Política

Esquerda e direita, uma luta atual

As sucessivas manifestações da direita brasileira têm sido um massacre ideológico. Em todas as frentes. A esquerda já foi mais ousada

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Em um aniversário recente, um amigo advogado me disse entristecido: “têm sido um massacre ideológico”. Dizia a respeito das sucessivas manifestações da direita brasileira. Em todas as frentes, ataca. E, se surge uma oportunidade, como a do julgamento da Ação Penal 470, denominado também de “mensalão”, aí os muito porta-vozes se ouriçam, simulam estar à beira de um ataque de nervos, falam como se tivessem conhecimento de causa, todos se transformam em arautos do bom direito, e do bem público, como se fossem essas as preocupações que os assaltam.

Quem olhar com um pouco mais de sensibilidade crítica perceberá que não se trata de nenhum acesso de cólera. De nenhum zelo com a coisa pública. Nada além de um retorno ao velho udenismo, a simular cuidados com os recursos governamentais, e na verdade fazendo o bom combate contra a esquerda, eventualmente se aproveitando de deslizes cometidos por ela, nunca os que eles próprios apontam, como no caso da AP 470. Este, um típico caso de utilização do caixa dois, e não de utilização do dinheiro público, como não só os réus, como vários autores já o comprovaram, e cito dois apenas para não dizer o milagre e esconder os santos – Raimundo Rodrigues Pereira e Paulo Moreira Leite, autores de trabalhos críticos exemplares a respeito do tal julgamento.

Mas não se trata apenas desse julgamento, porta aberta para o espetáculo midiático da direita. Esta, aliás, encontra espaço confortável nos meios de comunicação, estes mesmos aparelhos ideológicos inegavelmente situados à direita do espectro político. Isso mesmo, do espectro político, porque a tais meios não há de se negar, à Gramsci, a condição de atores políticos, sempre prontos para o combate a qualquer projeto progressista que se ponha em andamento no País, e não é necessário muito esforço para compreender isso se revisitarmos nossa história – no suicídio de Getúlio, no golpe de 64, na pacífica convivência com a ditadura, no apoio a Collor, no enamoramento ao longo dos oito anos de FHC, e no combate sistemático aos governos de Lula e agora de Dilma.

Claro: há espaços privilegiados na mídia à disposição dos nossos intelectuais de direita, e eles tem usado tais espaços com gosto. Claro: tem havido impressionantes conversões de inteligências, antes à esquerda, convertidas às teses conservadoras. Talvez queiram reafirmar a idéia de ser inteligente assumir-se comunista até os 30, e burrice persistir nessa visão a posteriori. A mídia abriga a todos com prodigalidade. E usa também aqueles pretendentes ao muro, os simuladores da crítica neutra, porque de alguma forma contribuem para desgastar as idéias de esquerda.  O fato é que as idéias de direita tem ocupado um espaço impressionante. Não sei, não posso dizer sem pesquisas à mão, qual o impacto delas na população. Algum há.

Sei que nesse caso da AP 470 – o chamado “mensalão” – há um esforço nítido para, ao desenvolver a crítica feroz aos dirigentes do PT envolvidos, demonstrar a natureza intrinsecamente corrupta da política e de igualar o PT aos demais partidos e, como acréscimo, martelar na tese de tratar-se do maior escândalo de nossa história, mesmo brigando com os fatos, alguns gritando à nossa frente, como o caso Serra/Siemens/Alckmin. Procura-se demonstrar a corrupção gritante nos governos Lula/Dilma, e ignora-se as políticas públicas inéditas de combate à corrupção desenvolvidas sob tais governos.  E, também, ao transformar o assunto corrupção na pauta absolutamente predominante, a mídia obscurece, ignora, conscientemente, o tanto de positivo feito pela política ao País, especialmente no combate à miséria.

A casamata principal da direita é a mídia hegemônica. Por ali desfilam intelectuais e políticos afinados com a ideia de manutenção dos privilégios seculares oriundos de uma história marcada pelos quase quatro séculos de escravidão. Para além da política em sentido estrito, as casamatas conservadoras vão colocando em causa estatutos libertários no Judiciário – vide a impressionante discussão em torno dos embargos infringentes. Foi a intervenção de um ministro conservador que garantiu o direito de defesa dos réus, e sob uma avalanche midiática de direita impressionante, antes e depois do voto de Celso de Mello. Com direito até a uma exibição quase fúnebre de atrizes globais.

