Política
Exceção à regra
Dominada por mulheres, a disputa em Aracaju destoa do cenário nacional, onde homens brancos dão as cartas


Aracaju é uma ilha em meio ao oceano de testosterona da política. Dos oito candidatos à prefeitura da capital de Sergipe, cinco são mulheres. E três lideram a corrida. Segundo uma pesquisa da Quaest divulgada na terça-feira 27, Emília Corrêa, do PL, soma 26% das intenções de votos. A Delegada Danielle, do MDB, tem 19% e Yandra, do União Brasil, 13%. Um pouco mais atrás aparecem a petista Candisse Carvalho, com 8%, e Niully Campos, do PSOL, com 2%. Caso raríssimo em um país onde a população feminina representa 51,5% do total de habitantes, mas apenas 34% das candidaturas registradas no Tribunal Superior Eleitoral. “A ala governista não conseguiu unificar um nome, lançou vários, o que contribui para a candidata de Bolsonaro liderar as pesquisas. Mas isso também pode ser uma estratégia para o segundo turno. Quem da base governista passar pode ter o apoio dos demais. O fato é que Aracaju, tudo indica, terá uma mulher prefeita, algo histórico para Sergipe, que tradicionalmente tem baixa representação feminina no cenário político”, analisa a cientista política da Universidade Federal de Alagoas, Luciana Santana, integrante do Observatório das Eleições.
Defensora pública aposentada e vereadora em segundo mandato, Corrêa ingressou no PL pelas mãos de Michelle Bolsonaro, que há dois anos percorre o Brasil no recrutamento de novos quadros femininos para a sigla. “Estava filiada a um partido que acabara de passar por uma fusão, o Patriota, que, em parceria com o PTB, formou o PRD. Havia muitas dúvidas sobre o destino da sigla em Sergipe, quem seria seu presidente, qual rumo tomaria. Foi quando recebemos o convite para iniciar uma conversa com o PL, partido do presidente Jair Bolsonaro, e que pretendia lançar uma candidatura majoritária à prefeitura de Aracaju.”, diz a candidata, que formou chapa com o agora colega de partido Valmir de Francisquinho na disputa ao governo estadual em 2022. “Essa relação tinha sido iniciada lá atrás, tudo ocorreu naturalmente até a nossa filiação, quando fui muito bem recebida e estou certa de que foi a melhor decisão.”
Candidaturas femininas e negras continuam com baixa representação no País
Apesar do trabalho de catequização de Michelle Bolsonaro, o PL dedicou apenas um terço das vagas a candidaturas femininas. Segundo o TSE, dos 35,5 mil registros da legenda para a disputa deste ano, 11,8 mil são de mulheres. “Os próprios partidos são um obstáculo à visibilidade feminina, por isso a gente tem uma redução do número de mulheres na disputa dos cargos majoritários, o que acontece menos no caso das proporcionais. As siglas só recrutam mulheres perto das eleições, preocupadas muito mais em cumprir a cota de gênero”, analisa Santana.
Primeira mulher a se eleger deputada federal por Sergipe, Yandra sente na pele a dificuldade de se firmar nos espaços de poder, embora tenha origem em uma família de longa tradição na política local. “A resistência em torno do nome da mulher é estruturante e não é algo presente somente na política. Mas nunca deixei que isso parasse os meus sonhos e desafios e estou aqui para mudar isso”, diz, antes de ressaltar a importância de a sucessão em Aracaju ser protagonizada por mulheres. “Fico muito feliz ao ver que outras candidatas se colocaram na disputa.” Poucas capitais registram candidaturas femininas competitivas e em algumas não existe nenhuma mulher na disputa, casos de Fortaleza, Manaus, João Pessoa, Rio Branco, Florianópolis e Cuiabá.
Lei. Cármen Lúcia, presidente do TSE, se reuniu com representantes dos partidos para cobrar respeito às cotas – Imagem: Luiz Roberto/TSE
Em Campo Grande, a ex-deputada Rose Modesto, do UB, tem chance de tornar-se prefeita, segundo as pesquisas publicadas até agora. Na terça 27, a Quaest divulgou um novo levantamento no qual Modesto lidera com 33% das intenções de voto, bem à frente dos adversários. “Nossa candidatura foi consolidada desde o ano passado, quando a cúpula do partido me escolheu para presidir o União Brasil em Mato Grosso do Sul e a colocou como uma das prioridades nestas eleições”, relata a candidata. Em Porto Alegre, também segundo a Quaest, Maria do Rosário, do PT, aparece empatada tecnicamente com o prefeito Sebastião Melo, do MDB. Ele tem 36% e ela, 31%, em um cenário onde a margem de erro é de três pontos porcentuais para mais ou para menos.
