O Congresso e os homens de bem

Não é mais possível ignorar que uma bancada impregnada de moralismo e obscurantismo cristão tem um poder de barganha cada vez maior no Congresso

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A interminável crise política brasileira, sem dúvida, é coisa de cinema. Como não poderia deixar de ser, há pelo menos quatro documentários em andamento sobre este que é um dos capítulos mais conturbados da nossa história. O mais promissor deles acompanha de perto os últimos suspiros de Dilma Roussef na presidência da República e tem a assinatura de uma faixa preta da sétima arte – Anna Muylaert, diretora do consagrado “Que horas ela volta?“.  

Mas a polarização política, que descambou para o ódio escancarado nas ruas e nas redes sociais, já vem sendo objeto do olhar cinematográfico muito antes de o impeachment de Dilma Roussef pegar os brasileiros pelo fígado.

Espécie de prólogo da crise, o documentário Entre os Homens de Bem estreia em setembro na tela do Festival de Brasília, jogando luz sobre o avanço do conservadorismo e do fundamentalismo religioso através de um personagem singular da cena política: Jean Wyllys, o primeiro parlamentar assumidamente gay e militante da causa LGBT no Congresso Nacional.  

As gravações tiveram início em março de 2013, quando o deputado pastor Marco Feliciano – agora às voltas com uma acusação de estupro – foi eleito presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, apesar de suas públicas e notórias declarações racistas e homofóbicas.

Pouca gente se dá conta, mas a convulsão social gerada pela eleição de Marco Feliciano é a fagulha fundamental que acendeu o barril de pólvora em que se converteria a política brasileira. O episódio catalisou a falência do pacto social proposto pelo lulismo, além de impulsionar uma avalanche de forças que já não têm qualquer constrangimento de se assumirem conservadoras, em alto e bom tom.   

Desde as massivas jornadas de junho de 2013, passando pelo acirramento de ânimos das eleições gerais do ano seguinte, e chegando ao pico de tensão com a operação Lava Jato e o afastamento de Dilma, um amplo leque de tendências de direita vem se consolidando na política nacional.


Ele engloba os liberais e advogados do Estado mínimo de sempre, mas também traz para os holofotes do palco um conjunto de atores que até pouco tempo atrás se restringia a um papel anedótico e folclórico na fauna que habita o Congresso.  

Definitivamente, os tempos mudaram: Marco Feliciano se elegeu como terceiro deputado mais votado de São Paulo. Seu colega de partido Jair Bolsonaro, que dispensa apresentações, foi o mais popular no Rio de Janeiro – o suficiente para cultivar o sonho de se sentar na cadeira de presidente da República em 2018.

Já não é mais possível ignorar o fato de que uma bancada impregnada de moralismo e obscurantismo cristão tem um poder de barganha cada vez maior no Congresso. Não à toa, o famigerado “centrão” – o baixo clero das legendas de aluguel recheadas de deputados da Bíblia, da bala e do boi – catapultou o evangélico Eduardo Cunha à presidência da Câmara e defenestrou Dilma do Palácio do Planalto.

Por outro lado, a ascensão da direita ultraconservadora e o ocaso do lulismo abriu portas para a primavera de novas roupagens da esquerda, que bebem mais em Foucault do que em Marx. É justamente em nome da política de afetos e de identidades, e não da eterna e insolúvel luta de classes, que os movimentos sociais têm se organizado e feito barulho. Feministas, LGBTs, negros, indígenas e maconheiros que o digam.  

Por tudo isso, o documentário Entre os Homens de Bem consiste em um retrato fiel e instantâneo destes tempos belicosos e instigantes. Nem de longe é propaganda política panfletária em forma de cinema.

Só não há como negar o óbvio: o vencedor de um reality show global e militante da causa LGBT representa um corpo estranho num Congresso Nacional dominado por homens brancos heterossexuais. Estrear no coração do poder do país é uma oportunidade ímpar para propor um debate de alto nível sobre o atual cenário da política brasileira. Festival de Brasília, aí vamos nós!

Carlos Juliano Barros, diretor de “Entre os Homens de Bem”, é jornalista e documentarista. Em parceria com Caio Cavechini, dirigiu “Carne Osso – O Trabalho em Frigoríficos”, vencedor do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos de 2013, e “Jaci – Sete Pecados de uma Obra Amazônica”, selecionado para o festival “É Tudo Verdade” e vencedor da Mostra Ecofalante de 2016. 

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