A causa centenária do Estado laico vai sendo questionada gravemente, com igrejas de variada natureza pretendo condicionar políticas públicas e impor valores estranhos ao Estado de Direito democrático, onde todos tem o direito de professar suas crenças religiosas, inclusive nenhuma. O direito ao corpo da mulher, conquistado em tantos países, é diariamente questionado, para além das milhares de mortes ocasionadas por abortos clandestinos realizados em mulheres pobres. Uma ideologia prisional à EUA cresce surpreendentemente entre nós, como se fossem as prisões as soluções para os males da violência. Até o Império está percebendo o erro cometido. A política repressiva às drogas vai nos arrastando para criminalizar mais e mais os usuários,  inclusive crianças e adolescentes, sem observar o rotundo fracasso dela em toda a América Latina. É uma maré montante de conservadorismo.

Pergunta-se se a esquerda não tem sido demasiadamente complacente nesse combate ideológico. Se não tem evidenciado alguma covardia. Se não se esquivado para não mostrar a cara, expor suas idéias. Ou, noutra hipótese, se não há de fato uma crise no pensamento da esquerda. Quem sabe, atordoada desde a queda do Muro de Berlim, quem sabe atordoada com a falta de referências materiais de projetos alternativos ao capitalismo. Tão atordoada a ponto de sentir dificuldades de sustentar, defender ao menos ideais liberais, próprios da democracia – e aqui democracia no sentido emprestado por um Carlos Nelson Coutinho, de valor universal. O Estado de Direito Democrático é uma bandeira de que não devemos nos envergonhar. Um estado necessariamente laico, a salvo de quaisquer tentações obscurantistas, garantidor de direitos.

Quem sabe, falta-lhe, grosso modo, a consistência, quem sabe a coragem de defender a política. Defender a ética da política. Perguntar a que deve ser vir a política, e lutar por isso. Por que não há nunca, nesse quadro vigente de valores obscurantistas, nenhuma pergunta sobre o resultado das políticas públicas da década política sob hegemonia do PT, evidentemente favoráveis aos mais pobres, políticas cuja ética perseguiu o bem comum? Defender a ética da política é perguntar-se o que tem o Estado tem feito pelas classes trabalhadoras, e longe de se fazer tais indagações, estamos mergulhados nas indagações sobre o comportamento desse ou daquele indivíduo. Nunca das instituições. Não se discute, a mídia a combate, uma reforma política profunda, a eliminar o câncer do financiamento privado, esse comércio de partidos, a submissão do parlamento a grandes grupos econômicos, a exclusão de lideranças populares do poder político.

É certo que o espaço para esse debate, para a afirmação da dignidade da política, não se encontra na mídia, que só fará o contrário. Ali, na mídia hegemônica, sempre se combaterá a política, a boa política. Se a distinção entre direita e esquerda, à Bobbio, se dá entre os que combatem a desigualdade e os que a defendem, não há dúvida: a mídia se encontra entre os defensores ferrenhos da desigualdade. A luta político-ideológica reclama coragem, a maior virtude da política, à Hannah Arendt. A esquerda já foi mais ousada, já esteve na vanguarda dessa luta.

Podemos argumentar da escassez de espaços. Do massacre imposto pela mídia hegemônica. Mas, há outros espaços além da casamata midiática tradicional. É preciso continuar a interpretar o mundo e suas mudanças. E nunca perder de vista a chance, a possibilidade de irmos construindo um mundo mais justo. Nunca esquecer, como dizíamos num passado não tão distante, o horizonte socialista, por mais que escasseiem exemplos concretos. E não deixar de demonstrar o quanto avançamos nesses últimos dez anos no Brasil. O quanto foi possível fazer com as armas da política. O quanto um projeto político fundado na democracia, tendo a distribuição de renda como objetivo básico, pôde fazer pelos mais pobres, melhorando as condições de vida de milhões.

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