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Dor e sofrimento

Em meio a uma grave crise humanitária, Ricardo Nunes dificulta a distribuição de alimentos e confisca barracas de quem vive nas ruas

Dor e sofrimento
Dor e sofrimento
Tragédia. A família de Alisson Marcelo mora em uma ocupação clandestina e teme ser despejada pela polícia a qualquer momento.Coordenador da Pastoral do Povo de Rua, o padre Júlio Lancellotti questiona as “políticas higienistas” da prefeitura paulistana – Imagem: Renato Luiz Ferreira
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Faltavam 20 minutos para as 9 da manhã. Alisson Marcelo estava apressado, tinha pouco tempo para terminar o café e caminhar até o trabalho, um bico em um ferro-velho da Mooca, bairro operário de São Paulo. Ele e sua esposa, Fabiana Aires, chegaram há três meses na capital paulista em busca de oportunidades. As coisas não saíram como o esperado e, desde então, o casal vive com dois filhos pequenos em uma ocupação clandestina. “É um lugar difícil, principalmente para as crianças”, lamenta. Depois de perder o emprego em um lava-rápido em Praia Grande, ele não conseguiu pagar o aluguel e a família foi despejada.

“Um amigo arrumou esse lugar pra gente morar aqui, em São Paulo. Mas lá não tem nada, nem fogão nem geladeira. Todo dia a gente vem comer aqui no padre Júlio, e não temos do que reclamar. A refeição está sempre boa. Tem muito albergue por aí que serve comida azeda”, conta o trabalhador, sempre de olho no relógio. A família costuma fazer o desjejum no Centro de Acolhida São Martinho, administrado pela Igreja Católica e financiado com recursos da prefeitura. Todos os dias, o padre Júlio Lancelotti, coordenador da Pastoral do Povo de Rua, celebra a missa das 7 na Paróquia São Miguel Arcanjo e, na sequência, reúne voluntários para auxiliá-lo no espaço comunitário. Diariamente, mais de 600 pessoas em situação de rua fazem até três refeições no local.

A pequena Maria Vitória, de 11 anos, acaba de ser matriculada na escola em São Paulo e ainda não entende os motivos da mudança. Sabe apenas que precisa se dedicar aos estudos para não voltar a passar as agruras da vida itinerante. “Quando crescer, quero ser advogada, para ajudar as pessoas que estão na mesma situação que a gente, agora.” Ao ouvir o relato da filha, Marcelo angustia-se com o futuro da família. “Preciso arrumar um trabalho fixo e tirar as crianças dessa vida. A polícia pode invadir a ocupação a qualquer momento e eu não quero que elas passem por isso.”

A cidade possui 48 mil desabrigados, revela pesquisa da UFMG. O número cresceu 12 vezes nos últimos dez anos

A população em situação de rua não para de crescer em São Paulo. De acordo com recente pesquisa da UFMG, ao menos 48,2 mil pessoas pernoitavam em albergues ou debaixo das marquises paulistanas em 2022. Dez anos antes, o número era 12 vezes menor, girava em torno de 3,8 mil. Sempre acusado por ativistas dos direitos humanos de subestimar o problema, o Censo da Prefeitura apontou a existência de 31,8 mil desabrigados em 2021. No início dos anos 2000, não passavam de 7 mil, segundo um estudo da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, a Fipe.

A despeito da crise humanitária, intensificada durante a pandemia de ­Covid-19, o prefeito Ricardo Nunes, cada vez mais próximo do bolsonarismo, mobiliza a Guarda Civil Metropolitana para confiscar barracas nas calçadas, cria obstáculos à distribuição de alimentos e intensifica a repressão na Cracolândia, reeditando a política de Gilberto Kassab de impor “dor e sofrimento” aos usuários de drogas e desabrigados em geral. Não bastasse, o alcaide tem cortado recursos das organizações sociais que prestam serviços à Prefeitura, como denuncia Rodrigo Jalloul, sheik muçulmano que auxilia o padre Júlio nas atividades do Centro São Martinho.

