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Faca no pescoço

Lula adiou ao máximo a “reforma” ministerial que consagrará o baixo clero do Centrão

Garoto-problema. Até quando as desculpas de Juscelino Filho serão aceitas pelo presidente Lula? – Imagem: Evaristo Sá/AFP e Pablo Le Roy/MCom
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Ana Moser e Márcio França viajaram no mesmo voo de São Paulo para Brasília na segunda-feira 4. Ela estava meio chateada. Ele, bastante contrariado. Ambos conversaram sobre o destino à vista. Seus cargos de ministro haviam entrado na negociação de mudanças no primeiro escalão estudadas por Lula para abrir espaço a dois partidos, PP e Republicanos, e garantir mais apoio na Câmara dos Deputados. França, ministro dos Portos e Aeroportos, tinha sido um dos responsáveis pela surpreendente união do petista com Geraldo Alckmin e por este ter trocado o tucanato pelo PSB para virar companheiro de chapa de Lula. Mais: desistira de disputar o governo de São Paulo em 2022 para apoiar Fernando Haddad, do PT. Ao chegar à capital federal depois do voo em companhia de Ana Moser, a ministra do Esporte, publicou na sua conta na rede X (ex-Twitter) o vídeo de uma música de Carnaval chamada Madeira Que Cupim Não Rói. Penúltima estrofe da canção: E dizer bem alto que a injustiça dói.

No dia seguinte ao desabafo cifrado de França, Lula almoçou com Alckmin para discutir a cota de sacrifício do PSB na mudança ministerial. O repasto terminou inconclusivo. O vice-presidente é também ministro do Desenvolvimento. O presidente esperava que o parceiro de chapa colocasse a pasta à disposição do colega de partido. Nada feito. Caso França saísse de onde estava, o Ministério de Portos e Aeroportos ficaria livre para o Republicanos. Uma solução que embute risco. A legenda tem entre os correligionários o governador paulista Tarcísio de Freitas, cotado para a disputa presidencial em 2026 como representante do bolsonarismo. O novo ministro trabalharia por Lula? Ou por Freitas, defensor da privatização da joia da coroa do ministério, o Porto de Santos? Uma opção dada ao PSB era dividir o Ministério do Desenvolvimento, criar a pasta das Pequenas Empresas e entregá-la a França. Cargo rejeitado pelo PP por falta de robustez e que o pessebista também não queria.

O presidente tem rejeitado abrir mão até do enrolado Juscelino Filho

Ana Moser foi chamada ao Palácio do Planalto na tarde da terça-feira 5, após o almoço de Lula com Alckmin e de um evento presidencial pelo Dia da Amazônia. Os dois conversaram sobre a cobiça do PP pelo Esporte. O partido fazia inclusive planos de turbinar o orçamento da pasta com recursos da taxação de apostas esportivas, ideia que desagradou ao presidente. Lula, segundo quem soube da conversa com a ministra, parecia triste com a hipótese de demiti-la e pediu algumas horas para decidir. Após as reuniões com Ana Moser e Alckmin, um ministro resumiu a situação: “Está tudo enrolado”. A ex-jogadora de vôlei contava com um apoio de peso para ficar. A primeira-dama, Rosângela da Silva, a Janja, é contra reduzir a participação de mulheres no governo. Lula chegou a fazer um gesto a favor da ex-atleta a certa altura das negociações com PP e Republicanos. Posou para uma foto ao lado da ministra em 11 de julho. Não fez, porém, declarações públicas, ao contrário da postura em relação a Nísia Trindade, da Saúde, e Wellington Dias, ministro do Bolsa Família.

A minirreforma ministerial arrastava-se há dois meses e tinha chances de ser selada na quarta-feira 6, dia da conclusão desta reportagem e véspera de uma viagem de Lula ao exterior. O presidente cancelou a agenda para passar o dia no Palácio da Alvorada em busca de uma equação final. Articuladores presidenciais e do “Centrão” sentem-se exaustos com a indefinição. As negociações começaram em 7 de julho, quando os deputados aprovaram a primeira parte da reforma tributária. A turma do “Centrão” foi a Lula cobrar uma recompensa e o petista cometeu um erro na reunião, segundo um auxiliar. Prometeu que resolveria tudo no recesso parlamentar, embora não houvesse um desenho pronto para a adesão do PP e dos Republicanos. O PP queria emplacar Gilberto­ ­Occhi, Lula rejeitava. Occhi foi ministro e presidente da Caixa Econômica Federal sob Dilma Rousseff. Em 2017, foi delatado por um doleiro, Lúcio Funaro, que o acusou de recolher propina no banco estatal e repassá-la ao PP.

Aval. Ao travar as investigações no Supremo, Gilmar Mendes devolveu a Lira a prepotência de dono do Brasil. A Codevasf é uma fábrica de escândalos – Imagem: Cássio Moreira/Codevasf e Marina Ramos/Ag. Câmara

Em uma reunião com a equipe em 16 de agosto, o chefe da articulação política da Presidência, Alexandre Padilha, comentou o motivo de as mudanças no primeiro escalão estarem empacadas: “O presidente quer botar dois partidos no governo, mas não quer criar ministério nem demitir ninguém”.

