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Dois mais dois

A peça final do procurador-geral Paulo Gonet demole os sofríveis argumentos que negam a tentativa de golpe

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Primeiro ato. Enquanto os advogados davam piruetas no STF, o ex-presidente preferiu ficar em casa durante a semana inicial do julgamento da tramoia – Imagem: Rosinei Coutinho/STF e Sergio Lima/AFP
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Epaminondas Gomes de Oliveira era um líder camponês no Maranhão que lutava por educação e saúde até ser preso, torturado e morto, em 1971, pela ditadura. Seu caso foi o primeiro a ser esclarecido pela Comissão Nacional da Verdade. A partir de papéis do Arquivo Nacional, o delegado da Polícia Federal Daniel Lerner, então na comissão, descobriu os restos mortais de Oliveira em um cemitério de Brasília. A família os recebeu e os enterrou em agosto de 2014. A certidão de óbito foi alterada para constar “tortura” como causa da morte. “O País vive um momento histórico, de um julgamento histórico contra nossa tradição golpista”, afirmou Lerner ao lançar o livro Epaminondas na noite de 3 de setembro, na capital brasileira. “Todos os golpes no Brasil tiveram participação das Forças Armadas.”

O golpe de Jair Bolsonaro contra a derrota nas urnas em 2022 só não vingou por falta de apoio suficiente no alto-comando da caserna, segundo o procurador-geral da República, Paulo Gonet, no primeiro dia do julgamento. Com aquela voz monocórdica, Gonet foi singelamente demolidor, ao comentar não ser “preciso esforço intelectual extraordinário” para reconhecer que, quando o presidente e o ministro da Defesa convocam a ­cúpula militar para debater um decreto que anularia a eleição, o “golpe já está em curso”. Golpe para o qual Bolsonaro e mais sete réus, cinco dos quais fardados, da mesma ação penal haviam preparado o terreno por mais de um ano com lorotas sobre trapaça eleitoral e fraude nas urnas eletrônicas. A insurreição de 8 de janeiro de 2023 em Brasília, a Festa da Selma, foi o “ápice” da trama, embora não fizesse parte do roteiro original, de acordo com o procurador-geral.

Na esperança de salvar os clientes, ou de ao menos minimizar as penas, alguns advogados reprovaram (oh, ironia…) a insurreição e elogiaram o Supremo Tribunal Federal do púlpito da Corte, na última manifestação antes do veredicto. Foi o que fizeram as defesas do almirante Almir Garnier, chefe da Marinha no governo passado, de Anderson Torres, ex-ministro da Justiça, e do general Walter Braga Netto, candidato a vice na chapa de Bolsonaro. “Vou prestar solidariedade a essa Corte pelos ataques que tem recebido”, disse José Luis Oliveira Lima, que trabalha para o general, enquanto olhava para o juiz Alexandre de Moraes, alvo da cruzada bolsonarista. Lima foi advogado do petista José Dirceu no “Mensalão” e comparou: aquele caso “teve cobertura frenética” da mídia, mas não provocou a mesma onda de ataques ao Supremo.

Os comparsas de Bolsonaro não hesitaram em jogá-lo aos leões

O julgamento de agora também tem acompanhamento midiático febril. Credenciaram-se para cobri-lo 501 jornalistas, inclusive estrangeiros. A sala de audiência tem 80 cadeiras para a imprensa, senta quem chegar antes. Para entrar, os repórteres precisam usar pulseiras coloridas de identificação e passar por dois detectores de metal. O Supremo cercou-se de cuidados. Não sem razão: foi depredado com fúria pelos bolsonaristas em 8 de janeiro de 2023, até mais que o Congresso e o Palácio do Planalto, e atacado por um homem-bomba em novembro do ano passado. No entorno da Corte, há grades para todo lado. Um drone e cães farejadores estão a serviço da polícia da Corte. O efetivo foi reforçado com homens de mais três tribunais sediados em Brasília.

