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Esquecer, jamais

Segue a batalha para fazer da sede do DOI-Codi em São Paulo um memorial dos horrores da repressão

Esquecer, jamais
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Éter. Enquanto Deborah Neves luta pela conversão do prédio em memorial, Ivan Seixas prepara o museu virtual dos horrores – Imagem: Sérgio Barbo, Fábio Queiroz/ALESC e Memorial da Resistência de São Paulo
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“Você sabe onde está?”, foi a primeira pergunta dirigida ao então estudante de Geologia Adriano Diogo, ao chegar ao pátio da 36ª Delegacia de Polícia de São Paulo, em março de 1973. “Na antessala do inferno”, seguiu-se a resposta do major Carlos Alberto Brilhante ­Ustra, comandante do DOI-Codi por quatro anos, ídolo de Jair Bolsonaro.

Alojado nos fundos da delegacia, em área cedida pelo governo estadual, o Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna foi o principal órgão de repressão da ditadura. “Casa da Vovó”, “Hotel Tutoia”, “Hospital” e “Açougue” eram os codinomes usados pelos agentes do Estado para se referir ao local. “Ali, militares e policiais trabalharam lado a lado durante os anos que muitos deles hoje consideram memoráveis. Oficiais transformavam-se em ‘doutores’ e delegados em ‘capitães’. Havia outros códigos naquele lugar: ‘clínica-geral’, ‘clientes’, ‘pacientes’, ‘paqueras’, ‘cachorros’ e, dependendo de que lado se estava do muro, torturadores e terroristas”, descreve o jornalista Marcelo Godoy no livro A Casa da Vovó.

Diogo, ex-deputado estadual, lembrou-se do monólogo de Ustra durante uma visita às antigas dependências do destacamento, no bairro da Vila Mariana. Mensalmente, o Núcleo de Preservação da Memória Política, que conta com a participação e os depoimentos de ex-presos políticos, organiza visitas aos porões da delegacia. Um dos depoentes confessou ainda se abalar ao ver um cachorro puxado pela coleira: “Recordo o que fizeram comigo”.

A depender da disposição de dois grupos de ativistas, relatos como esses não serão esquecidos. Coordenado pela historiadora Deborah Neves, o Grupo de Trabalho Memorial DOI-Codi, formado por representantes de ONGs, universidades e ex-presos políticos, prepara terreno para a criação de um “museu” no local. Enquanto a proposta não sai do papel, um projeto da Associação Brasileira de Imprensa, organizado pelos jornalistas Ivan Seixas e Moacir Oliveira, dá os últimos retoques em um memorial virtual a ir ao ar em agosto. Ex-militante, Seixas conhece bem as instalações: foi levado ao centro de tortura aos 16 anos. Além disso, um documentário parcialmente filmado nas dependências do DOI-Codi e lançado em abril, Memória Sufocada, projeta nova luz sobre o tema, ao reconstruir o passado por meio de imagens do período e associá-las ao presente. Não à toa, o título do documentário faz alusão ao livro A Verdade Sufocada, controversa biografia de Brilhante Ustra.

Fundado em julho de 1969 como Operação Bandeirante (Oban), financiado por empresas brasileiras e multinacionais, Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, bancos e pelo então prefeito Paulo Maluf, que forneceu instalação elétrica e asfaltamento do pátio e ruas adjacentes, o órgão passou, por decisão do II Exército, a chamar-se DOI-Codi no ano seguinte, mesmo período da criação da Polícia Militar e da Rota. Em tese, funcionava como centro de inteligência, busca e captura de dissidentes políticos. Mas, segundo relatório confidencial do Exército, hoje conservado pelo Arquivo Nacional, até dezembro de 1974 morreram, no centro, 50 presos.

Como é possível notar nas visitas monitoradas pelo Núcleo Memória, as salas de interrogatório (e tortura) estão relativamente conservadas, portanto, ainda lúgubres. Por outro lado, as celas na delegacia, inclusive a solitária, transformaram-se em escritórios. A casa onde o “Doutor Tibiriçá”, o major Ustra, vivia com a família tornou-se depósito de materiais. “A filha dele andava por aqui e brincava com o pau de arara”, relembra Diogo. Outras crianças foram levadas ao DOI-Codi por ordem de Ustra, entre elas os filhos de Amélia Teles, que viram a mãe e o pai após sessões de tortura. Tanto para Seixas quanto para o fundador do núcleo, Maurice Politi, não havia porões da ditadura. “As coisas aconteciam abertamente, na luz do dia”, relata Politi, ex-militante do setor de logística da Aliança Libertadora Nacional.

Enquanto o espaço físico continua em disputa, um “museu” virtual será lançado em agosto

Em 2014, o prédio foi tombado a pedido de Seixas, cujo pai foi executado numa sala de interrogatório. Ex-militante do Movimento Revolucionário Tiradentes, o jornalista tornou-se ativista de Direitos Humanos e um dos proponentes do Memorial da Resistência, o primeiro dedicado à ditadura, na antiga sede do DOPS paulista. Agora é a vez de um novo museu, on-line. “No pedido de tombamento havia a recomendação de criação de um memorial. Devido à demora do espaço físico, produzimos o Memorial Virtual em Homenagem às Vítimas da Tortura”, esclarece. “Todo o espaço foi fotografado, então o visitante poderá fazer um passeio virtual pelo ambiente.”

Deborah Neves foi a relatora do pedido de tombamento do prédio. Desde 2018, com apoio do Núcleo Memória e outras entidades, ela se dedica a elaborar um centro de memória. “A tendência é manter o espaço como ele está, com mínima intervenção e com a ideia de que houve violação de direitos e cometimento de crimes contra a humanidade”, esclarece. “Falta uma sinalização positiva do governo do estado para a implantação do espaço, mas os trabalhos do grupo estão avançados e, no segundo semestre, devemos iniciar uma pesquisa de arqueologia forense para a possível identificação de vestígios genéticos no edifício.”

Ao esforço das vítimas e familiares e de abnegados defensores de direitos humanos une-se uma ala do Ministério Público que há décadas luta pela punição dos torturadores. Uma batalha inglória, mas não totalmente perdida. Em janeiro, Aparecido Calandra e outros dois delegados aposentados, Dirceu Gravina e David dos Santos Araújo, foram condenados a pagar indenizações de 1 milhão de reais por crimes cometidos durante a ditadura. O Tribunal Regional Federal da 3ª Região reconheceu os danos causados pelos agentes à sociedade, pela participação na tortura e morte de 25 detidos, incluídos o jornalista Vladimir ­Herzog e o operário Joaquim Alencar de Seixas. “É obrigação fundamental da democracia fazer a condenação à ditadura, aos torturadores e à prática de tortura, que ainda hoje ocorre, justamente por não terem sido condenados os torturadores do passado”, afirma Seixas. •

Publicado na edição n° 1259 de CartaCapital, em 17 de maio de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Esquecer, jamais’

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