Joanna Burigo

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É fundadora da Casa da Mãe Joanna e mestre em Gênero, Mídia e Cultura.

Opinião

Amor & Sexo e o mimimi machista

Enquanto nos digladiamos em polêmicas e disputas ideológicas, os machistas como Pondé e Kataguiri seguem papagaiando falácias

Feminismo na Rede Globo: frisson e fricções nas redes sociais
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Na quinta-feira 26, estreou na Rede Globo a décima temporada do programa Amor & Sexo. Feminismo foi o tema do episódio de abertura.

O assunto chegou aos trending topics do Twitter e, numa escala que vai da euforia à exasperação, causou frisson e fricções nas redes sociais.

Temáticas levantadas pelo feminismo, de violência doméstica a padrões duplos de tratamento, vêm sendo exploradas em produções audiovisuais desde muito antes do Thunderbird de Thelma & Louise desaparecer no Grand Canyon.

Na década de 70, a recentemente falecida protagonista do memorável The Mary Tyler Moore Show e Regina Duarte em Malu Mulher já emulavam A Garota Genial do filme homônimo de Barbra Streisand.

A inserção do feminismo em produtos culturais – e aqui me refiro às produções que contemplam as lutas e história próprias do movimento – também não é tão nova.

O extinto TV Mulher, bem como o global Esquenta! tratou sobre feminismo em 2015, não me deixam mentir. O longa As Sufragistas e o documentário She’s Beautiful When She’s Angry são mais duas das ainda raras produções que têm feministas no coração de seus roteiros.

Vejo o aumento da presença do pensamento e da práxis feminista nos discursos de mídia, à medida com que novas vozes são alavancadas pelo movimento, como salutar.

Independentemente dos argumentos contra a inserção do feminismo nos grandes veículos de mídia – a saber, por estes serem empresas privadas cujos produtos que visam lucro são calculados a partir de pesquisas meticulosas acerca dos interesses de suas audiências – e, ao mesmo tempo, precisamente porque estamos todos inseridos em um sistema capitalista de constante cooptação e esvaziamento de discursos marginais, é que é importante estender o nosso alcance – ainda que seja em cápsulas.

Amor & Sexo é um show de entretenimento de fim de noite, onde altos níveis de pastiche e camp recheiam o tempo entre uma piada e um número de dança.

Não dá para esperar que um programa de auditório, no qual muitas convidadas falam entre atrações debochadas, aborde questões políticas com a prudência e a profundidade da militante comprometida com tensionamentos acadêmicos.

O feminismo existe para aquém e além das problematizações e disputas entre feministas, e é na melhor das hipóteses ingênuo e na pior autoritário esperar que vá existir uma poção mágica unificante à nossa disposição.

Os feminismos são tão variados como as mulheres que os produzem, e sempre me pareceu mais fecundo, em vez de atacar outras feministas, buscar pontos comuns entre as diversas perspectivas teóricas que elas apresentam.

Preferencialmente a partir do que estas perspectivas significam na prática.

Mimisóginos 

E, na prática, na mesma semana em que Amor & Sexo foi ao ar, Luiz Felipe Pondé publicou um texto na Folha de S.Paulo reclamando que a conta de um suposto sofrimento masculino com a (aparentemente já alcançada?) emancipação feminina está na mesa.

“O que será do homem do século 21”, o autor divaga já na abertura, e encerra seus devaneios alertando a mulher do mesmo século que terá de parar de acusar homens de serem “opressores” (as aspas são dele) caso queiram arranjar pares inteligentes.

Mais doçura, ele pede das mulheres, hoje tão fálicas, tão fáceis, tão histéricas, tão chatas.

Ora, se isso não é mimimi machista eu não sei o que é.

Contrastar demandas por equidade com o desejo por doçura é falacioso, para falar bonito, ou patético, para falar em bom português. Apesar de toda a “opressão” (agora sim, entre aspas) que alega sofrer, no mesmo texto o filósofo afirma nunca ter sido tão fácil “comer” mulheres.

Não me interessa questionar a veracidade da descrição da vida sexual de quem nem quero conhecer, mas essa filosofia de comedor oprimido, com perdão da acidez, não faz sentido.

A “emancipação” dos homens, ele alega, terá um efeito tão decisivo na sociedade quanto a emancipação das mulheres, e quando ela acontecer, casamentos acabarão e filhos desaparecerão.

O que não parece ocorrer ao professor é que as feministas não estão nem aí para a manutenção da instituição sagrada do casamento, que liberdade sexual sempre foi uma bandeira nossa e que temos muito mais a dizer sobre pais que desaparecem do que sobre filhos que podem não vir a aparecer.

A que emancipação masculina ele se refere?

Emancipação total, irrestrita e sancionada por mulheres (doces, generosas) das responsabilidades de um ser humano adulto e ético? A mente ferve.