O julgamento despertou interesse também da população em geral e de advogados e estudantes de Direito, em particular. O Supremo recebeu 3.357 pedidos de interessados em assistir “ao vivo”. Aceitou só 1,2 mil, por falta de espaço. Os contemplados não estarão no tribunal ao mesmo tempo, nem ficam na sala de audiências, mas em outro andar, e acompanham por um telão. Foram divididos em grupos de 150 por sessão. Já houve três sessões e estão programadas mais cinco a partir de 9 de setembro. Quando a próxima começar, será revelado o voto de Moraes, o relator, e a sentença na cabeça dos demais quatro integrantes da Primeira Turma: Cármen Lúcia, Cristiano Zanin, Flávio Dino e Luiz Fux.

Afronta. Com apoio crescente do “Centrão”, o bolsonarismo sonha em emplacar uma anistia ampla e geral – Imagem: Kayo Magalhães/Agência Câmara

Com uma caneta Bic azul, Fux foi quem mais fez anotações nos dois primeiros dias de julgamento. Nessas sessões, falaram Gonet, na condição de acusador, e os advogados dos réus, num total de dez horas e dez minutos. Por certas posições em outros casos do 8 de Janeiro, Fux é visto como a tábua de salvação dos réus. Ele e os colegas de Corte pouco se pronunciaram nos dois primeiros dias. Após o discurso de Paulo Garcia Cinta, advogado de Alexandre Ramagem, o ex-chefe da Agência Brasileira de Inteligência, Fux disse que o fato de ter sido monitorado pela “Abin paralela” não interfere em sua imparcialidade. Disse ainda ter trocado a carreira de promotor pela de juiz, pois prefere decidir a opinar, comentário feito após ter tido o currículo descrito por Demóstenes Torres, defensor de Almir Garnier.

Demóstenes gastou 20 minutos a bajular os juízes da Primeira Turma, depois falou bastante de si próprio e, quando faltavam 13 minutos para o fim da uma hora a que tinha direito, reclamou de tempo exíguo. Fux perguntou aos advogados do delator Mauro Cid se os vários depoimentos do cliente tinham sido para complementar informações. A defesa de Bolsonaro alega que o tenente-coronel mentiu e foi coagido pela Polícia Federal. Buscam, dessa maneira, anular a delação. Na época em que os acusados foram convertidos em réus, em maio, Fux havia dito que iria ao interrogatório de Cid no Supremo, o que realmente fez, para conferir a sinceridade do delator. ­Cezar ­Bittencourt, um dos advogados do ex-ajudante de ordens, definiu Fux como “amoroso, atraente”, ao discursar. Faz sentido a bajulação. O cliente, que acaba de pedir baixa do Exército, corre o risco de ir em cana, apesar da delação.

“Juiz inquisidor”, afirmou um dos advogados de Bolsonaro sobre Moraes

Dino foi o juiz que fez mais intervenções no julgamento. Quis entender a quem um advogado de Bolsonaro se referia como “ministro do Exército”, cargo inexistente. Quis saber o nome de um ex-juiz do STF (era Marco Aurélio Mello) que havia dito que a Corte fazia oposição a Bolsonaro, citação feita pela defesa do general Augusto Heleno. Perguntou aos advogados de Anderson Torres sobre a operação da Polícia Rodoviária Federal no Nordeste no dia da eleição. Agredido verbalmente por uma enfermeira do Paraná no voo do Maranhão a Brasília na véspera do julgamento, o bem-humorado magistrado garantiu dois momentos cômicos. “Não aceito menos que isso”, afirmou, após Bitencourt chamar Fux de “amoroso, atraente”. E interrompeu ­Andrew Fernandes Farias, defensor do general ­Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, quando ouviu que este falaria da sogra. Dino espantou-se. “Às vezes, as palavras são como um punhal… Machucam, ­doem”, costuma dizer dona Zilda, segundo o genro. Moraes perdeu a paciência pouco depois. Bufou ostensivamente, a olhar os colegas juízes, quando Farias declarou que havia meditado sobre o caso diante da pintura O Semeador, de Van Gogh.

