Política

Doria, Witzel e Zema são bolsonaristas cegos no tiroteio

No descascar de seus abacaxis, os governadores eleitos a reboque de Bolsonaro perigam um involuntário haraquiri

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Nas eleições de 2018, o impensável Jair Bolsonaro foi guindado ao poder por um composto de golpistas variados, ricaços gananciosos, pobres desalentados, antipetistas patológicos e debiloides em geral. A regurgitar a ladainha da “nova política”, esse biscrok de tempos em tempos oferecido a vira-latas e cães de pedigree, veio a reboque uma legião de estranhos, em ambos os sentidos constantes do dicionário. Estranhos porque vindos de fora, supostos outsiders da política. Mas também, em parte, uma gente esquisita, egressa, dá-se a impressão, de um hospício que tivesse aderido à luta antimanicomial, franqueando a saída aos internos. Desprovidos do Gardenal, confrontam-se há mais de cem dias com a realidade, na qual os moinhos da luta quixotesca dão lugar à vida como ela é. No descascar de seus abacaxis, conforme definiu Bolsonaro a tarefa de presidir o bananal, periga o cometimento de um involuntário e coletivo haraquiri.

Esse estranho contingente soma pelo menos 52 deputados federais, quatro senadores, os governadores de Rondônia, Roraima e Santa Catarina, todos eleitos pelo PSL, o Partido Social Liberal rebatizado Partido Só de Laranjas pelos gaiatos da internet. Há também aqueles que, embora atletas de outras agremiações, correram na esteira de Bolsonaro e chegaram em primeiro na maratona. Entre eles os governadores de Minas Gerais, Romeu Zema, do Partido Novo, e do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, do PSC. Além de João Doria, PSDB, a esta altura buscando acomodar-se ao formato de príncipe depois de ter atravessado a campanha como o sapo Bolsodoria, um híbrido camaleônico a juntar o Cramulhão e o Belzebu. À exceção deste, os demais encontram-se em periclitante situação, ora paralisados pela inépcia, ora jogados às feras da “velha política” – que vem a ser, bem, a política.

Um feito, segundo Amoêdo: “Zema administra um estado de 20 milhões de habitantes como se fosse uma startup”

Tomemos por exemplo o governador Romeu Zema, do Novo. Tantas são suas desventuras nesse começo de mandato  que o estilo discreto do mineiro gente boa, o physique du rôle do Steve Jobs e o sotaque texano de Araxá, onde nasceu, já inspiram nos incautos um sentimento de pena para com sua pessoa. Até o fechamento desta edição, Zema não havia aprovado um projeto sequer na Assembleia de Minas. A proposta de reforma administrativa, considerada uma espécie de prova de fogo de sua capacidade de articulação, corre o risco de transmutar-se num Frankenstein. Mais de cem emendas já foram apresentadas, a alterar as principais medidas do projeto, como a extinção e a incorporação de órgãos da administração pública.

A relação de Zema com a Assembleia assemelha-se à de Bolsonaro com o Congresso, um incêndio de grandes proporções. No papel, a base do governo tem 21 dos 77 deputados, um balaio de gatos que comporta PSDB, Cidadania, PP, PSC, PSB, Avante, PHS e SD, além do Novo. Na prática, aliados têm atacado o governador, que, a despeito de não ter o apoio formal do PSL, destina duas secretarias ao laranjal. No fim de semana passado, uma fala desastrada provocou a reação do PSDB. Em entrevista à IstoÉ Dinheiro, Zema, que administra um estado endividado e deficitário em cerca de R$ 11 bilhões previstos para este ano, disse que “todos os ex-governadores de Minas Gerais maquiaram contas”. Sendo Aécio e Anastasia ilibados gestores, como bem sabe o leitor, seus colegas de partido se revoltaram. “Espero que rapidamente mais esse ato demagógico e mentiroso seja desmentido”, escreveu em seu Twitter o líder do bloco governista na Assembleia, o tucano Gustavo Valadares. “Não é assim que tratamos aliados.” O presidente do partido em Minas, o deputado federal Domingos Sávio, creditou o palpite infeliz à “inexperiência” e à “falta de traquejo político”. O mesmo filme está em cartaz em rede nacional.

O governador de Minas recolhe fotos do antecessor, acusado de perdulário com molduras e passe-partout. Já o do Rio recebe de presente seu rosto confeccionado com projéteis (imagem de destaque), que beleza

Na internet, o governador não chega ao nível de excelência do ator João Doria, nem tem a capacidade de viralização de Bolsonaro, o líder mundial com maior interação no Facebook no último ano, quando abriu larga dianteira sobre Donald Trump. Ainda assim, Zema atua como razoável canastrão na propaganda de uma suposta austeridade. Pelas redes sociais, anunciou a doação de seu salário, copiando o Doria da primeira temporada, quando esteve à frente da Prefeitura de São Paulo. Comunicou, também, abrir mão do Palácio das Mangabeiras, a residência oficial. Em vídeo, como que no papel do Queiroz, pôs à venda carros usados do governo. Por fim, surgiu retirando das paredes quadros com a foto do ex-governador petista Fernando Pimentel, enquanto o acusava de perdulário pelo investimento em tais molduras e passe-partout. “Romeu Zema está conseguindo aos poucos o que nenhum político conseguiu”, celebrou João Amoêdo, “administrar um Estado com mais de 20 milhões de habitantes como se fosse uma startup”.