O texto é pura fantasia patriarcal, tão pueril e ilógico que quaisquer esforços no sentido de desarticulá-lo chegam a parecer redundantes, pois ele faz isso sozinho.

E essa sempre foi a relação de homens machistas para com o feminismo: tentam deslegitimar nossas demandas sem sequer saber do que elas se tratam.

Seria cômico, não fosse a tragédia de estarmos vivendo, uma era em que são justamente estes homens catastroficamente imaturos, visivelmente totalitários e potencialmente inseguros os que estão no poder.

Estamos vivendo a fase da volta dos que não foram, e declarações equivocadas de homens ameaçados – bem como o exército de mimimisóginos que elas engendram – já podem ser lidas como bolor de um sistema obsoleto que luta com unhas e dentes para que nada mude.

É estimado que a Marcha das Mulhres tenha congregado 4,5 milhões de pessoas nos mais de 600 eventos solidários que ocorreram em 70 países – incluindo o Brasil, que tem cá seu lote de retrocesso patriarcal e misoginia institucionalizada para lidar.

Milhões de pessoas que, como frisou Angela Davis em seu já legendário discurso durante a manifestação em Washington, representam forças poderosas de mudança e estão determinadas a impedir mais avanços da cultura moribunda do patriarcado heteronormativo racistas.

O maior protesto da história dos EUA foi articulado por mulheres prontas para declarar: aqui não, violão.

Enquanto misóginos diplomados e eleitos chafurdam no próprio machismo no afã de resgatar um tempo quando ainda eram a voz da razão, outra feminista – Nancy Fraser – nos lembra das possibilidades emancipatórias embutidas em situações instáveis. Para ela, este pode ser tempo de abertura, de conquistar novas mentes e corações.

Não nos silenciando sobre racismo e machismo, e sim demonstrando com ainda mais afinco como estas antigas estruturas de opressão podem encontrar novas expressões e terrenos no acirrado capitalismo neoliberal.

Os feminismos estão em processo acelerado de desenvolvimento, e disputas narrativas são corolários desse progresso. Já o patriarcado não engana mais ninguém com sua imaturidade covarde. É preciso continuar trabalhando para que sua erradicação se conclua.

Não seria machista exigir que o feminismo – como é esperado das mulheres – seja impecável?

A negação da humanidade das mulheres reside também nas expectativas que temos sobre nós mesmas, e crer que falhas – reais ou imaginárias – em nossas estratégias são justificativas para nos expormos até as últimas consequências mais parece sanha misógina do que ação feminista.

Enquanto nos digladiamos porque esse ou aquele discurso feminista foi mal ou pouco articulado em rede nacional, o moleque-propaganda do MBL, Kim Kataguiri, segue divulgando conteúdo feito de pura desonestidade intelectual.

Machistas vêm papagaiando falácias há anos, mas nunca elas foram tão facilmente derrubáveis com estatísticas como são hoje.

A bobagem “mulheres recebem menos porque produzem menos”, por exemplo, já caiu por terra mais de uma vez – e quem diz isso não sou eu, mas pesquisas de instituições como o IBGE, o PNAD e o CEPAL.

Pessoalmente, detesto apontar dedos, para quem for – inclusive e principalmente para machistas. Mas me sinto no dever moral de seguir um conselho dado por outra feminista, Chimamanda Ngozi Adichie, no final de 2016: agora é o momento de descartar cuidados que mais se assemelham a uma falta de convicção, e é hora de falarmos sobre as coisas como elas realmente são.

Os horrores aos quais as mulheres foram e ainda são submetidas não podem ser esquecidos, e pelo andar da carruagem os homens no poder nos querem de volta ao lugar de onde, com muito feminismo, estamos conseguindo sair.

Pois não passarão. Precisamos de, e estamos articulando, uma massa crítica de mulheres denunciando esses horrores antes que eles se reinstaurem.

Fernanda Lima, a apresentadora do Amor & Sexo, depois das contundentes intervenções de feministas aguerridas como Djamila Ribeiro, Antonia Pellegrino e Monique Prada e de poderosas apresentações das divas Karol Conká, Gaby Amarantos e Elza Soares, encerrou o episódio com uma rajada de dados que expõem as consequências violentas e materiais da iniquidade de gênero, finalizando o recado em alto e bom tom: “chega de mimimi machista.

Negar verdades inconvenientes é puro mimimi, coisa que machistas sempre fizeram, e seguem insistindo em fazer. Mas agora, além de estarmos mais munidas com dados do que nunca, e nos organizando com tenacidade, talvez tenha também ficado mais fácil de declarar isso em casa, no trabalho e no convívio social.

Machismo é mimimi, sim. Já deu até na Globo. Plim plim!

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