Exilados

Viver fora do país sem poder voltar não é fácil

O deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ) (Foto: Divulgação)

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Quando cheguei a Paris, havia mais de dez mil exilados brasileiros na cidade. De todos os tipos, cada um se virando como podia. Uns distribuindo panfletos nas ruas da cidade luz, outros dando aulas particulares de português, uns escrevendo livros, muitos fazendo política e outros juntando parafina do queijo Babybel pra fazer vela.

Longe de Paris, uns colhiam morangos na Dinamarca, outros colhiam uvas na Itália. Uns conduziam o metrô de Estocolmo, enquanto outros, cuidavam de crianças na Holanda ou lavavam pratos em Lisboa.

Zé Celso Martinez filmava em Moçambique, Chico passeava com Garrincha pelas ruas de Roma, Gil ouvia Cely Campelo pra não cair, Geraldo Vandré viajava num velho automóvel pelas estradas da Bélgica, Ricardo Villas gravava discos em Paris, enquanto os olhos de Caetano procuravam discos voadores no céu de Londres.

Luís Carlos Prestes sentia muito frio em Moscou, Zé Dirceu aprendia técnicas de guerrilha em Cuba, Leonel Brizola rodava o mundo, Miguel Arraes em Argel, não perdia a ternura nem o sotaque pernambucano jamais.

Exílio não era fácil, a vontade de voltar era grande para continuar a luta e derrubar a ditadura militar. Ou simplesmente tomar um Guaraná Champagne Antártica. A saudade do sol dourado, das coisas do país estavam à flor da pele. A certeza de não poder voltar, a esperança de ainda ouvir cantar uma sabiá, corria no sangue latino de cada um.

Um dia, fui visitar a Escola Saci Pererê, instalada na Maison du Brésil. Passei a manhã na escolinha, observando tudo para escrever uma reportagem pro jornal Movimento. Os meninos eram todos filhos de exilados, alguns pequenininhos, misturavam a língua chamando raposa de renard, leão de lion e pepino de conconbre. Quase todos não conheciam direito o Brasil, a paçoquinha Amor, o pacotinho de jujuba da Kibon, o mini Chicletes Adams, nem mesmo as balas Juquinha.


O Brasil, visto de longe, longe

O objetivo era não se distanciar do Brasil brasileiro, do coqueiro que dá coco, da baiana do acarajé, das sandálias Havaianas e do patropi abençoá por Dê e boni por naturê. Era véspera de carnaval e eles ensaiavam antigas marchinhas ao som de um bumbo: Mas a turma lá de trás gritou/Tem nego bebo aí/ Tem nego bebo aí. Na saída, um brasileirinho pergunta pro monitor:

– Imaginação é verdade ou mentira?

Todo exilado sentia muito frio. Mesmo dentro de casa, com aquecimento, muitos deles usavam casacos de lã, luvas e gorros. Todo exilado tinha uma bandeira vermelha da Rússia e uma paixão por envelopes verde e amarelo. Todo exilado tinha vontade de comer feijoada completa, com arroz branco, bisteca de porco, torresmo, farofa e laranja da seleta.

Todo exilado vivia meio assustado, com pouco dinheiro no bolso, sem parentes importantes por perto, visitando diariamente a livraria Joie de Lire à procura de livros revolucionários, em busca de notícias de papel ou via Intelsat.

Conheci um, sem visto no passaporte, que andava pelas ruas de Paris, descia as escadas do metrô, entrava no ônibus 96, sempre com uma câmera fotográfica a tiracolo, um mapa da cidade semi-aberto e uma sacola da Lacoste nas mãos. Queria se passar por turista diante dos policiais que pediam documentos nas ruas. Nunca foi abordado.

Conheci outro que encasquetou de fazer farofa com ovo, banana, couve e serragem, na falta da farinha de mandioca.

Exilados se excitavam quando, nos primórdios das fake news, espalhava-se a notícia pela cidade de que Garrastazu Medici estava por um fio pra cair. Alguns faziam planos para a volta, comer uma coxinha, chupar um Eskibon e tomar uma caipirinha feita com Pitú.

Exilados sonhavam com o Brasil constantemente. Com os pais, irmãos, tios brigados, primos longe, alguns amigos presos que se foram pra nunca mais.

Exilados não conseguiam pensar em francês, não conseguiam escrever diários, não podiam fazer um DDI pro Brasil com medo do grampo.

Exilados moravam em apartamentos minúsculos, tinham fogão de duas bocas e geladeira do tamanho de frigobar.

Exilados iam na loja da Varig, na Avenida dos Champs Elysées, pra ler o Jornal do Brasil com cinco dias de atraso, exposto na sala de espera.


Exilados esqueciam da emoção de um Fla-Flu, da euforia de um gol do Corinthians e da rivalidade entre o Galo e a Raposa. Exilados organizavam peladas na periferia de Paris, cervejadas de Kronnebourg como se fosse Brahma Chopp, comiam flageolet como se fosse feijão fradinho, croque monsieur como se fosse pão de queijo.

Boa sorte, Jean Wyllys! Estamos aqui torcendo por você.

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