Política
Enfim, um desfecho?
Pacto celebrado por Lula promete encerrar disputa territorial de 40 anos entre militares e quilombolas


Alcântara, no Maranhão, é a cidade com a maior proporção de quilombolas do País. Pelo menos 84,5% dos habitantes do município se declaram remanescentes de quilombo, segundo o Censo Demográfico 2022: Localidades Quilombolas. São pessoas que há mais de 40 anos travam uma luta histórica com a União, envolvendo o território, parte dele ocupada desde o início da década de 1980 pelo governo militar, para instalação do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), uma base aérea de lançamento de foguetes e satélites. Agora, a peleja parece ter chegado ao fim. Em setembro, o presidente Lula esteve em Alcântara para assinar um acordo com entidades representativas dos povos tradicionais, o qual garante a titulação de terra para os moradores locais, e anunciou uma série de políticas públicas voltadas para atender os quilombolas, como a instalação de um instituto federal dentro do território e projetos habitacionais do Minha Casa, Minha Vida. Pelo pacto, a regularização territorial começa a ser concretizada no prazo de um ano.
Mas a aparente paz selada tem um preço: os quilombolas concordaram em abrir mão de uma área de 9 mil hectares, onde está instalado o CLA. Eles não poderão mais questionar judicialmente a área, que passa a ser de domínio da base militar. Em contrapartida, o Ministério da Defesa se compromete a não expandir o espaço delimitado, ameaça que vinha fazendo há alguns anos e que iria impactar diretamente no direito territorial dos quilombolas. A base militar está instalada numa região geopolítica estratégica, hoje cedida ao governo dos EUA. “A infraestrutura do local é considerada obsoleta, mas é importante para eles manter o espaço, tendo em vista que está localizada numa região que oferece algum tempo de vantagem para interceptar mísseis lançados contra a América Latina ou mesmo contra os EUA”, explica o cientista político Danilo Serejo, quilombola de Alcântara e autor do livro A Atemporalidade do Colonialismo: Contribuições para Entender a Luta das Comunidades Quilombolas de Alcântara e a Base Espacial.
Mediação. O acordo foi negociado pelo advogado-geral da União, Jorge Messias – Imagem: Rafael Otero/AGU
Além de garantir os 9 mil hectares à base militar, o Decreto de Interesse Social e a Portaria de Reconhecimento do Território assinados pelo presidente Lula preveem a regularização de 78 mil hectares de títulos de terras para a população quilombola. A próxima etapa é a titulação definitiva da posse da terra. Um dado curioso, para dizer o mínimo, é que a conciliação acontece no momento em que a Corte Interamericana de Direitos Humanos está prestes a apresentar uma sentença condenatória ao Estado Brasileiro, réu desde 2021, acusado de violar os direitos ancestrais da comunidade quilombola de Alcântara e de remover compulsoriamente e sem indenização 312 famílias, em 1983, quando da instalação do CLA.
“O acordo é bom, mas não põe fim ao conflito porque ele não ataca o cerne do problema e não oferece segurança jurídica necessária para a gente acreditar que o Estado brasileiro vai cumprir a promessa. O termo de compromisso protege muito mais os militares, porque na ação em curso estamos pedindo que a área ocupada pelo Centro de Lançamento seja devolvida às comunidades. Isso nos permitiria discutir o repasse de royalties ou outro tipo de compensação para a comunidade”, destaca Serejo. “Agora, a sentença fica esvaziada e você joga fora a oportunidade que este caso tem na Corte Interamericana. É a primeira vez que o Estado brasileiro está sendo julgado em um tribunal internacional por crimes e violações cometidos contra comunidades quilombolas. É emblemático, histórico”, completa. “O acordo não é ruim, mas ele é claramente uma tentativa de o Estado brasileiro promover um consenso com as comunidades para fugir de uma condenação internacional”, reforça Melisanda Trentin, coordenadora de Justiça Socioambiental e Climática da Justiça Global, uma das entidades autoras da denúncia contra o Brasil na Corte Interamericana dos Direitos Humanos.
Base. A Defesa renunciou à pretensão de expandir o centro de lançamento de foguetes – Imagem: Sgt. Bianca/FAB
O presidente da Fundação Palmares, João Jorge Rodrigues, admite que a sentença na Corte perde força com o acordo porque, para ele, não há mais objeto, já que a assinatura do pacto põe fim ao conflito. “O objeto desaparece. Se a sentença estava pronta, ela deve ser refeita. Na própria audiência, no ano passado, os advogados da AGU reconheceram que os quilombolas de Alcântara tinham razão”, diz, acrescentando que, se a sentença for negativa para o Brasil, o governo deverá recorrer ao escritório de Haia, na ONU, para rever a decisão. A Justiça Global divulgou uma nota classificando a assinatura do acordo como temerária, lembrando que o governo teve inúmeras oportunidades de titular e garantir os direitos tradicionais das comunidades quilombolas de Alcântara, mas não o fez.
