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Dito provisório, novo governo persegue opositores na Bolívia

O governo provisório persegue opositores e reprime as manifestações ao estilo das velhas ditaduras

Transição? Añez, autoproclamada presidente, refugia-se nos braços dos militares. A polícia recebeu carta branca para conter os protestos. (Foto: AIZAR RALDES / AFP)
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Sua excelência, o fato, assim respeitosamente chamado por Ulysses Guimarães, tratou em poucas horas de colocar nos eixos o debate a respeito dos acontecimentos na Bolívia. O argumento de levante popular, comparável às revoltas chilenas e equatorianas, ou a ideia de um contragolpe em resposta a uma suposta fraude eleitoral não resistiram às primeiras medidas da autoproclamada presidente Jeanine Añez, em uma sessão furtiva e sem quorum no Congresso.

Amparada pelo comando das Forças Armadas e policiais, que impôs a renúncia a Evo Morales, e protegida por uma Bíblia de dimensões ituanas que fez questão de instalar no gabinete no Palácio Murillo, Añez tem agido não como a mediadora disposta a conduzir o país na complexa transição, mas como uma déspota oportunista a serviço de uma minoria.

Além de espantar com sua fé e seu Evangelho gigantesco os demônios indígenas que governaram a nação por 14 anos, a cristã fervorosa decidiu enfrentar os “inimigos internos” em uma escalada autoritária típica de ditaduras. Em sete dias, o dito governo provisório empenhou-se em desfazer mais de uma década de políticas do Movimento ao Socialismo. 

Um de seus primeiros decretos deu carta branca aos militares na repressão aos protestos organizados por partidários de Morales. O resultado até o momento foram 30 mortes e centenas de feridos e detidos. Em contrapartida ao apoio fardado, Añez liberou 5 milhões de dólares para o Exército reparar os danos materiais causados pelas manifestações.

Anunciou ainda a ruptura diplomática com a Venezuela, a saída da Unasul, arena de resolução de conflitos do subcontinente criada em 2004 e considerada um instrumento de intervenção bolivariana pelo reacionarismo regional, e a expulsão dos médicos cubanos – nem Bolsonaro foi tão eficiente. Ainda assim, em entrevista à emissora britânica BBC, negou o caráter arbitrário de sua chegada ao poder: “Os golpes de Estado ocorrem em outros tipos de situação. O que está acontecendo na Bolívia é uma reivindicação dos cidadãos”.

Uma força-tarefa do Ministério Público quer prender partidários de Evo Morales acusados de subversão e sedição

No caso boliviano, os cidadãos com direito a reivindicar são aqueles do lado de Añez. Os demais são recebidos a bombas de gás lacrimogêneo, cassetetes, socos e balas, como se vê nas imagens das manifestações de apoiadores de Morales, em especial na região de Cochabamba, maior reduto do MAS. Na terça-feira 19, o desbloqueio de estradas em El Alto, cidade indígena e pobre localizada nas montanhas acima da capital La Paz, deixou 6 mortos e 30 feridos, segundo a defensoria boliviana. As vítimas foram atingidas por tiros durante um piquete nas cercanias de uma usina de combustível.

Enquanto massacra a população nas ruas, o governo em tese provisório empreende um expurgo das forças políticas. O atual ministro do Interior, Arturo Murillo, criou uma força-tarefa no Ministério Público para prender senadores do MAS acusados pelo regime de subversão e sedição. “Que comecem a correr, vamos apanhá-los”, declarou. Murillo fez questão de nomear o principal alvo da perseguição, o ministro da Presidência, espécie de chefe da Casa Civil, de Morales: “Vamos caçar Juan Ramón Quintana. Ele é um animal que se alimenta do sangue do povo”.

Em paralelo, desenrola-se uma tentativa de apurar às pressas denúncias de corrupção que permitam cassar o registro do partido, caminho para impedir a legenda de disputar as novas eleições presidenciais, se de fato acontecerem. A perseguição oficial é justificada por supostas ameaças à vida da presidente autoproclamada – Añez recusa-se a viajar pelo país e segue tocaiada no Palácio Murillo – e pelos bloqueios de rodovias por manifestantes insatisfeitos com a renúncia de Morales.

