Política
Estrada da perdição
A seca extrema no Amazonas ressuscita o polêmico projeto de recuperação da BR-319


O drama provocado pela seca no Amazonas desenterrou um projeto polêmico de três décadas na Região Norte, o reasfaltamento da BR-319, entre Manaus e Porto Velho. Construídos em 1976, os quase 900 quilômetros da rodovia estão em petição de miséria desde o fim dos anos 1980, com vários trechos intransitáveis e tomados pela vegetação. Por causa das restrições ao tráfego de embarcações, políticos e ruralistas passaram a defender nas últimas semanas a revitalização imediata da estrada. Ambientalistas e movimentos sociais se opõem. Alegam que a reconstrução da BR aceleraria a “morte” da Floresta Amazônica.
Sem manutenção, abandonada, a 319 ficou conhecida como rodovia fantasma. Nos últimos 15 anos, obras pontuais recuperaram pedaços esparsos da BR, o que atraiu grileiros para o entorno. “Se você abre uma estrada ou a melhora, a terra valoriza, não é? Principalmente, se você não a comprou, a ocupou irregularmente. Foi o que aconteceu ao longo da BR-319. Tinha muitas terras públicas. Ainda tem, mas naquela época era muito mais evidente. Então, as pessoas correram para pegar o seu pedaço, ocupar e vender”, afirma Ane Alencar, diretora científica do Instituto de Pesquisas Ambientais da Amazônia.
No fim dos anos 2000, houve a expansão de unidades de conservação ao longo da estrada, uma tentativa de conter a exploração da mata, mas o movimento foi insuficiente. Segundo Fernanda Meirelles, secretária-executiva do Observatório BR-319, a partir de 2014 registrou-se um aumento de circulação de carros e da ocupação de certos trechos. No governo Bolsonaro, a defesa da reconstrução voltou à tona, após milhares de pacientes morrerem em Manaus por falta de oxigênio durante a pandemia de Covid em 2021. Como desculpa, o Ministério da Saúde, sob o comando do amazonense Eduardo Pazuello, atribuiu o atraso na entrega dos tubos a problemas de logística, embora não houvesse nenhuma restrição ao tráfego aéreo. A queda de pontes e a falta de manutenção pioraram as condições da rodovia – e elevaram a pressão de produtores rurais por novos investimentos.
No ano passado, o Ibama concedeu uma licença prévia para o reasfaltamento, o que tem justificado os apelos à retomada das obras. “Manaus é uma cidade isolada e os políticos da região atendem a um clamor dos próprios cidadãos, que se sentem isolados. Mas você pode sair de barco para Belém, para Boa Vista, e a população mais pobre sempre usou o rio, leva a sua rede e dorme na viagem de barco. Esta é a realidade da região, o transporte é íntegro”, salienta Suely Araújo, especialista em políticas públicas do Observatório do Clima e ex-presidente do Ibama. “A floresta no Amazonas ainda está muito protegida, exatamente porque a ocupação da população está concentrada em Manaus, o desmatamento está localizado na cidade. Hoje, com as condições de fiscalização ambiental, o governo não tem como controlar. Vai ser um caos e um erro histórico se a BR for reasfaltada agora. Pode ser que no futuro a gente tenha essa possibilidade, quando tiver um monte de áreas protegidas na região e com fiscalização ambiental.”
O Ministério do Meio Ambiente decidiu rever a licença prévia de reasfaltamento emitida no ano passado
Meireles destaca ainda a importância de preservação do entorno da rodovia e as possíveis consequências da obra. “O desmatamento se expande principalmente em áreas de terras públicas, sem destinação específica. Não são áreas de unidade de conservação, nem terras indígenas, nem assentamentos rurais, e isso acelera o processo de grilagem e ocupação. Primeiramente, exploram a madeira, depois vêm os incêndios para a abertura dessas áreas. Também são instalados pastos e aí o gado avança e sobe até a Amazônia Central. A 319 é uma conexão para o que a gente chama de Arco do Desmatamento, esse processo de ocupação de terra. Há um trecho muito conservado no entorno e é uma área muito importante para a manutenção dos serviços ambientais, do clima.”
O senador amazonense Plínio Valério, do PSDB, em pronunciamento na tribuna do Senado, defendeu a repavimentação desta e de outras rodovias no estado. “Sem que estejam transitáveis, não teremos como assegurar a mobilidade da população de toda essa região, nem a prosperidade tão almejada por todo mundo”, discursou, antes de criticar a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, por ter colocado em dúvida a licença prévia expedida pelo Ibama para a recuperação da BR. A ministra, na verdade, disse que a licença será revista e que o projeto necessita de avaliação ambiental estratégica, considerando o alto impacto. “Se a Amazônia ultrapassar os 20% de desmatamento, entra num ponto de não retorno. Eu não quero destruir recursos de milhares de anos pelo lucro de poucas décadas”, afirmou a ministra durante uma audiência pública, em maio, na Comissão de Desenvolvimento da Câmara dos Deputados.
A justificativa de que a má condição da estrada prejudica o escoamento da produção na Zona Franca de Manaus é rebatida pelos movimentos sociais, dada as alternativas de transporte fluvial e aéreo. “Os beneficiados serão os fazendeiros, os pecuaristas e os desmatadores. A Zona Franca vai continuar a mandar e a receber seus componentes normalmente, sem que seja preciso asfaltar a 319”, salienta Silas Mesquita, do Grupo de Trabalho Amazônico, rede com mais de 600 entidades ambientais. “Com o asfaltamento da BR, as comunidades tradicionais e os povos indígenas serão ameaçados. Se vai abrir estrada, vão chegar ainda mais fazendeiros, terá um tráfego maior de carro e, por consequência, um impacto na vida dos animais.”
