadas pelo Partido Comunista Brasileiro, que apoiou Juscelino Kubitschek e seu projeto dos 50 anos em cinco. A genealogia inclui o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), criado em 1955 para projetar uma saída “nacional-desenvolvimentista” para o País. E ainda a Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), sediada no Chile.

A ruptura política de 1964, contudo, mudaria o rumo dessa história, como é sabido. “Três dias depois do golpe, o Iseb foi fechado; o PCB voltou à ilegalidade e a própria Cepal fez uma profunda autocrítica de suas antigas teses desenvolvimentistas. Mesmo assim, apesar dessas condições políticas e intelectuais adversas, formou-se na Universidade de Campinas, no final dos anos 1960, um centro de estudos econômicos capaz de renovar as ideias e as interpretações clássicas – marxistas e nacionalistas – do desenvolvimento capitalista brasileiro”, anota Fiori. “Hoje parece claro que a ‘época de ouro’ da Escola de Campinas foi da década de 1970 até a sua participação decisiva na formulação do Plano Cruzado, que fracassa em 1987. É verdade que logo depois do Cruzado, e durante toda a década de 1990, a crise socialista e a avalanche neoliberal arquivaram todo e qualquer debate desenvolvimentista. (…) Mas parece claro que a própria escola recuou, nesse período. E dedicou-se cada vez mais ao estudo de políticas setoriais e específicas, e para a formação cada vez mais rigorosa de economistas heterodoxos e de quadros de governo”.

Em seguida o sociólogo ajusta a sua pontaria. “Com raras exceções, depois do Cruzado, a ‘escola campineira’ perdeu sua capacidade de criação e inovação dos anos 1970, e a maioria das suas ideias e intuições originárias acabaram se transformando em fórmulas escolásticas. Por isso, não é de estranhar que neste início de século XXI, quando o desenvolvimentismo e a escola campineira voltaram a ocupar- um lugar de destaque no debate nacional, a sensação que fica da sua leitura é que o ‘desenvolvimentismo de esquerda’ estreitou tanto o seu ‘horizonte utópico’ que acabou se transformando numa ideologia- tecnocrática, sem mais nenhuma capacidade de mobilização social. Como se a esquerda tivesse aprendido a navegar, mas ao mesmo tempo tivesse perdido a sua própria bússola”, provoca Fiori.

Coordenador da Rede Desenvolvimentista e representante ativo da “nova geração campineira”, o economista Ricardo Carneiro, professor do IE/Unicamp, ao ler o trecho final do artigo de Fiori, enviou seu e-mail de protesto ao autor. “Eu disse a ele que se o debate relevante ao País não está no desenvolvimentismo, onde está então? Quem está fazendo isso? É o PSOL? É alguma ONG? Não é na UFRJ, que na verdade tem menos expressão do que aqui. E se ele acha que não está em nenhum lugar, então vá pra casa, se aposente. Para mim existe e está nesse burburinho desenvolvimentista que junta contribuições de governos, universidades e da sociedade civil. Propusemos trazer essa discussão para dentro da universidade, mas ele não quis participar.”

Um fórum adequado seria a Rede Desenvolvimentista, criada em dezembro passado, hoje com 52 participantes, a maioria da Unicamp e UFRJ, entre os quais o próprio Fiori, mas também outros “medalhões” associados ao pensamento heterodoxo, como Carlos Lessa e Luiz Carlos Bresser-Pereira.

“Concordo com a crítica da fragmentação das análises mais recentes, mas esta é uma constatação que não dependeu das pessoas, mas das conjunturas. Curioso é que o Fiori não vê que o próprio desenvolvimento recente do País favorece uma retomada da discussão mais ampla”, acrescenta Carneiro. “E não vejo qual o problema de ter um pensamento que resulte em quadros para trabalhar no governo, apesar de eu e vários outros terem preferido permanecer na academia. O desenvolvimentismo não é uma concepção teórica. É uma estratégia de desenvolvimento. E claro que é possível dar ao desenvolvimentismo um conteúdo na direção do socialismo, mas para isso é preciso ampliar a oferta de bens públicos para reduzir as desigualdades no longo prazo. A história nova foi colocar o social no eixo do desenvolvimentismo.”