Não quer decapitar, por ora, nem mesmo Juscelino Filho, ministro enrolado com a polícia e a Justiça. JF, titular das Comunicações, acaba de ter 835 mil reais bloqueados por Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal. O motivo é um esquema criminoso nascido no governo Bolsonaro a envolver verbas da Codevasf, estatal federal criada na década de 1970 para apoiar a região dos vales dos rios São Francisco e Parnaíba. A Polícia Federal investiga a quadrilha há cerca de dois anos e acredita ter chegado aos cabeças. Em 1° de setembro, fez buscas em endereços do ministro, na Operação Benesse. Pretendia vasculhar imóveis de Juscelino Filho. Para os federais, o desvio de verbas dependia de obras incluídas pelo então deputado no orçamento da Codevasf, via emendas. Barroso não autorizou as buscas, mas sequestrou seus bens e afastou a irmã dele, Luanna Rezende, do cargo de prefeita da maranhense Vitorino Freire. O confisco atingiu 18% do patrimônio declarado por Juscelino Filho à Justiça Eleitoral na campanha à reeleição a deputado federal em 2022.

Os indicados para o ministério prosperaram na Câmara à sombra de Arthur Lira

Outro alvo da PF na recente operação sobre a Codevasf foi o dono de uma das duas principais empreiteiras do Maranhão, a Construservice. Eduardo José Barros Costa é notório no estado, chamado de “imperador” e “Eduardo DP”. Um conhecido da polícia. Em 2015, havia sido preso pela Polícia Civil estadual em uma apuração sobre desvios de verbas públicas. Em julho do ano passado, foi detido preventivamente pela PF em uma averiguação justamente sobre a ­Codevasf. Era a Operação ­Odoacro. Dois meses depois, a fase seguinte da operação terminou com a remoção judicial de um gerente da estatal no Maranhão, ­Julimar Alves da Silva Filho, suspeito de receber propina do “imperador”. A ­Odoacro deu origem à Benesse.

Nas investigações da Odoacro, a PF identificou elos entre “Eduardo DP” e um deputado federal, Josimar do Maranhãozinho. A descoberta levou o juiz Luiz Régis Bonfim, da 1ª Vara de São ­Luís, a enviar o caso ao Supremo. Pela lei, é na Corte máxima que um parlamentar federal é processado. A ligação dá-se por meio de pagamentos feitos pela Construservice a Carlos Roberto Lopes, ex-chefe de gabinete de Josimar. O parlamentar, de 46 anos, comanda no Maranhão o PL, partido de Bolsonaro. Em dezembro de 2020, teve 6 milhões de reais bloqueados pela Justiça, em uma investigação de desvio de verba federal. Um ano depois, foi alvejado de novo pela PF. Nas apurações, apareceram imagens ­suas com maços de dinheiro. Entre a eleição de 2018 e a de 2022, seu patrimônio declarado à Justiça Eleitoral aumentou incríveis 10 milhões de reais e chegou a 25 milhões. Os rolos não impediram a renovação do mandato nem a eleição da esposa, Deltinha, para a Câmara pela primeira vez. E como campeã de votos.

Abre-alas. Fufuca e Costa Filho, representantes do novo poder no Parlamento moldado pelo Centrão – Imagem: Douglas Gomes/Republicanos na Câmara e Cléia Viana/Ag. Câmara

Após a batida da PF na Operação Benesse, Juscelino Filho conversou por telefone com Padilha. Disse ter explicações e que os fatos investigados são da época de Bolsonaro, não de agora. Duas outras histórias anteriores como ministro constrangeram Lula. Uma foi o uso de avião da FAB para ir a São Paulo vender cavalos. A outra, a de que o sogro despacha em seu gabinete. A Comissão de Ética da Presidência examinou ambas. Arquivou a primeira, mas ainda não se pronunciou sobre a segunda. Caso demitisse Juscelino, Lula teria outro problema com ditos “governistas”. No caso, com o senador Davi Alcolumbre, do União Brasil do Amapá, pai da indicação de Juscelino Filho. Alcolumbre comandou o Senado de 2019 a 2021 e quer voltar ao posto em 2025. Um projeto de sua autoria ampliou a atuação da Codevasf até seu estado de origem. O senador chefia atualmente a comissão mais poderosa do Senado, a CCJ, onde logo serão sabatinados os indicados por Lula para o Supremo e a Procuradoria-Geral da República.

Independentemente do lugar no primeiro escalão no qual PP e Republicanos serão acolhidos, a minirreforma ministerial tende a ser a consagração de um certo tipo de deputado do “Centrão”. Direitistas na faixa dos 30 a 40 anos, presentes em Brasília há menos de dez anos, com patrimônios e votos encorpados ao longo da carreira parlamentar, gosto por debates onde há muita grana e sempre dispostos a agir em parceria com Arthur Lira, o presidente da Câmara.

