Política
Estímulo à reincidência
O Termo de Ajustamento de Conduta assinado em 2021 deu carta branca ao Carrefour para repetir os erros


Em 19 de novembro de 2020, João Alberto Freitas, homem negro e trabalhador de 40 anos, foi morto por asfixia por seguranças no estacionamento de uma loja do Carrefour em Porto Alegre. A cena brutal presenciada pela esposa da vítima e outros clientes foi gravada por câmeras de celulares e imediatamente associada ao assassinato de George Floyd, em 25 de maio do mesmo ano, por três policiais em Minneapolis, nos EUA. Poucas vezes a similitude do racismo estadunidense e brasileiro, muitas vezes escamoteado pelo discurso da cordialidade das relações raciais no País, tornou-se tão evidente. Na manhã seguinte, Dia da Consciência Negra, havia uma certeza unânime no Brasil: a morte de João Alberto foi um ato racista.
Nas redes sociais, o assassinato tornou-se um dos assuntos mais comentados, sempre referido pela motivação racista, desde a Comissão de Direitos Humanos da OAB do Rio Grande do Sul à ONU, bem como pelos presidentes da Câmara, do Senado e pelo ministro Gilmar Mendes, do STF, segundo quem o caso era a prova de que a luta contra o racismo estava longe de acabar. Nem mesmo a direção do Carrefour negou o caráter racista da brutalidade cometida. Em nota, relacionou expressamente o crime com a data da Consciência Negra e destinou o lucro das vendas daquele dia a entidades ligadas ao movimento negro. Também assumiu publicamente o compromisso no “reforço do treinamento antirracista” para funcionários e terceiros.
Mesmo durante a pandemia, o movimento negro fez passeatas e ocupou lojas do Carrefour em várias cidades: São Paulo, Sorocaba, Jundiaí, Santos, Rio de Janeiro, São Gonçalo (RJ) e Salvador. Aqui no Espírito Santo, ocupamos a loja no Shopping Vila Velha. As hashtags #justicaporbeto e #VidasPretasImportam, alçadas a trending topics do Twitter, tornaram-se as consignas sobre as quais, pela primeira vez em muito tempo, as várias entidades do movimento assumiram uma só pauta, e decidiram, em plenárias regionais e nacionais unificadas, transformar o assassinato de João Alberto no marco a partir do qual a morte de negros não poderia mais ser normalizada, não se poderia mais regredir. Após um fim de semana de protestos, na segunda-feira 23, as ações do Carrefour caíram 5,3%, entre as maiores derrocadas da Bolsa de Valores. Dois dias depois, o valor de mercado da empresa teve perda de 2,46 bilhões de reais no Brasil e de 330 milhões de dólares no mercado exterior.
Celebrado, o TAC ainda permitiu à rede varejista deduzir a indenização de 115 milhões de reais do Imposto de Renda
A pergunta é: como uma situação consolidada, como nunca antes na sociedade brasileira, de reconhecimento público de um ato racista pode ter sido revertida pelo Carrefour? Resposta: o Termo de Ajustamento de Conduta assinado em 11 de junho de 2021 entre a rede de supermercados, Ministérios Públicos e Defensorias Públicas do Rio Grande do Sul e da União, Ministério Público do Trabalho, Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes (Educafro) e Centro Santos Dias de Direitos Humanos, em decorrência de Ação Civil Pública ajuizada pelas entidades e órgãos citados. Contendo a previsão de obrigação pecuniária de 115 milhões de reais e, por isso, festejado como “a maior indenização por danos morais por racismo no Brasil”, o TAC, em sua cláusula 5.2, na verdade permitiu à rede varejista se safar do reconhecimento de sua responsabilidade por danos individuais ou coletivos e, de igual forma, da prática de qualquer ato de racismo, discriminação ou violência no fato ocorrido. E, ainda, na cláusula 5.1, os compromitentes devem abster-se de iniciar outros processos judiciais ou administrativos, exceto em caso de descumprimento das obrigações estabelecidas. E as cláusulas 1.1 e 1.2 estabelecem o arquivamento definitivo dos inquéritos e ações e o impedimento no ajuizamento de futuras demandas coletivas (judiciais ou administrativas).
Em resumo, uma isenção legal de responsabilidade do Carrefour, sem qualquer debate público e sem consulta aos movimentos organizados, para os quais esse era o ponto central das reivindicações, juntamente com uma justa indenização da família da vítima. Uma nota da Coalizão Negra por Direitos, intitulada Não em Nosso Nome, denuncia o TAC, afirmando que “não seremos signatários de acordos que autorizam nosso assassinato a partir de trocas financeiras”. O TAC teve o efeito de desmobilizar os movimentos sociais. As partes decidiram que o valor do acordo seria depositado diretamente nas contas de entidades que desenvolvem ações antirracistas e não passariam pelo Fundo de Igualdade Racial, como determina o parágrafo 2º do artigo 13 da Lei 7.347 e o artigo 62 do Estatuto da Igualdade Racial. Além disso, o Carrefour pode deduzir os valores do Imposto de Renda, na forma do artigo 13, parágrafo 2º, III, “a”, “b” e “c”, da Lei nº 9.249. Em 2021, o lucro líquido da empresa foi de mais de 1 bilhão de euros.
Os novos casos de racismo tornados públicos nas últimas semanas, em que foram vítimas uma professora negra em Curitiba (Isabel Oliveira) e um ator negro em São Paulo (Vinícius de Paula), só comprovam o enorme erro cometido com o TAC. Mas não foram os primeiros. Em março, o Coletivo Cidadania, Antirracismo e Direitos Humanos da Bahia protocolou Ação Civil Pública por Dano Moral Coletivo, por discriminação contra uma criança de 8 anos, no Atacadão de Cajazeiras, em Salvador. Em abril, a dona de casa Juliana Vieira Gonçalves foi humilhada no Atacadão de Nova Iguaçu (RJ), porque juntamente com as compras trazia uma vassoura adquirida em outro estabelecimento. O Atacadão nem sequer vendia o mesmo produto, mas Juliana foi tratada como ladra. O caso foi parar na 52ª DP, mas o delegado se recusou a registrar o boletim de ocorrência e orientou Juliana a fazê-lo pela internet. O coletivo de advogados antirracistas ao qual pertenço se debruça sobre mais este caso.
Quando o poder econômico fala mais alto do que a Justiça, todo o ambiente social é corrompido, tomado por uma pesada, densa e perigosa camada de algo tão ruim para a sociedade que a mim me parece inominável. Uma mistura de insegurança, violência, tristeza e medo… talvez a palavra seja barbárie. •
*Ativista do movimento negro e vereador pelo PSOL em Vitória (ES).
Publicado na edição n° 1256 de CartaCapital, em 26 de abril de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Estímulo à reincidência’
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