Não apenas as mulheres enfrentam resistência nos partidos. Os negros também têm muita dificuldade de sobressair-se no cenário pelas limitações e boicotes impostos pelas próprias legendas, como aconteceu recentemente na aprovação da PEC da Anistia. Agora Emenda Constitucional 133, a proposta perdoou as multas das agremiações que descumpriram a aplicação de recursos em candidaturas de pretos e pardos nas eleições passadas e limitou em 30% o repasse do Fundo Eleitoral e do Fundo Partidário às candidaturas negras a partir deste ano. “Na prática, acabou reduzindo, porque antes o repasse era proporcional. Se o partido tivesse 80% de candidatos negros, essas candidaturas recebiam esse porcentual dos recursos. Parece-me uma norma muito mais justa. Com a Emenda Constitucional, o repasse é de apenas 30%. Estamos falando de verba pública. Os negros contribuem para os cofres da União e, na hora de dividir os valores, acabam prejudicados. Ou seja, também são sub-representadas em termos de repasse de dinheiro público”, salienta o advogado Alexandro Rollo, especialista em Direito Eleitoral.
O Congresso impôs novas restrições às mulheres e aos negros na política
Única negra na disputa em Aracaju, Niully Campos ressalta a importância da cota de gênero e de raça para a consolidação das postulações femininas e negras. “São ações afirmativas fundamentais para construirmos candidaturas com potencial de disputa real. Mas não são suficientes. Um dos desafios é compreender que a cota não deve servir para preencher chapa às vésperas da eleição”. Na segunda-feira 26, a presidente do TSE, Carmen Lúcia, reuniu-se com representantes dos partidos para discutir o repasse de verbas a candidaturas femininas e de negros. Ficou estabelecido que as legendas têm até 8 de setembro, menos de um mês antes das eleições, para distribuir os valores aos candidatos.
Para Danusa Marques, professora do Instituto de Ciência Política da UnB e pesquisadora do Observatório das Eleições, o financiamento de campanha e o tempo de propaganda eleitoral gratuito são determinantes para tornar uma candidatura viável. “A literatura mostra que o maior uso do fundo eleitoral em 2018 permitiu um crescimento de 50% na bancada de mulheres na Câmara dos Deputados e de 37% nas assembleias legislativas, ainda que continuem sub-representadas. Essa cota tem sido descumprida, porque quem controla esses partidos são homens brancos. Mesmo nos partidos com base social não são os grupos sub-representados no comando.”
Aposta. O PCdoB de Luciana Santos valoriza mulheres e negros – Imagem: Luara Baggi/MCTI
De acordo com o IBGE, 55,5% da população brasileira é formada por pretos e pardos. Nas eleições deste ano, 240,5 mil candidatos se autodeclararam pretos e pardos ao TSE, 52,7% do total. O PCdoB é a legenda com maior porcentual de candidaturas negras, embora tenha pouco mais de 3 mil candidatos, em torno de 1,2 mil mulheres e 1,8 mil homens. Entre as mulheres, 79,2% são negras e 73,4% são negros. “Defendemos que os espaços de poder devem refletir a diversidade que constitui o povo brasileiro. O combate ao racismo e a luta pela liberdade feminina são parte integrante do projeto de emancipação social e nacional do nosso partido. Por isso, atuamos para que essas parcelas da população, hoje sub-representadas, ocupem a política, o Parlamento e os cargos de gestão, pois assim, com a participação dos diversos olhares, conseguiremos construir uma sociedade com maior equidade e justiça social”, destaca Luciana Santos, presidente nacional do PCdoB e ministra de Ciência e Tecnologia. “Quando a gente olha a presença maior de candidaturas de negros ou de mulheres, mas principalmente negros, vê que está num partido pequeno. E o que significa? Não adianta lançar aquelas candidaturas, porque o partido não é muito competitivo”, opina Marques.
O PL e o Novo são as agremiações políticas com mais candidaturas brancas. No Novo, dos 7,5 mil nomes registrados, 4,2 mil são não negros. No PL, entre 35,5 mil candidatos, há 20,2 mil não negros. Douglas Belchior, do coletivo Uniafro Brasil e do Instituto de Referência Negra Peregum, classifica os partidos de estruturas viciadas e racistas. “É responsabilidade da população negra organizada fortalecer suas articulações para demandar do Estado e das forças políticas e exigir que sejam respeitadas as candidaturas negras. Mas é também responsabilidade da sociedade branca, que vive de um privilégio histórico imposto por quase 400 anos de escravidão e por mais de cem anos de uma desigualdade absoluta, perceber essa realidade e se mobilizar. Não podemos ter recuos nos nossos avanços.”
Piedade Marques, da campanha Eu Voto em Negra, coordenada pela Rede de Mulheres Negras, reforça: “Queremos mulheres negras nos espaços de poder, comprometidas com a nossa população. Não adianta mulher negra somente por ser mulher negra, como fazem muitos partidos, tanto na direita quanto na esquerda, que pegam candidatas negras para garantir a cota. O que a gente vê é muita falta de cuidado na inclusão e na preparação dessas mulheres”. •
Publicado na edição n° 1326 de CartaCapital, em 04 de setembro de 2024.
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