O celular de Farias tocou enquanto o causídico estava na tribuna. A sala do julgamento tem dois telões na lateral da mesa dos juízes com informações sobre o que é proibido e recomendado. Não se pode falar ao telefone e este deve ficar no modo silencioso, do contrário a polícia está autorizada a botar o infrator para fora. Quando Farias terminou a exposição, Cármen Lúcia perguntou-lhe: quando disse que o cliente tinha tentado demover o então presidente Bolsonaro, era demover do quê? Resposta: “Demover de qualquer medida de exceção”. Ou seja, o réu admite a trama do golpe. Não foi o único a jogar Bolsonaro aos leões. O advogado Mateus Mayer Milanez, de Augusto Heleno, disse que o general havia se afastado do então presidente após o capitão filiar-se ao PL. Heleno era contra abraçar o dito “Centrão” e dali em diante teria perdido influência. Curioso: não apitaria mais nada, mas havia uma papelada a colocá-lo como chefe da junta do governo do golpe. Milanez foi o único a confrontar Moraes. “Juiz inquisidor”, tascou.

Aliados. Lira visitou Bolsonaro antes do julgamento. O governo Trump ameaça ampliar as medidas contra o Brasil após a provável condenação do ex-presidente – Imagem: Zeca Ribeiro/Agência Câmara e Daniel Torok/Casa Branca Oficial

Entre os réus, somente o general Nogueira de Oliveira foi ao STF ver o julgamento, e só no primeiro dia. Havia jogado pingue-pongue com o neto antes de encarar a hora fatal. Alguns deputados governistas compareceram, casos de Lindbergh Farias e Rogério Correia, do PT, Jandira Feghali e Orlando Silva, do PCdoB, e Fernanda Melchiona e Henrique Vieira, do PSOL. Lindbergh é um dos responsáveis pela decisão de Moraes de aumentar a vigilância sobre Bolsonaro na prisão domiciliar. A residência do capitão tem polícia na porta e nos jardins internos, a fim de evitar risco de fuga. Quem chega de carro para visitá-lo tem o porta-malas revistado. Aconteceu com o deputado Arthur Lira, ex-presidente da Câmara, e a senadora Damares Alves, na véspera do início do julgamento. Lira é da turma pró-anistia e foi em seu gabinete que o pacto entre a extrema-direita e setores do “Centrão” foi selado para encerrar o motim no Congresso, após Bolsonaro ser trancado pelo Supremo em casa.

Na porta da casa do capitão em Brasília e na frente do condomínio de luxo onde ele tem casa no Rio de Janeiro, houve nos últimos dias manifestações a favor da condenação. Para evitar o pior, o ex-presidente gastou uma nota. Contratou três advogados por 11,8 milhões de reais. Dois deles, Celso Vilardi e Paulo Amador Bueno, revezaram-se da tribuna durante 59 minutos. A dupla atacou a delação e a credibilidade de Cid, disse que era impossível conhecer a íntegra do processo antes do julgamento, devido à enorme quantidade de informações e documentos obtidos pela Polícia Federal. Mais: que o cliente não atentou contra o governo eleito nem contra a democracia, do contrário teria trocado os chefes das Forças Armadas antes de deixar o poder, por exemplo. Apesar de pedirem a absolvição do réu, os advogados não se iludem. Acham que uma pena de 30 anos não seria razoável.

No Dia da Independência, bolsonaristas e anti-bolsonaristas prometem ir às ruas, a fim de tentar de influenciar o veredicto. O presidente Lula irá também, para o tradicional desfile militar. Uma das mensagens do governo será a de “Brasil soberano”. Resta saber quais serão os próximos passos de Donald Trump contra essa “soberania”. •

Publicado na edição n° 1378 de CartaCapital, em 10 de setembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Dois mais dois’

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