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Do armário para as urnas

O número de candidatos da comunidade LGBT dá um salto e passa de 3 mil em todo o País

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Do armário para as urnas
"Avanço. Dez anos atrás, apenas três concorrentes se assumiram. A representatividade aumentou, mas continua aquém – Imagem: iStockphoto "
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Embora correspondam a 9% da população, lésbicas, gays, bissexuais e transexuais representam menos de 1% das candidaturas registradas no Tribunal Superior Eleitoral nas eleições municipais deste ano. O número pode parecer pequeno diante da totalidade dos concorrentes, mas simboliza um feito histórico para a comunidade, em um país que figura entre os mais perigosos para as minorias. Dos 463,3 mil candidatos, 3.051 declaram-se LGBTQIA+, dentre os quais 2.957 buscam uma vaga de vereador, 41 disputam prefeituras e 53 são candidatos a vice.

Segundo dados da plataforma ­VoteLGBT, 35,8% dos postulantes vivem no Sudeste e 31% no Nordeste. Há representantes em 1,4 mil cidades, filiados a 28 partidos diferentes. Legendas de esquerda concentram a maioria dos candidatos, 51%. Pela primeira vez, o TSE incluiu nas regras eleitorais a possibilidade de autodeclaração de identidade de gênero. “Há dez anos tínhamos o registro de apenas três candidaturas. De lá para cá, a cultura mudou e, nas últimas eleições, em 2022, tivemos 327 registros autodeclaratórios LGBT no ­País. Ter mais de 3 mil nesta eleição é algo revelador e corajoso, pois estamos num governo de esquerda, mas amanhã pode estar um ­Pablo ­Marçal da vida ou a família Bolsonaro de novo, uma ameaça para a nossa população”, afirma o ativista Gui ­Mohallem, diretor-executivo da plataforma.

No ato do registro no TSE, acrescenta Mohallem, o candidato poderia ter optado pelo anonimato, mas preferiu sair do armário. “Há dez anos, quem era gay ou lésbica não podia contar para ninguém, imagina quantos quadros da geração mais velha não se assumiam porque isso poderia representar um suicídio político. E agora vem essa geração e muda o caldo cultural em tão pouco tempo, para que isso se torne um valor político. É uma explosão de candidaturas orgulhosamente LGBT. Uma em cada quatro cidades deste país tem uma candidatura LGBT. É muita gente. Isso era impensável, a gente não esperava. Definitivamente, estamos ocupando a política.”

Por conta própria. Salabert reclama de ter sido abandonada pela esquerda – Imagem: Redes Sociais/Duda Salabert

A despeito do predomínio de candidaturas à esquerda, partidos como PSD, PP e Republicanos também lançaram quase mil nomes ligados à comunidade. O PL de Jair Bolsonaro, que não esconde sua homofobia, tem 77 candidatos LGBT. “Quando a gente fala de uma eleição no município, tem de entender a realidade do território, onde muitas vezes os partidos de esquerda ou não existem ou são inviáveis. A eleição se dá entre as legendas de direita. E aí, para disputar a política, vai ter de ser por essas vias. Muitos desses candidatos, uma vez eleitos, adotam uma postura progressista. Ou seja, eles não têm a ver com alinhamento político, mas com as circunstâncias de elegibilidade”, justifica Mohallem.

Uma das candidatas LGBTQIA+ mais celebradas é Duda Salabert, deputada federal pelo PDT na disputa pela prefeitura de Belo Horizonte. Mulher trans, Salabert faz duras críticas ao campo progressista da capital mineira, por hesitar em apoiá-la e associa a resistência à transfobia. A pedetista disputa a prefeitura em uma chapa puro-sangue e corre por fora. A disposição contrasta com a dificuldade em manter de pé a campanha e aumentar a competitividade. Nas mais recentes pesquisas, S­alabert oscila de 9%, no Datafolha, a 14%, na AtlasIntel, bem atrás dos favoritos, todos homens brancos e reacionários. “A gente, desde o início, tem buscado a unificação do campo progressista. O PT, o PSOL e outros partidos, mesmo sabendo que não tinham chance de vitória, resolveram lançar candidaturas próprias. Isso não se repete em outros locais do Brasil. Onde há nomes da base do governo Lula com mais chance de vitória, as legendas de esquerda apoiam essas candidaturas. Só em Belo Horizonte isso não aconteceu. Candidaturas inviáveis eleitoralmente têm mais partidos ao seu redor do que a nossa”, lamenta. De acordo com a deputada, há dois anos as pesquisas a colocam em segundo ou terceiro lugar. “Nossa candidatura, além do peso eleitoral, tem uma importância política considerável, pois descortina e escancara os problemas na sociedade, sobretudo na política.” O candidato do PT, Rogério Correia, que disputa o voto progressista com a deputada, aparece no Datafolha com 6% das intenções de voto e, na AtlasIntel, com 10%. O petista lidera uma aliança do PCdoB, PV, PSOL e Rede.