“A nossa expectativa era de que o caso de Alcântara pudesse, de alguma forma, sinalizar para uma solução mais ampla, porque o problema se repete em várias territórios quilombolas, e não fosse apenas uma solução localizada”, lamenta Emily Almeida, da Justiça Global, colocando em dúvida o cumprimento do acordo. “A gente tem receio de como vai ser a execução dessa medida. O que foi sinalizado agora poderia ter sido feito nos primeiros governos Lula ou no governo Dilma, mas não tivemos avanços. Como que isso vem agora?” Danilo Serejo lembra que, em 1983, o primeiro acordo feito entre as comunidades e os militares para tratar dos direitos das famílias que foram remanejadas foi registrado no cartório de Alcântara e nunca foi cumprido. Em 2004, o Brasil criou um grupo de trabalho interministerial, comprometendo-se a implantar um pacote de mais de 60 ações em políticas públicas em Alcântara, mas a única promessa realmente cumprida foi a implantação do programa Luz para Todos.
O Brasil está sendo julgado na Corte Interamericana dos Direitos Humanos por violar direitos dos quilombolas na região
“Essa ideia de condicionar o acordo à portaria de reconhecimento e ao Decreto do Interesse Social já foi discutida anteriormente, é até objeto de ação judicial, a União foi condenada em 2008, mas o Estado brasileiro nunca cumpriu”, destaca o cientista político, que também cobra uma reparação pública pelos crimes de violações cometidos pelo Estado brasileiro ao longo dos anos. “Existe um histórico de violações que esse acordo passa por cima. São crimes cometidos pela ditadura que precisamos discutir como é que os militares serão responsabilizados. Isso passa pelo direito à memória e à verdade. O Estado brasileiro precisa formalizar um pedido de desculpas às comunidades que foram retiradas do seu território de forma forçada”, dispara. Rodrigues reconhece não existir uma política de recuperação da população negra, mas diz que o momento é de avançar na titulação dos territórios. “Demos o primeiro passo, o próximo é falar sobre a reparação, não só para Alcântara, mas para a comunidade afro-brasileira em geral. Todas as políticas que cercearam o acesso à educação, à moradia, à segurança, aos crimes do Estado brasileiro contra pessoas negras precisam ser reparadas.”
O Brasil também é réu por não cumprir a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que prevê consulta prévia, livre e informada sobre projetos e medidas que afetem povos indígenas e comunidades tradicionais. Em julho deste ano, a própria OIT recomendou que o País titule os territórios quilombolas de Alcântara, atendendo a uma reclamação apresentada em 2019 por várias entidades de defesa dos quilombolas. “O Estado brasileiro ocupou um território ancestral sem consulta prévia, sem licenciamento ambiental, e é preciso que as populações tradicionais sejam reconhecidas como sujeitos de direitos. Ainda que esse acordo seja cumprido, ele não vai titular o território em sua integralidade. Nem permitir que aqueles 9 mil hectares sejam reparados, ressarcidos de alguma forma, às populações que são titulares daquele território. A gente não questiona a importância da existência de uma base espacial. Mas ela foi instalada em um território ocupado e com registros, desde 1600, comprovando a existência dessas populações”, reforça Trentin.
Visões. A titulação das terras é só o primeiro passo, garante Rodrigues, da Fundação Palmares. Para Serejo, o acordo é positivo, mas não encerra a disputa – Imagem: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil e Jane Araújo/Agência Senado
A mediação do acordo foi feita pela Advocacia-Geral da União, que participou de todo o processo de negociação, desde a audiência de julgamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em abril de 2023, até a assinatura do acordo com os líderes quilombolas. Na audiência da Corte, inclusive, o advogado-geral da União, Jorge Messias, reconheceu a série de violações contra a população de Alcântara e fez, na ocasião, um pedido de desculpas. Comprometeu-se a intermediar a resolução do impasse. Messias esteve ao lado de Lula e outros ministros na visita ao quilombo para anunciar a assinatura do acordo e, diante de quilombolas que acompanhavam a comitiva, fez um discurso mais político do que técnico: “Ser advogado é fazer justiça, e é isso que estamos fazendo. Não é só a derrubada de muros. Foram construídos muros invisíveis, e a população não podia entrar na terra que lhes pertencia. Podem bater no peito agora, vocês vão poder dizer: ‘Esta terra é minha agora’. É a partir desse decreto que a gente vai conseguir fazer com que todas as melhorias cheguem ao povo de verdade.”
Para Dorinete Serejo, coordenadora-geral do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara, entidade que assinou o acordo com o governo federal, o desfecho de quatro décadas de conflito representa um momento único. “Nunca antes chegou uma proposta em que o Centro de Lançamento de Alcântara abria mão da faixa litorânea, onde eles queriam expandir mais 12 mil hectares. E agora eles abrem mão, com a única ressalva de que a gente não interfira lá na área que eles já ocupam. Isso motivou as organizações a aceitarem o acordo. A gente perde um pouco, mas considera que foi um avanço muito importante para dar segmento à titulação”, diz, acrescentando que o prazo de um ano para começar a regularizar os títulos é necessário para resolver todo o processo burocrático de desapropriação de terras de particulares e áreas que estão sob o poder do Estado. •
Publicado na edição n° 1331 de CartaCapital, em 09 de outubro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Enfim, um desfecho?’
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