Visão privilegiada. Ex-presidiário, Danilo de Oliveira Dantas busca permanecer longe das drogas e alerta: a truculência policial só aumenta a revolta dos dependentes químicos – Imagem: Renato Luiz Ferreira

“Nas últimas semanas, houve corte de recursos. Eles não avisaram nem justificaram o motivo. De repente, a gente soube que não iria mais receber 600 refeições por dia, e sim 400”, afirma o líder religioso. “Hoje, 200 pessoas foram embora daqui sem ter ficha para o almoço. Isso parte o coração. Além de instalar grades em praças públicas, a prefeitura chegou a usar um trator para cavar buracos em uma área na Penha, só para impedir algumas famílias de acampar por lá, como faziam. É uma administração opressora e aporofóbica.”

De forma cínica, Nunes defendeu a derrubada da liminar judicial que impedia o confisco de pertences de pessoas em situação de rua sob o argumento de que “rua não é endereço e barraca não é lar”. Ele alega estar ampliando as vagas em centros de acolhida, mas já começou a “despejar” os acampados antes de oferecer opções de moradia digna, que vão muito além dos obsoletos albergues segregados para homens e mulheres, e que acabam por separar famílias. “Faltam programas habitacionais e de locação social que retirem essas pessoas da tutela do Estado. Muitos se recusam a dormir nos abrigos porque o serviço é péssimo”, observa o padre Júlio.

Danilo de Oliveira Dantas está em situação de rua há cinco anos, desde que saiu da prisão, “com uma mão na frente e outra atrás”. Aos 33 anos, ganha a vida como coletor de materiais recicláveis. Dorme na rua, pois a vasta maioria dos albergues paulistanos não oferece um lugar seguro para guardar o carrinho. “Isso é tudo que eu tenho, é minha ferramenta de trabalho.” O preconceito com quem é egresso do sistema prisional é o maior obstáculo para conseguir um emprego fixo, acrescenta Dantas, que ainda sonha com um emprego de carteira assinada. Antes de ser preso por tráfico, ele trabalhava como vendedor de calçados em uma grande rede de lojas. “Fui encontrar uns amigos depois do trabalho, estava com uniforme, crachá e tudo, e mesmo assim a polícia não acreditou que a droga que estava comigo era para meu próprio consumo. Perdi tudo tentando provar minha inocência. Foi carro, moto… Só o apartamento ficou para a minha ex-mulher.”

Na rua, ele tem observado uma mudança no perfil dos desabrigados. “Depois da pandemia, começou a chegar muita família, às vezes até com criança de colo. Se para mim, que sou sozinho, está difícil, imagina para uma família? Deus me livre.” Para aguentar as agruras da vida na rua, Danilo começou a beber mais que o normal e voltou a usar drogas. “Já vi gente jogar álcool e atear fogo em morador de rua. Isso aconteceu perto de mim.” No ano passado, ele procurou ajuda em um Centro de Atenção Psicossocial e passou seis meses internado para tratar a dependência química. Não tem sido fácil se manter sóbrio, sobretudo com o foco da prefeitura e do governo do estado na repressão aos usuários. “Com violência, não vão resolver nada. Só piora a situação, aumenta a revolta.”

De olho no eleitorado bolsonarista, Nunes também intensificou as ações de repressão na Cracolândia

Desde maio de 2022, a Guarda Civil Metropolitana e as polícias Civil e Militar têm intensificado a repressão na Cracolândia, visando a dispersão dos usuários de drogas. Na prática, fardados e viciados fazem um jogo de gato e rato pelas ruas do Centro. Uma aglomeração é dispersada aqui, outra surge 100 ou 200 metros adiante. Há pouco mais de um mês começaram violentos arrastões em estabelecimentos comerciais do Centro, e quem acompanha a situação de perto garante que os usuários têm feito isso para chamar atenção da imprensa. “É uma forma de eles dizerem: ‘Olha, nós estamos aqui. Não adianta bater ou nos enxotar para outro canto’”, afirma Jalloul. A despeito do calamitoso cenário, a prefeitura argumenta que a “nova estratégia” permitiu a redução de 75% do número de pessoas nas duas principais concentrações de usuários da Cracolândia, além de ter dobrado o número de internações. De fato, os usuários agora estão pulverizados em grupos menores por diversos bairros do Centro, e ninguém sabe exatamente a efetividade do tratamento oferecido. Segundo especialistas, tão logo retorna à situação de rua, a vasta maioria retoma o consumo de drogas.