A violência política e a discriminação dos próprios partidos são queixas recorrentes registradas na plataforma ­VoteLGBT. Segundo Mohallem, uma das formas mais comuns de interditar uma candidatura LGBTQIA+ é limitar o acesso a recursos financeiros. Apesar de algumas legendas como PT e PSOL, nas suas resoluções internas, estabelecerem cotas, na prática a regra não é cumprida. “O custo do voto de uma candidatura LGBT é o mais barato, e, mesmo assim, a gente arrasa”, dispara o ativista. Embora represente 1% das candidaturas, diz, a soma dos votos dos candidatos LGBTQIA+ chegou a 5% nas últimas eleições. “Há estrangulamento de financiamento e sabotagem de candidaturas, apesar de a gente ser a principal promessa da esquerda na atualidade.”

Os candidatos LGBT ainda enfrentam preconceito nos próprios partidos

Banny Briolly, mulher trans vereadora de Niterói pelo PSOL, deixou de se eleger deputada estadual em 2022 por 301 votos. Briolly recebeu do partido cerca de 100 mil reais, enquanto o repasse para outro candidato, eleito, passou de 500 mil reais. “O partido me deu um fundo eleitoral menor do que para os outros candidatos que também eram vereadores como eu. Eu perdi porque o partido fez uma escolha de tirar a minha eleição. Dar cinco vezes mais para um homem hétero, cis, branco é tirar a eleição de uma mulher ­transexual. Agora mesmo enfrento uma campanha à reeleição com dificuldades gigantescas no que se refere ao fundo eleitoral, sem ser prioridade”, diz, embora reconheça que o problema não é especificidade do PSOL. “Todos os partidos agem dessa forma, não entenderam a crucialidade e a emergência da agenda política brasileira.”

A presidente do PSOL, Paula Coradi, nega qualquer tipo de preconceito ou retaliação e ressalta como um dos quadros mais importante da agremiação a deputada federal trans Érika Hilton, eleita a melhor parlamentar em 2024. “O PSOL entende a importância das pautas ­LGBTQIA+ e incentiva candidaturas do segmento, inclusive com maior aporte financeiro na distribuição dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha.”

Transfobia? Linda Brasil foi preterida na escolha do PSOL para a disputa à prefeitura de Aracaju – Imagem: Redes Sociais/Linda Brasil

Em Aracaju, Linda Brasil, mulher trans deputada estadual pelo PSOL, também teve sua candidatura rifada pelo partido, motivada, segundo alega, por transfobia. Assim como Salabert em Belo Horizonte, Brasil foi a vereadora mais votada em 2020 e a sétima para a Assembleia Legislativa em 2022 – foi a campeã de votos na capital sergipana. “Desde o ano passado, quando meu nome aparecia nas pesquisas como o único em condições de fazer frente ao bolsonarismo, alguns dentro do partido, principalmente quem tem a maioria na direção municipal, começaram a boicotar, com argumentos pífios, do tipo ‘não basta ser só uma mulher trans’, me resumindo a uma figura”, critica. “O fato de ser uma mulher trans, independente, com uma história política, que não é apadrinhada por ninguém, isso acaba influenciando. Com certeza, isso foi o que pesou.”

A candidata do PSOL em Aracaju é a advogada Niully Campos, que disputou o governo estadual em 2022. Campos oscila nas pesquisas entre 1% e 2%. Mais uma vez, Coradi nega preconceito por parte do partido e diz que a decisão foi definida pelo diretório municipal e respeitada pela direção nacional. “O tema foi pacificado e Linda Brasil está engajada na campanha de Niully.” •

Publicado na edição n° 1330 de CartaCapital, em 02 de outubro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Do armário para as urnas’

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