Política
Estranho no ninho
Cientistas mobilizam-se contra a troca de presidente da agência de fomento à pesquisa por um político bolsonarista


A aversão bolsonarista à ciência é conhecida pelos brasileiros. Durante os quatro anos em que Bolsonaro foi presidente, ela significou a adoção de discursos terraplanistas em diversos setores do governo, o sucateamento de universidades e instituições de pesquisa e, sobretudo, a morte de 700 mil brasileiros na pandemia de Covid-19, tratada à base de negociações nada republicanas para a fabricação e venda da ineficaz cloroquina pelo Exército e o Ministério da Saúde.
Naquele período sombrio, uma das poucas instituições a manter a ciência como norte foi a Fundação Carlos Chagas de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (Faperj). Isso se deu, reconhece a comunidade científica, pelo pulso firme de Jerson Lima Silva, presidente desde janeiro de 2019 da fundação estadual que atualmente concede 6 mil bolsas, apoia 9 mil pesquisadores e conta com um orçamento de 627 milhões de reais em 2024.
O prestígio do médico e biofísico, nome destacado nas pesquisas oncológicas e autor de mais de 200 trabalhos científicos publicados, não foi suficiente, porém, para evitar que o governador bolsonarista Cláudio Castro, ávido por se viabilizar politicamente nos últimos dois anos de seu mandato, oferecesse a cabeça de Lima Silva para atender a interesses políticos de deputados da sua base governista.
Era para a substituição ter sido sacramentada esta semana. O nome escolhido para a presidência da Faperj, em princípio, é o ex-deputado federal Alexandre Valle, do PL, empresário do ramo de seguros que em outubro foi derrotado na disputa pela prefeitura de Itaguaí e é um dos cada vez mais raros apoiadores de Castro. A indicação tem o aval de Anderson Moraes, secretário estadual de Ciência, Tecnologia e Inovação. Quando deputado, Moraes apresentou projetos contra a obrigatoriedade da vacina de Covid-19 e a favor da extinção da Uerj. Felizmente, não vingaram.
O governador mexeu em um vespeiro na comunidade científica, que o obrigou a adiar a decisão. Após o lançamento de uma carta aberta contrária à troca e assinada pelos presidentes da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Helena Nader, e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Renato Janine Ribeiro, diversas outras instituições já se manifestaram da mesma forma, como a Academia Nacional de Medicina e a Sociedade Brasileira de Virologia. Em paralelo, uma petição em repúdio à saída de Lima e Silva contava com 24 mil assinaturas até a terça-feira 29.
Na carta, as entidades manifestam “a preocupação que assola a comunidade científica” com a possibilidade de troca no comando na Faperj e apelam ao governador para que “não faça da direção um cargo de indicação partidária”. O documento afirma que as agências de apoio à pesquisa estaduais e federais “desenvolvem melhor o seu trabalho quando são dirigidas por pessoas que têm o conhecimento do que é a ciência”.
Cotado para o cargo, o ex-deputado federal Alexandre Valle, do PL, não tem histórico de atuação na área da Ciência e Tecnologia
Para Janine Ribeiro, não interessa qual o partido do novo nomeado para a presidência da Faperj: “O fato é que em nenhum âmbito deveríamos ter a entrega de setores cruciais para o futuro do Brasil a agremiações partidárias no esquema de porta fechada”. O ex-ministro da Educação de Dilma Rousseff afirma que “um bom governo” deve procurar os mais qualificados do ponto de vista científico. “Mesmo os partidos têm, geralmente, vários quadros que podem assumir um cargo como esse. Não estamos contestando o direito de o governador nomear seus funcionários, mas estamos discutindo os critérios.”
Presidente do Instituto Serrapilheira, organização que também repudiou publicamente a troca no comando da Faperj, Hugo Aguilaniu afirma que o risco de ter um comando somente político é desviar a Faperj de seu objetivo inicial, que é promover a ciência no estado do Rio de Janeiro. “São investimentos de longo prazo, que nem sempre dão retorno imediato. Tem de tomar muito cuidado para não desvirtuar a função pública”, alerta. Ph.D. em genética molecular pela Universidade de Chalmers, na Suécia, Aguilaniu reconhece tratar-se de um cargo de confiança do governador, mas pede bom senso a Castro: “Há um componente político inevitável, mas sempre se respeitou a regra de ter alguém que entende de ciência e tecnologia. Não estou dizendo que nunca pode ser um político, mas não se pode esquecer a função primária de uma fundação de amparo à pesquisa”.
Na terça-feira 29, reitores das universidades fluminenses, presidentes de institutos científicos e servidores da Faperj foram recebidos por deputados de oposição na Assembleia Legislativa do Rio, mas a reunião foi encerrada por ordem do presidente da Alerj, deputado Rodrigo Bacellar, do União Brasil. Uma audiência pública sobre a Faperj está marcada para sexta 1º e promete mobilizar novamente a comunidade científica, que na semana passada já fez uma manifestação com centenas de pessoas em frente à sede da Secretaria de Ciência e Tecnologia do governo estadual: “Trocar o presidente é uma prerrogativa do governador, mas a pessoa tem de ter um currículo minimamente compatível”, afirmou Luciana Lopes, presidente da associação de funcionários da Faperj, durante o ato.
Um servidor que prefere não ser identificado diz que o maior medo na Faperj é que a troca do presidente por uma indicação política represente um retrocesso no trabalho que a atual gestão tem feito: “Estamos temerosos porque já vimos ações semelhantes aqui dentro, em outros momentos políticos. Houve mudanças que implicaram o redirecionamento de editais e o resultado de projetos. Também tememos que a Faperj seja alvo de ações e interesses político-partidários por conta do seu grande orçamento”.
Para Helena Nader, o loteamento político nas fundações de apoio à pesquisa e em outras instituições ligadas à ciência “terá um grande impacto negativo no desempenho do Brasil em relação à CT&I”. Ela lamenta que seja essa a realidade brasileira: “Nos EUA são dois partidos, mas, independentemente de quem está no poder, a ciência tem sempre a visão total. Isso é dado pela Câmara dos Deputados, pelos senadores e em cada um dos estados, o que explica a liderança do país nessa seara”.
Procurado pela reportagem, Lima Silva disse preferir não se manifestar neste momento. Já o governador Cláudio Castro e o secretário Anderson Moraes não responderam até o fechamento desta edição. •
Publicado na edição n° 1335 de CartaCapital, em 06 de novembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Estranho no ninho’
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