É esse o perfil do ministro do Turismo, Celso Sabino, embora seu desempenho nas urnas em 2022, quando obteve 142 mil votos, tenha sido ligeiramente inferior ao da disputa de quatro anos antes (146 mil). Aos 45 anos, Sabino integra o União Brasil do Pará. Assumiu o ministério em 3 de agosto. Fiscal do “Leão” paraense, é parlamentar desde 2019. Segundo um colega deputado, “é jeitoso e dessa escola que transforma influência em dinheiro”. Chegou em Brasília com 1,5 milhão de reais de patrimônio declarado à Justiça Eleitoral em 2018 e, na campanha de 2022, tinha o triplo, 4,4 milhões, incluído um jatinho de 300 mil. Designado por Lira, foi o relator, em 2021, da lei de cobrança de Imposto de Renda sobre lucros e dividendos pagos a sócios de empresas. E aproveitou o projeto, parado desde então no Senado, para baixar a taxação das firmas em geral e calibrar em 6% uma alíquota que o governo Lula defende que seja de 10% para contribuintes atualizarem dados sobre aplicações no exterior. Igualmente sob os auspícios de Lira, comandou a Comissão Mista de Orçamento em 2022, aquela que basicamente trata de verbas.

Parte da pressão pela reforma, os deputados ameaçam criar novos problemas ao governo

O deputado André Fufuca tem o mesmo perfil. É o líder do PP, a sigla de Lira, e o escolhido pelos pepistas para integrar o ministério de Lula (o presidente aceitou a escolha). Médico de 34 anos, é deputado desde 2015, ano em que Eduardo Cunha, mentor de Lira, tornou-se presidente da Câmara. Fufuca chamava Cunha de “Papi” nos corredores. Em 2016, votou contra sua cassação no Conselho de Ética. Por designação de Lira, outro pró-Cunha, Fufuca atuou em negócios importantes. Deu a feição final no governo Bolsonaro à lei do Refis, o parcelamento de dívidas tributárias. Fufuca tornou-se um milionário em Brasília. Em 2014, tinha 160 mil reais em bens na eleição, quantia que subiu para 681 mil em 2018 e praticamente dobrou na última, para 1,2 milhão. Desse total, metade era gado. Na campanha passada, teve 135 mil votos, 30 mil a mais do que na anterior. Pulou de nono para quinto mais sufragado no Maranhão.

O conterrâneo Juscelino Filho também é médico e chegou à Câmara juntamente com Fufuca, em 2015. Hoje com 39 anos, foi o relator do esboço do orçamento federal de 2022 e, nele, fixou em 5,7 bilhões de reais o valor do fundo público que financiaria campanhas políticas na última eleição, quase o triplo da quantia de 2018. Político que se esbalda no orçamento secreto, Juscelino Filho amealhou 97 mil votos para deputado em 2018 e 142 mil em 2022. Subiu de 12° para o 4° mais votado do Maranhão.

Cartão vermelho? A ministra do Esporte, Ana Moser, tem o apoio de Janja, a primeira-dama. Lula demonstra incômodo em sacrificar a ex-atleta – Imagem: Valter Campanato/ABR

E Sílvio Costa Filho, o nome do Republicanos para a equipe de Lula, com o aval deste? Em Brasília desde 2019, tem ­suas afinidades com Lira, mas, nesse caso, pesa a ideologia. Seus bens informados à Justiça Eleitoral subiram de 844 mil para 1 milhão de reais entre as campanhas de 2018 e 2022. De uma eleição para outra, sua votação cresceu de 109 mil para 162 mil e o transformou no quarto deputado em Pernambuco. Aos 41 anos e pedagogo de formação, é neoliberal. Dava-se bem com Paulo Guedes, o czar econômico de Bolsonaro. Lira botou-o à frente daquele que seria seu cartão de visitas ao “mercado” tão logo assumiu o comando da Câmara, em 2021. Costa Filho cuidou da lei da autonomia do Banco Central. Em 2019, antes de Lira chefiar a Câmara, tinha sido o vice-presidente da comissão especial da reforma da Previdência.

O presidente da Câmara defende agora levar adiante a reforma administrativa proposta por Guedes. Para enfrentar esse tipo de embate, Lula precisa de mais apoio entre os deputados via minirreforma ministerial, ainda que a turma do “Centrão” tenha emplacado (ou ainda tente) no primeiro escalão políticos que são potenciais pepinos éticos. Com Brasília agitada, a ministra Esther Dweck, da Gestão, disse publicamente na quarta-feira 6 que o governo não apoia a proposta de reforma encampada por Lira. Ela a considera uma “punição” aos servidores e uma tentativa de enxugar o Estado. Tem mais: Lira comandou recentemente a aprovação de uma lei que renova a desoneração tributária para 17 setores empresariais e que venceria em dezembro. Neste caso, foi o próprio presidente da República quem saiu a público para criticar.

Como o próprio Lula costuma dizer: o Congresso não é o que ele escolheu, é o que está aí e foi eleito pela população. •

Publicado na edição n° 1276 de CartaCapital, em 13 de setembro de 2023.

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