Fernando Nogueira da Costa, colega de Carneiro na Unicamp, segue a mesma linha de análise: “Podemos dizer que a tradição aqui é, sim, desenvolvimentista, ao contrário da USP de Fernando Henrique Cardoso, que sempre foi anti-Vargas. E hoje, participando dos governos de Lula e Dilma, estamos seguindo essa tradição”. E acrescenta: “A crítica do Fiori é válida, provocadora de todo um debate e não deve ser descartada. Mas ele atacou quem ele não leu, já que a minha geração pôde publicar pouco, mas tem produção eletrônica e de pesquisa muito relevante. O IE começou com nove professores, nos anos 1960, mas já teve 110 no total. E ganhou escala com centros de pesquisa especializados, núcleos de excelência em várias áreas. É uma geração especialista porque aquela visão sistêmica já tinha sido feita, o diagnóstico geral, então precisávamos aprofundar as análises.”

Procurado por CartaCapital, Fiori respondeu que preferia não se manifestar.

Tivesse vindo ao mundo por obra e arte de Alexandre Schwartsman, o ex-diretor do BC, baluarte da old fashioned ortodoxia, seria o caso de dizer como o poeta que não havia nada de novo sob o sol. Mas não foi assim, e daí a origem da polêmica que há algumas semanas agita, discretamente é verdade, os corredores do Instituto de Economia da Unicamp, berço da chamada escola campineira de pensamento econômico.

O combustível da fogueira, para surpresa e mal-estar de “campineiros” ilustres, foi um artigo publicado há algumas semanas pelo sociólogo e economista José Luís Fiori, parceiro de longa data de Maria da Conceição Tavares, com quem divide espaço na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o outro polo da mesma matriz heterodoxa, contrária à ortodoxia monetarista e ao liberalismo, que caracteriza a turma paulista de João Manuel Cardoso de Mello, Luiz Gonzaga Belluzzo, Wilson Cano e Luciano Coutinho.

Publicado originalmente no jornal Valor, o artigo de Fiori causou estranheza. Intitulado O “desenvolvimentismo de esquerda”, com aspas, o texto volta aos anos 1930 de Getúlio Vargas, onde localiza as raízes de um programa desenvolvimentista “militar e conservador”. A partir dos anos 1950, teria nascido sua versão “de esquerda”, segundo Fiori, no momento em que as ideias desenvolvimentistas foram encampadas pelo Partido Comunista Brasileiro, que apoiou Juscelino Kubitschek e seu projeto dos 50 anos em cinco. A genealogia inclui o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), criado em 1955 para projetar uma saída “nacional-desenvolvimentista” para o País. E ainda a Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), sediada no Chile.

A ruptura política de 1964, contudo, mudaria o rumo dessa história, como é sabido. “Três dias depois do golpe, o Iseb foi fechado; o PCB voltou à ilegalidade e a própria Cepal fez uma profunda autocrítica de suas antigas teses desenvolvimentistas. Mesmo assim, apesar dessas condições políticas e intelectuais adversas, formou-se na Universidade de Campinas, no final dos anos 1960, um centro de estudos econômicos capaz de renovar as ideias e as interpretações clássicas – marxistas e nacionalistas – do desenvolvimento capitalista brasileiro”, anota Fiori. “Hoje parece claro que a ‘época de ouro’ da Escola de Campinas foi da década de 1970 até a sua participação decisiva na formulação do Plano Cruzado, que fracassa em 1987. É verdade que logo depois do Cruzado, e durante toda a década de 1990, a crise socialista e a avalanche neoliberal arquivaram todo e qualquer debate desenvolvimentista. (…) Mas parece claro que a própria escola recuou, nesse período. E dedicou-se cada vez mais ao estudo de políticas setoriais e específicas, e para a formação cada vez mais rigorosa de economistas heterodoxos e de quadros de governo”.

