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Esqueleto no litoral

Sob críticas de ambientalistas, o governo planeja a conclusão da usina nuclear de Angra 3, obra iniciada pela ditadura

Esqueleto no litoral
Esqueleto no litoral
Obras da Usina nuclear de Angra 3. Foto: Divulgação PAC
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Em 1984, quando as expressões mudanças climáticas e aquecimento global ainda não faziam parte do léxico dos ambientalistas, quase ninguém sabia onde raios ficava ­Chernobyl, mas os protestos contra as usinas nucleares mobilizavam os “avós” de Greta Thunberg, e a ditadura brasileira anunciou a construção de Angra 3. Quarenta anos depois, a terceira e última unidade do projeto militar de domínio da tecnologia, não passa de um esqueleto abandonado em um icônico trecho do litoral fluminense. Não por muito tempo, promete o governo. Em 24 de maio, a Eletronuclear encerrou a consulta pública prévia ao lançamento do edital de conclusão da obra, ideia abortada em 2015 por interferência da Operação Lava Jato.

Embora o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, afirme que Brasília “ainda não tem posição formada” a respeito da retomada de Angra 3, o processo está em andamento em diferentes setores. Em elaboração pelo BNDES, a modelagem técnica, financeira e jurídica do projeto será concluída até julho, segundo a Eletronuclear. Em seguida, a documentação seguirá para a Empresa de Pesquisa Energética e passará pela homologação do Tribunal de Contas da União e do Conselho Nacional de Política Energética. “Esperamos que isso ocorra até setembro deste ano. Aí, teremos o caminho aberto para a licitação pública ocorrer até o fim do primeiro semestre de 2025, com a retomada das obras no segundo semestre”, projeta Raul Lycurgo, presidente da estatal.

A conclusão das obras e a ativação da usina não são consensuais entre os especialistas. “Não sei por que a opção por Angra 3 se há outras fontes de energia renovável que custam a metade”, afirma Ildo Sauer, ex-diretor da Petrobras e professor da USP. A conta é mesmo salgada. Apenas a manutenção da usina como está, parada e com 65% das obras terminadas, subtraiu até o momento 8,5 bilhões de reais aos cofres públicos. A projeção dos custos para concluí-la e colocar o reator em funcionamento em 2030, como deseja o governo, varia de 15 bilhões a 20 bilhões de reais. A usina tem capacidade instalada para gerar anualmente 12 milhões de ­megawatts-hora, suficientes para abastecer 5 milhões de residências. Parece razoável, mas o ponto, como lembra Sauer, é a existência de alternativas melhores e mais baratas. “Houve avanço tecnológico. Soluções de energia eólica e fotovoltaica são uma alternativa de geração de eletricidade que produz tanta energia quanto Angra 3, com benefício energético até um pouco maior, e vão custar a metade.”

Não. Como nos anos 1970, os jovens rejeitam a operação de usinas nucleares, em desuso em vários países – Imagem: iStockphoto

Um dos pioneiros da discussão nuclear no Brasil nos anos 1970 e hoje contrário à retomada de Angra 3, Sauer aponta dois outros fatores. Um deles é a própria tecnologia a ser utilizada. “Trata-se de um projeto de concepção que era muito avançado há 50 anos”, resume. Atualmente, ressalta, as novas usinas têm outras soluções, sobretudo em termos de segurança. “Busca-se agora aquelas que não dependem de bombas elétricas para resfriar o reator, o problema em Fukushima”. O engenheiro lamenta que, do ponto de vista tecnológico, o País pouco vai aprender a construir, montar e operar um novo rea­tor, além do que se aprendeu com Angra 1 e Angra 2. “É melhor montar o Reator Multipropósito Brasileiro, projeto da Marinha em Iperó, cujo investimento está na ordem de 1,5 bilhão a 2 bilhões de reais. Traria ganhos enormes de qualificação, treinamento de mão de obra e preservação dessa capacitação, gerando benefícios para a sociedade, em termos de pesquisas e desenvolvimento na medicina, na agricultura, e, acima de tudo, na produção de radioisótopos.”

O terceiro ponto apontado por Sauer é o que mais preocupa os ambientalistas. “Angra 3, assim como as outras, vai deixar como herança material radioativo e elementos irradiados que exigirão cuidados. Se houver reprocessamento, estarão neutralizados em três séculos. Se não houver, em dois milênios”, afirma o acadêmico, com base em cálculos sobre a meia-vida de cada elemento. Para Sylvia Chada, integrante da coordenação colegiada da Sociedade Angrense de Proteção Ecológica, entidade que acompanha a questão nuclear na região de Angra dos Reis há décadas, os defensores da obra pegam carona no discurso de transição energética. “Agora inventaram que energia nuclear é limpa. Como pode ser limpa uma forma de energia que gera um rejeito que precisa ser cuidado por gerações e gerações? Para além do risco nuclear, se coloca uma questão ética. Que direito temos de deixar para as gerações futuras a responsabilidade de cuidar de um lixo nuclear por centenas de anos?”.