Disputa. Comunidades isoladas, mortandade de botos… Para a ministra Marina Silva, as obras na rodovia vão piorar o desastre ambiental – Imagem: Miguel Monteiro/Instituto Mamirauá, José Cruz/ABR e Alberto César Araújo/Amazônia Real
A vida dos animais, na verdade, está ameaçada faz tempo. Por conta do fenômeno El Niño, que potencializou a seca no Amazonas e o aquecimento da água no Oceano Atlântico, mais de 150 botos foram encontrados mortos desde o fim de setembro. Os efeitos desses fenômenos também reduziram a níveis alarmantes os volumes dos principais rios e igarapés da região, e provocaram queimadas que instalaram uma nuvem de fumaça no céu. Além da morte de animais, ao menos dois seres humanos morreram em decorrência da seca, no fim de setembro, durante o deslizamento de terra na comunidade do Arumã, em Beruri, a 173 quilômetros de Manaus. Os problemas respiratórios espalham-se pela região.
Dos 62 municípios amazonenses, 59 estão em situação de emergência e mais de 600 mil moradores foram afetados. Por causa da dificuldade de alunos e professores chegarem às escolas, o governo estadual decidiu antecipar em duas semanas o fim do ano letivo. Além de comprometer o transporte fluvial, a seca afeta a pesca, uma das principais fontes de subsistência na região. A União anunciou a liberação de 460 milhões de reais para mitigar os efeitos, recursos que deverão ser aplicados em ações de defesa civil, dragagem de rios, antecipação de benefícios sociais, repasses de cestas básicas e aumento do efetivo de combate a incêndios. “De certa maneira, a gente sabia que neste ano viria uma seca muito forte, quando foi anunciado que El Niño estava se instalando, impactando a Região Amazônica. El Niño exacerba a seca e, para piorar, ainda teve o impacto do aquecimento das águas do Atlântico, concomitantemente. A sinergia entre esses dois fenômenos é o que tem levado algumas regiões da Amazônia a esse extremo de seca”, explica Ane Alencar. Os sinais, afirma, começaram a aparecer em maio, quando era possível perceber um certo estresse hídrico. “Em junho, a gente viu que tinha uma anomalia em alguns dos rios, mas, realmente em setembro, a seca chegou de vez no Brasil, na região próxima a Manaus, Rio Negro, Tefé, e foi subindo do Sudoeste, chegando até o Rio Amazonas.”
Nem mesmo a recente chuva forte foi suficiente para minimizar o impacto. O nível do Rio Negro, em Manaus, registrou o ponto mais baixo desde o início do século passado, inferior a 13 metros. O normal é flutuar entre 27 e 29 metros. O Madeira, em Porto Velho, chegou a medir 1,10 metro, segundo Boletim de Monitoramento Hidrológico do Serviço Geológico do Brasil. Depois das últimas chuvas, subiu 70 centímetros. Na terça-feira 19, o Amazonas, nas proximidades de Itacoatiara registrou 90 centímetros, e o Solimões, na estação Manacapuru, alcançou 3,61 metros, abaixo do menor volume, em 2010, de 3,92.
O período de chuvas chegará mais tarde, talvez só no início do próximo ano
Desde 2005 não se via uma seca tão extrema na Amazônia. E não há sinal de melhora nos próximos meses. A estação de chuvas vai atrasar e só deve ocorrer no início do próximo ano. “O período de cheia, que deveria começar agora, não vai ser suficiente para recuperar o nível de seca. Algumas previsões dizem que esta seca vai se estender até janeiro e o Rio Negro não para de descer. Então, a chuva de agora não é o bastante para provocar efeito positivo. Dá uma aliviada na fumaça e tudo o mais, mas são pancadas isoladas, chove um pouco aqui e outro ali”, lamenta Meireles.
Para Ane Alencar, os efeitos de El Niño são incomparáveis. “Em 2005, a gente via cenas de barcos encalhados e tal, mas nunca houve esse nível de mortandade de peixes, botos e outros tipos de fauna. As principais ruas da Amazônia são os rios e essa seca impacta muito a vida dos habitantes, em todos os aspectos, inclusive no alimentar, pois os peixes que morreram em massa são a sua principal fonte de proteína.” A falta de energia, diz, isola algumas comunidades e torna a situação ainda mais complicada.
A prorrogação da seca extrema e, consequentemente, o adiamento do período de chuva estenderão seus efeitos até o Nordeste, região historicamente castigada pela estiagem. De acordo com o Inpe, os efeitos de El Niño ainda estarão presentes no primeiro semestre de 2024 e vão contribuir para manter as chuvas abaixo da média. Segundo o Centro Nacional de Monitoramento de Desastres Naturais, órgão vinculado ao Ministério de Ciência e Tecnologia, mais de cem municípios nordestinos estão em condição de seca severa, o correspondente a cerca de 30% das áreas agrícolas e de pastagens. No extremo oeste da Bahia, a zona impactada chega a 80%. •
Publicado na edição n° 1283 de CartaCapital, em 01 de novembro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Estrada da perdição’
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