Em seguida o sociólogo ajusta a sua pontaria. “Com raras exceções, depois do Cruzado, a ‘escola campineira’ perdeu sua capacidade de criação e inovação dos anos 1970, e a maioria das suas ideias e intuições originárias acabaram se transformando em fórmulas escolásticas. Por isso, não é de estranhar que neste início de século XXI, quando o desenvolvimentismo e a escola campineira voltaram a ocupar- um lugar de destaque no debate nacional, a sensação que fica da sua leitura é que o ‘desenvolvimentismo de esquerda’ estreitou tanto o seu ‘horizonte utópico’ que acabou se transformando numa ideologia- tecnocrática, sem mais nenhuma capacidade de mobilização social. Como se a esquerda tivesse aprendido a navegar, mas ao mesmo tempo tivesse perdido a sua própria bússola”, provoca Fiori.

Coordenador da Rede Desenvolvimentista e representante ativo da “nova geração campineira”, o economista Ricardo Carneiro, professor do IE/Unicamp, ao ler o trecho final do artigo de Fiori, enviou seu e-mail de protesto ao autor. “Eu disse a ele que se o debate relevante ao País não está no desenvolvimentismo, onde está então? Quem está fazendo isso? É o PSOL? É alguma ONG? Não é na UFRJ, que na verdade tem menos expressão do que aqui. E se ele acha que não está em nenhum lugar, então vá pra casa, se aposente. Para mim existe e está nesse burburinho desenvolvimentista que junta contribuições de governos, universidades e da sociedade civil. Propusemos trazer essa discussão para dentro da universidade, mas ele não quis participar.”

Um fórum adequado seria a Rede Desenvolvimentista, criada em dezembro passado, hoje com 52 participantes, a maioria da Unicamp e UFRJ, entre os quais o próprio Fiori, mas também outros “medalhões” associados ao pensamento heterodoxo, como Carlos Lessa e Luiz Carlos Bresser-Pereira.

“Concordo com a crítica da fragmentação das análises mais recentes, mas esta é uma constatação que não dependeu das pessoas, mas das conjunturas. Curioso é que o Fiori não vê que o próprio desenvolvimento recente do País favorece uma retomada da discussão mais ampla”, acrescenta Carneiro. “E não vejo qual o problema de ter um pensamento que resulte em quadros para trabalhar no governo, apesar de eu e vários outros terem preferido permanecer na academia. O desenvolvimentismo não é uma concepção teórica. É uma estratégia de desenvolvimento. E claro que é possível dar ao desenvolvimentismo um conteúdo na direção do socialismo, mas para isso é preciso ampliar a oferta de bens públicos para reduzir as desigualdades no longo prazo. A história nova foi colocar o social no eixo do desenvolvimentismo.”

Fernando Nogueira da Costa, colega de Carneiro na Unicamp, segue a mesma linha de análise: “Podemos dizer que a tradição aqui é, sim, desenvolvimentista, ao contrário da USP de Fernando Henrique Cardoso, que sempre foi anti-Vargas. E hoje, participando dos governos de Lula e Dilma, estamos seguindo essa tradição”. E acrescenta: “A crítica do Fiori é válida, provocadora de todo um debate e não deve ser descartada. Mas ele atacou quem ele não leu, já que a minha geração pôde publicar pouco, mas tem produção eletrônica e de pesquisa muito relevante. O IE começou com nove professores, nos anos 1960, mas já teve 110 no total. E ganhou escala com centros de pesquisa especializados, núcleos de excelência em várias áreas. É uma geração especialista porque aquela visão sistêmica já tinha sido feita, o diagnóstico geral, então precisávamos aprofundar as análises.”

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