Para especialistas, trata-se de um projeto ultrapassado e cercado de riscos

Dirigente do Grupo Ambientalista da Bahia e integrante da Articulação Antinuclear Brasileira, Renato Cunha lembra que esse tipo de energia envolve muitos riscos: “Há radiação no funcionamento da cadeia nuclear como um todo, que começa na exploração do urânio, vai para a geração de energia nas usinas e depois vira o lixo atômico resultante dessa produção”. Nem o Brasil, nem o mundo, afirma, precisam correr o risco. “A geração de energia nuclear deve ser abandonada o mais rápido possível para termos uma transição energética confiável e justa, que atenda aos interesses da população.”

A proposta ao governo da Articulação Antinuclear, acrescenta Cunha, é desativar de vez Angra 3 e reavaliar a manutenção das duas usinas em funcionamento. “E também não viabilizar mais a mineração de urânio prevista. A geração renovável das fontes eólica e solar deve ser incentivada, com todos os cuidados ambientais, para minimizar a emissão de gases de efeito estufa.” Segundo Chada, retomar Angra 3 é insistir em um erro do passado, “um erro que custou bilhões à sociedade. E que vai continuar a sangrar recursos públicos. Hoje, tanto retomar Angra 3 quanto abandonar a obra representa um gasto muito grande de dinheiro que poderia ser direcionado para o investimento em outras formas de geração de energia que realmente caminhem em direção a uma transição energética.”

Há, porém, os entusiastas da construção. Em nota, a Federação das Indústrias do Rio de Janeiro afirma que a conclusão da usina é fundamental para o avanço da geração de energia nuclear e da segurança energética do País. “A construção da usina pode gerar 9 mil empregos diretos e indiretos e estimular investimentos nos municípios da região de Angra dos Reis”, diz o texto. Presidente da Frente Parlamentar Nuclear, o deputado federal Júlio Lopes, do PP, afirma ser “um contrassenso” não retomar as obras: “A conclusão da usina gira em torno de 20 bilhões de reais e o investimento para desativá-la seria de 15 bilhões”.

Liderados por Lopes, deputados e senadores do Rio de Janeiro, em sua maioria de oposição ao governo federal, têm procurado o ministro Silveira para defender a conclusão de Angra 3. O apoio à retomada das obras vem até de parlamentares do PT. “Precisamos avançar na construção de Angra 3, compreendendo e discutindo com a sociedade que energia nuclear é energia limpa e que para o Rio ela é importantíssima porque significa desenvolvimento com retomada de emprego para o nosso estado”, defende o deputado federal Reimont. O petista rejeita, porém, a inclusão de um sócio privado na gestão da usina, possibilidade prevista nos estudos em elaboração pelo ­BNDES. “Energia é estratégico, portanto, quanto mais ela estiver na mão do Estado, melhor. Energia, assim como a água ou a terra, não pode ser vendida, tem de ser partilhada. O Estado tem a responsabilidade de fazer com que a energia chegue à casa dos cidadãos.”

Segundo o BNDES, a modelagem técnica, financeira e jurídica do projeto não prevê a entrada de um novo sócio. “O modelo conceitual aprovado prevê um contrato de EPC para a conclusão das obras de implantação da usina e a captação de recursos por meio de novos financiamentos bancários e emissão de títulos de dívida para fazer frente aos investimentos remanescentes, bem como repagar as dívidas preexistentes”. O passivo existente em Angra 3, informa o banco de investimento, “será quitado por meio da captação de novos recursos, os quais serão amortizados após a entrada da usina em operação comercial”. O ­BNDES acrescenta que a Lei 14.120, de 2021, define que “o preço da energia a ser comercializada pela usina deverá considerar a viabilidade econômico-financeira do empreendimento e seu financiamento em condições de mercado”.

No governo, as maiores resistências partem da Casa Civil e do Ministério do Meio Ambiente. Em conversa com jornalistas no fim de abril, Silveira afirmou que o governo só tomará uma decisão após a conclusão dos estudos do BNDES. “Nenhuma decisão será motivo de comemoração porque fazer tem um custo elevado e não fazer também. O assunto deverá ser pautado na próxima reunião do CNPE.” •

Publicado na edição n° 1313 de CartaCapital, em 05 de junho de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Esqueleto no litoral’

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