Os protestos têm causado problemas de abastecimento na Bolívia, particularmente na capital. Há escassez de alimentos nos supermercados e de combustíveis nos postos. Añez e seus aliados temem a repetição da estratégia chamada de “cerco de Tupac Katari”, em referência ao levante indígena de 1781. Movimento semelhante em 2003, durante o governo de Gonzalo Sánchez de Lozada, desaguou no “Massacre de Outubro”, com mais de 70 mortes. A revolta popular levaria à renúncia de Sánchez de Lozada, instalaria uma crise política de longa duração e abriria caminho para a chegada de Morales ao poder três anos depois.

A repressão violenta e as medidas relâmpago tentam implodir qualquer articulação política do partido do ex-presidente. Um dia depois de Añez ter assumido o governo, parlamentares do MAS, em uma sessão sem a participação dos opositores, elegeram Sergio Choque presidente da Câmara dos Deputados.

Maioria no Congresso, a legenda de sustentação da antiga administração não reconhece a legitimidade do governo interino e denuncia a repressão policial. “Diga ao mundo que os direitos fundamentais, o direito à liberdade de expressão, à vida e à educação estão sendo violados por este golpe”, discursou Choque. 

Añez impôs, no entanto, um prazo aos congressistas. Se até a sexta-feira 22 o Parlamento não estabelecer as regras para uma nova eleição, o Executivo criará as normas por decreto. “Há preocupação, pois não temos uma lei eleitoral”, afirmou Jerjes Justiniano, ministro da Presidência. “Depende do Legislativo, que não consegue funcionar. Cada dia que passa é um a menos para o prazo.”

Aceno. Morales diz-se pronto a desistir de uma nova candidatura em troca de voltar à Bolívia e concluir o mandato

Do México, onde está asilado, Morales respondeu ao ministro Murillo: “Em vez de pacificação, ordenam difamação e repressão contra irmãos do campo que denunciam o golpe de Estado”.

Em entrevista ao Wall Street Journal, o ex-presidente voltou a demonstrar a sua disposição de abrir mão da candidatura a um quarto mandato se puder concluir o atual mandato. Sugeriu ainda um acordo com a oposição para a nomeação de uma autoridade eleitoral que monitore o processo de votação.

A ONU denuncia o “uso desproporcional da força” na repressão aos manifestantes

Os conflitos na Bolívia explodiram após opositores e observadores da Organização dos Estados Americanos, a quem Morales acusa de participação no golpe, apontarem fraudes na apuração que registrou a vitória do então presidente no primeiro turno. O ex-presidente nega a fraude e pede a criação de uma “comissão da verdade” formada por integrantes do Vaticano, da ONU e do Carter Center, grupo pró-democracia fundado pelo ex-presidente dos EUA Jimmy Carter.

“A demanda clara do povo mobilizado é que a ditadura deve sair”, afirmou ao jornal americano. “Isso significa que o melhor seria eu terminar o mandato e em troca eu não seria candidato na próxima disputa eleitoral… Se for uma questão de paz, para que não se percam vidas, sem problemas, eu renuncio à candidatura.”

Morales não fala sozinho. Michelle Bachelet, alta-comissária de Direitos Humanos da ONU, alertou para o “uso desnecessário e desproporcional da força pela polícia” e a possibilidade de a situação “sair do controle”. Em outras palavras, que o impasse descambe para uma guerra civil.

Uma missão das Nações Unidas acompanha in loco os desdobramentos da crise política. Em um comunicado, a comissão expressou “sua enérgica condenação ao uso excessivo da força para reprimir as recentes manifestações” e recomendou ao “Estado tomar as medidas necessárias para evitar a impunidade e garantir o direito às reuniões pacíficas e a adotar medidas urgentes para preservar a integridade e a vida dos habitantes”. 

Preocupados, juristas de vários países pediram a Añez que permita o asilo no exterior de integrantes do governo Morales refugiados na embaixada mexicana em La Paz. Um dos signatários, o advogado Pedro Serrano, colunista de CartaCapital e professor de Direito da PUC de São Paulo, explica na página ao lado o conceito de “autoritarismo líquido” e como se aplica à Bolívia. “Houve uma mudança na natureza das intervenções autoritárias do século XX para o XXI”, escreve.

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