“Nesse discurso da nova política versus a velha política, o melhor é não adjetivar, é política e ponto. Algo que exige diálogo, o que o bolsonarismo insiste em não perceber”, analisa o cientista político Cláudio Couto, coordenador do Mestrado Profissional em Gestão e Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas. “Há um enorme despreparo em Bolsonaro e nas novas figuras que se elegeram aproximando-se dele. Não é o caso de João Doria, que mostra um aprendizado, não governa mais apenas pelas redes sociais, passou a fazer política de fato. Zema e Witzel, no entanto, sofrem do mesmo voluntarismo do presidente.” Para o sociólogo e presidente do Instituto Vox Populi, Marcos Coimbra, colunista de CartaCapital, “não basta o sentimento simplista, não muito diferente daquele do cidadão comum, de que só precisam de boas intenções, além de não se ter o rabo preso. Governar é muito mais complexo do que isso”. “Outro equívoco”, diz Couto, “é achar que se pode gerir a coisa pública como se gere uma empresa, caso de Zema. Não pode, e essa visão chega a ser até infantil, porque há entraves inclusive jurídicos que impedem isso”.

Em material de propaganda divulgado nas redes, o Partido Novo informa que houve um “processo seletivo” para a escolha do secretariado de Zema. Curioso, contudo, que não tenha tomado bomba o responsável pelo Meio Ambiente, Germano Luiz Vieira, um sobrevivente político das tragédias de Mariana e Brumadinho, e cujas ligações com as mineradoras é de conhecimento, diria a chefia deste repórter, até do mundo mineral. No sábado 13, o governador classificou o mais recente crime da Vale como um “acidente de engenharia”, disse que a fiscalização da barragem por parte do Estado seria “retrabalho” e que a mineração está sendo “demonizada”.    

Declarações inacreditáveis são uma especialidade do bolsonarismo e de seus apêndices, a saber se produzidas por objetivos estratégicos ou se fruto mesmo da imbecilidade, o que é bem mais provável. No Rio, o governador Wilson Witzel afirmou em campanha que “a polícia vai mirar na cabecinha e… fogo!” Quando soldados do Exército atiraram 80 vezes contra uma família negra a caminho de um chá de bebê, disse que “não me cabe juízo de valor”. Corrigiu-se depois, mas nada capaz de limpar a sua barra. Espécie de Mister Bean em vídeos para a internet (assemelha-se também ao inspetor dos desenhos do Pica-Pau), ora faz cooper com uma guarnição do Bope, ora esfalfa-se em flexões de braço. Sua imagem, no entanto, persiste como a do palhaço mau, aquele que estava no palanque a regozijar-se quando dois trogloditas ao seu lado quebraram uma placa de rua em homenagem a Marielle Franco.

Sob Witzel, a letalidade policial bateu recorde ao “mirar a cabecinha” de 305 vítimas

Embora tenha divulgado o cumprimento de 95 das 121 metas para os primeiros 100 dias de governo, não há nada de marcante em sua administração, a não ser a violência policial. No período, a letalidade de seus soldados bateu todos os recordes ao “mirar a cabecinha” de 305 vítimas. Sem contabilizar alguma “bala perdida” de snipers que, não obstante a inexistência da pena de morte no país, alvejam a distância os portadores de fuzis que não se encontram em condomínios da Barra da Tijuca. Há cenas recentes de helicópteros atirando a esmo sobre telhados de zinco em comunidades cariocas. Enquanto isso, permanece ao rés do chão as ações de incentivo à economia e um projeto de investimento em favelas.

Ainda assim, o “inspetor” Witzel já almeja a Presidência em 2022. Para tanto, busca firmar-se como uma direita razoável, no que precisará caprichar no Gardenal. “Diante do caos do Rio de Janeiro, ele tem pouquíssimas chances de se sair bem na fotografia. Com uma exceção: no caso de Sérgio Moro emplacar seu projeto para a segurança pública, terá a oportunidade de executar bandidos, o que é uma promessa de campanha”, diz Coimbra. “Agora, sua pretensão de disputar a Presidência é tão completamente descolada da realidade, que se deve questionar sua saúde mental.”

O governador de São Paulo, João Doria, posa com o ator e político Arnold Schwarzenegger. Exterminadores do futuro

No Congresso, a explosiva conjunção de tipos como a “jornalista” Joice Hasselmann e o ator pornô Alexandre Frota, ambos paridos do coito bolsonarista, prenunciava uma suruba de dessabidas conclusões. Como num concerto de heavy metal, o que se tem até o momento é uma tresloucada bateção de cabeças. A levar-se em conta o pensamento vivo daqueles que o presidente ajudou a eleger, a incompetência é de certa forma uma nesga de esperança. Imagine, pois, o tamanho do estrago, caso o bolsonarismo ultrapassasse a barreira dos dois neurônios, seria o fim, se já não o é.

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