Na quinta-feira 4, agentes da Guarda Civil Metropolitana também tentaram impedir militantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, o MTST, de distribuir marmitas para pessoas em situação de rua na Praça da Sé – fato negado pela Secretaria Municipal de Segurança Pública, segundo a qual os agentes apenas acompanhavam uma inspeção da Vigilância Sanitária em estabelecimentos comerciais da região. Após o episódio, uma comitiva de deputados federais e vereadores paulistanos fez uma diligência pelo Centro da capital para avaliar os locais de acolhimento e saber para onde são levados os pertences retirados dos desabrigados. “Foi uma iniciativa da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal, e o que temos visto aqui é desumanidade. Impedir entrega de comida é o limite humanitário, isso nós não podemos aceitar”, resume o deputado Guilherme Boulos, do PSOL.

Um dos lugares por onde a diligência passou foi o Centro de Acolhimento Especial para Mulheres, no qual vivem 130 mulheres e oito crianças. A refugiada angolana Cecília Francisca Dyela fugiu de seu país com o marido e o filho André, de 9 anos, devido a um conflito familiar que colocou a vida deles em risco. Ao chegar em São Paulo passaram os primeiros dias na rua. Depois, conseguiram vagas no serviço de acolhimento, mas a família está separada: agora mãe e filho vivem em um lugar e o pai, em outro. Em Angola, ela trabalhava como faxineira em um hospital. No Brasil, está disposta a agarrar qualquer oportunidade que aparecer. A dificuldade com o idioma tem sido um empecilho na busca por trabalho, mas no Centro de Acolhimento tornou-se um trunfo. “Agora, ela nos ajuda na comunicação com outras refugiadas que chegam, por vezes não conseguimos entender os dialetos locais”, explica a assistente social Rosângela Alcântara.

Padrinho. Nunes quer o apoio do capitão para manter vivo o projeto de reeleição – Imagem: Redes sociais

Jacinta, que preferiu não revelar o sobrenome, também vive no abrigo com a filha de 6 anos. Trabalhava como auxiliar de limpeza e diarista em diversas casas de família. Com a pandemia, as ofertas de trabalho ficaram escassas e ela não teve mais condições de pagar aluguel. Depois do despejo, começou uma saga em busca de um novo lar, mas já se sente sem perspectivas de melhora depois de dois anos entre a rua e os centros de acolhimento. Oriunda do interior de Pernambuco, chegou jovem à capital paulista em busca de trabalho. “Eu não vim para São Paulo sonhando em fazer dinheiro, eu só queria uma oportunidade mesmo. Mas estou cansada de dar com a cara na porta”, lamenta, sem conseguir conter as lágrimas.

De olho da reeleição, o prefeito Ricardo Nunes tem usado os 33 bilhões de ­reais que a prefeitura tem em caixa para asfaltar a cidade e intensificar as ações de repressão na Cracolândia. No sábado 6, o alcaide almoçou com Jair Bolsonaro para pedir seu apoio em 2024, e recebeu uma resposta vaga. O PL do ex-presidente quer apostar em um candidato próprio para a capital paulista, e o nome mais cotado até agora é o do ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles. De acordo com uma recente sondagem da Paraná Pesquisas, os padrinhos serão decisivos na eleição paulistana. Com o apoio de Lula, Boulos chega a 39,2% das intenções de voto no primeiro turno. Como candidato de Bolsonaro, Salles ocupa o segundo lugar, com 20,4%. Nesse cenário, Nunes ficaria de fora do segundo turno, daí o desespero em tentar demonstrar serviço para o eleitorado bolsonarista.

“O prefeito parece estar preocupado somente com o asfalto, quando temos milhares de pessoas passando fome”, lamenta o padro Júlio Lancellotti. De fato, a cidade vive uma crise humanitária sem precedentes, segundo um relatório da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal. Somente entre 1º e 15 de ­dezembro de 2022, quando o estudo foi realizado, mais de 6 mil pacientes que procuraram atendimento nas Unidades Básicas de Saúde estavam famintos. “O fracasso das políticas do prefeito Nunes é evidente. Hoje, uma pessoa em situação de rua custa para a prefeitura, em média, entre 1,5 mil e 2 mil reais. Se esse recurso chegasse direto para as pessoas, tenho certeza de que iriam se virar muito melhor do que sob a tutela da prefeitura.” •

Publicado na edição n° 1259 de CartaCapital, em 17 de maio de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Dor e sofrimento’

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