Política

Dubiedade das Forças Armadas alimenta beligerância de Bolsonaro

Militares ganharam cargos e benesses do presidente, partilham da ideologia ‘do inimigo interno’, mas apenas ‘sopram’ que não são governo

Jair Bolsonaro (Foto: Marcos Corrêa/PR)
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O general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-auxiliar de Jair Bolsonaro, foi a única voz fardada até aqui a criticar a ligação estabelecida com as Forças Armadas pelos bolsonaristas que preparam manifestações em 15 de março. “Confundir o Exército com alguns assuntos temporários de governo, partidos políticos e pessoas é usar de má fé, mentir, enganar a população”, tuitou.

Os militares são um dos campeões de confiança popular nas pesquisas, o que ajuda Bolsonaro, que tem a imagem atrelada a eles, a peitar o Congresso, os políticos e a mídia. Mas não é só a reputação dos quartéis que contribui para a beligerância presidencial. Esta alimenta-se também de uma postura dúbia, que beira a hipocrisia, por parte da alta oficialidade.

Nunca houve tantos fardados em cargos federais, nem na ditadura militar que durou de 1964 a 1985. No Palácio do Planalto, por exemplo, onde Bolsonaro dá expediente, todos os cargos importantes são ocupados por pessoas das Forças Armadas, exceto a Secretaria de Comunicação Social.

O ex-capitão distribui recompensas à caserna, inclusive simbólicas. Em seu primeiro ano no poder, buscou reabilitar a ditadura: mandou o Ministério da Defesa comemorar a data do golpe de 1964, golpe que ele disse não ter havido. Dias antes, havia despachado ao Congresso uma lei com benesses financeiras para as Forças Armadas (gratificações, auxílios), sancionada em dezembro.

Se falta verba ao Bolsa Família e às agências do INSS, o governo injetou, em 2019, 9,8 bilhões de reais na Empresa Gerencial de Projetos Navais (Emgepron). E para isso até precisou se valer de um mecanismo que permite driblar o congelamento de gastos públicos por 20 anos vigente desde 2017.

Bolsonaro e as Forças Armadas

Apesar disso tudo, os militares da ativa tentam convencer a opinião pública, em conversas reservadas com jornalistas, que Bolsonaro é uma coisa e as Forças Armadas, outra. “Não tem jeito: nossa imagem está associada ao governo”, reconhece um general aposentado.

Um gesto vistoso de demarcação de distância em relação ao governo por parte do Alto Comando do Exército, grupo de 16 generais da ativa que comandam tropas, ocorreu em junho de 2019. Havia duas vagas de general 4 estrelas, a patente máxima, para preencher. Um dos candidatos era o porta-voz de Bolsonaro, Otávio Rego Barros. Ele foi rejeitado – e entraria para a reserva em setembro.

No mês em que Rego Barros foi preterido, Bolsonaro trocou Santos Cruz pelo general Luiz Eduardo Ramos na Secretaria de Governo. Ramos era 4 estrelas da ativa. O chefe do Exército, Edson Pujol, pediu-lhe que fosse para a reserva, para evitar vínculo das Forças Armadas com o Planalto. Ramos não aceitou. Mas não participa das reuniões do Alto Comando. Consta que está mal com os colegas.

O general Walter Souza Braga Netto, que assumiu a Casa Civil da Presidência na semana anterior ao Carnaval, topou deixar de ser 4 estrelas. Ele era o chefe do Estado Maior do Exército e antecipou em cinco meses a aposentadoria. Para o seu lugar no Estado Maior foi o general que comandou a guarda pessoal de Dilma Rousseff na Presidência, Marcos Antonio Amaro dos Santos.

Pujol já fez gestos ousados de distanciamento em relação ao governo. Em 13 de agosto de 2019, dia da abertura em Brasília do I Congresso Nacional das Associações Militares, escreveu em mensagem às tropas que estas “devem se manter isentas de questões político-partidárias, sindicais e corporativas”. Dizia mais: que ao militar da ativa é “proibida a filiação a quaisquer partidos”.

Em comemoração ao Dia do Soldado, 25 de agosto, citou um general falecido, Leônidas Pires Gonçalves. Foi quando este era ministro do Exército, nos anos 1980, que Bolsonaro deixou as Forças Armadas, após a revelação de que planejava explodir bombas para conseguir aumento salarial. Bolsonaro e Gonçalves trocaram ofensas na época.

A propósito: no Ministério da Defesa, há uma espécie de dossiê sobre a vida de Bolsonaro a conter a informação de que ele, quando tenente, vendia material do quartel na Feira de Acari, no Rio.

Autor do artigo “Bolsonaro e os quartéis: a loucura com método”, de 2019, o economista Eduardo Costa Pinto, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que dá aulas em cursos de militares, vê comunhão de visão e de interesses entre Bolsonaro e as Forças Armadas. “As disputas são pessoais, por espaço, igual havia na ditadura, sem que o regime acabasse”, diz.

Para ele, o que une os dois grupos é um “inimigo interno comum”. Esse “inimigo” são os progressistas. É o “marxismo cultural”, aquela defesa de padrões civilizatórios mínimos, de mulheres, negros, gays e indígenas, que o bolsonarismo e a caserna encaram como preparativos de uma revolução comunista, tal qual pregada pelo filósofo italiano Antonio Gramsci (1891-1937).

O politicamente correto

O combate militar brasileiro ao “marxismo cultural”, diz Costa Pinto, está teorizado no livro “A revolução gramscista no ocidente”, de um general já morto, Sérgio Augusto de Avelar Coutinho. Uma antologia de frases contra o “politicamente correto” da lavra de Eduardo Villas Boas, chefe do Exército de 2015 a 2018, mostra que o pensamento de Coutinho segue vivo nas tropas. Bolsonaro é crítico do “politicamente correto”: diz querer ter o direito de fazer “piada de cearense cabeçudo”.

O filósofo Paulo Ghiraldelli, da USP, concorda que na relação dos fardados com o presidente “há indisposição entre grupos, mas só isso”, conforme escreve no livro A Filosofia explica Bolsonaro, lançado em outubro. “Hoje, os militares de Bolsonaro são uma massa amorfa”, anota a obra.

Para Ghiraldelli, a ideologia do “inimigo interno” está entranhada no DNA militar nacional. O patrono do Exército, o Duque de Caixas (1803-1880), não foi apenas o líder das tropas vitoriosas na Guerra do Paraguai (1865-1870), um genocídio da população indígena daquele país. Foi também o comandante que esmagou revoltas populares na monarquia, como a Balaiada no Maranhão.

Não é difícil entender, portanto, por que a Constituição de 1988 tem uma “aberração”, como costuma dizer outro filósofo uspiano, Vladimir Safatle. O artigo 142 confere uma espécie de legitimidade legal a golpes de Estado, ao definir que a garantia “da lei e da ordem” é uma das tarefas das Forças Armadas.

Eis por que Bolsonaro sente-se à vontade para ir à guerra contra os “inimigos”.

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