Política

Disputa mesquinha entre partidos progressistas enfraquece a resistência

A tentativa de formar frentes esbarra na falta de um consenso mínimo sobre a estratégia a ser seguida – e milhões seguem desorientados

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Construir uma frente democrática ampla para deter o avanço do autoritarismo ou uma frente popular para resistir ao desmonte do Estado e à destruição da rede de proteção social? Desde a derrota nas eleições do ano passado, que permitiram a ascensão de Jair Bolsonaro ao poder, os partidos do chamado campo progressista mostram-se incapazes de chegar a um consenso mínimo sobre a estratégia a seguir. Na verdade, parecem mais preocupados com a forma da tal frente, existente apenas no plano das ideias, do que com o seu conteúdo. O resultado não poderia ser mais desastroso para o grupo.

A despeito das derrotas do governo em temas como a liberação da posse de armas por civis e a extinção dos conselhos federais, o presidente não enfrenta muitos obstáculos para impor o receituário neoliberal de seu “Posto Ipiranga”, o ministro Paulo Guedes. Sem capacidade de mobilizar as ruas e em flagrante minoria no Congresso, a oposição viu-se de mãos atadas para impedir, entre outros, o avanço da reforma da Previdência, aprovada com larga vantagem na Câmara dos Deputados. Não bastasse, os ressentimentos do período eleitoral persistem, e parecem inviabilizar qualquer acordo entre os partidos do campo.

Presidenciável do PDT em 2018, Ciro Gomes deixou claro que não pretende mover uma palha pela formação de uma “frente de esquerda”. Sente-se traído pelo PT, e não perde uma oportunidade de expor as divergências em público. “Agora ninguém mais vai enganar ninguém, porque o que eu tinha para dar de engolir, de ter que fazer silêncio em nome da unidade, eles acabaram de liquidar”, afirmou, em recente entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo. “Essa burocracia do PT e a estratégia que essa burocracia está fazendo em nome da direção imperial de Lula é certeza de derrota do campo progressista no Brasil agora e pelas próximas três ou quatro eleições”, emendou, em aparente esforço de desvincular-se do grupo político.

O golpe ainda não foi assimilado

Mesmo preso, Lula mantém a liderança inconteste do partido. Na verdade, parece ser o único capaz de manter a união dos petistas, mas o cárcere limita bastante o seu poder de atuação. Vez por outra, as divergências internas afloram, como ocorreu após uma entrevista concedida por Rui Costa à revista Veja. O governador da Bahia criticou o apoio do PT ao governo de Nicolás Maduro na Venezuela e deu a entender que toparia disputar a Presidência da República em 2022. Foram dois outros pontos, no entanto, que parecem ter despertado a ira da direção do partido.

O primeiro não é exatamente uma novidade. Ao olhar para o retrovisor, Costa reconheceu que o ideal era o PT “ter apoiado Ciro lá atrás”. É a mesma posição que ele, o senador Jaques Wagner e o governador do Ceará, Camilo Santana, defenderam abertamente no ano passado, antes de Fernando Haddad herdar a candidatura presidencial petista após a prisão sem provas de Lula. O outro foi a constatação de que o partido não deveria “condicionar qualquer diálogo com as oposições para formar uma frente” à defesa da libertação de Lula, embora enfatize que a legenda “não deve nem pode abrir mão dessa bandeira”.

Rui Costa tentou eleger Haddad, mas preferia Ciro Gomes. Agora, ninguém se entende

Em áspera nota, o PT reafirmou que a bandeira Lula Livre é “central na defesa da democracia, da soberania e dos direitos no Brasil”, além de defender a escolha de Haddad para liderar a candidatura petista em 2018. Segundo a Executiva Nacional, o apoio a Ciro “não se justificava porque nunca foi intenção dele constituir uma alternativa no campo da centro-esquerda, hoje menos ainda, dado que ele escancara opiniões grosseiras e desrespeitosas sobre Lula, o PT e nossas lideranças”. Haddad, segundo a peculiar visão dos dirigentes, “teve grande desempenho político e eleitoral, chegou ao segundo turno e só não venceu a eleição pelo uso criminoso de notícias falsas pela campanha de Bolsonaro”.

Nem parece que o ex-capitão venceu as eleições com uma vantagem superior a 10 milhões de votos, ou que este era o segundo fracasso eleitoral consecutivo de Haddad. Ao disputar a reeleição para a prefeitura de São Paulo em 2016, ele perdeu para o neófito João Doria ainda no primeiro turno. À época, atribuiu-se a derrota ao antipetismo inflamado nas manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff, o que faz sentido ao analisar o conjunto da obra. Naquele ano, o PT perdeu 60% das prefeituras sob seu comando.

Atribuir, porém, a vitória de Bolsonaro exclusivamente à disseminação de notícias falsas é um insulto à lógica, afirma o cientista político Aldo Fornazieri, professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. “Não estou dizendo que as fake news não contribuíram, mas não é verdade que foram determinantes para o resultado das eleições. Além do antipetismo cultivado desde o impeachment de Dilma, Bolsonaro apoiou-se em um discurso de valorização da família, de Deus e da pátria, valores que ganharam força com a emergência do movimento evangélico nas periferias das grandes cidades, um fenômeno de que a esquerda nem se deu conta porque não estava lá, burocratizou-se demais.”

Fornazieri lamenta que, desde a derrota em outubro de 2018, os partidos do campo progressista ainda não promoveram “um amplo debate público sobre os erros que levaram à ascensão da extrema-direita ao poder”. Agora, paga-se um preço elevado. “Por não ter feito a autocrítica no tempo certo, vendeu-se o equivocado diagnóstico de que o atual governo é fascista. É um erro crasso, que prejudica a oposição. Em primeiro lugar, o povo brasileiro não faz ideia do que é fascismo. Segundo, porque esta é uma luta abstrata, em um terreno mais favorável a Bolsonaro”, diz o cientista político. “Enquanto a reforma da Previdência avança, o salário mínimo é atacado e a regressão social aumenta, a esquerda permanece distraída com as firulas ideológicas da família presidencial”.

Conciliador, Flávio Dino corre por fora

Em resposta ao PT, o governador da Bahia publicou um comunicado nas redes sociais. “Nunca abri e nunca abrirei mão de denunciar a conspiração que retirou Dilma e montou esta farsa contra Lula. No entanto, não posso impor isso a ninguém, assim como não podem os governos progressistas”, afirmou. Costa rechaçou ainda qualquer insinuação de má vontade ou boicote ao presidenciável petista em 2018. “Estamos entre aqueles que mais se empenharam na candidatura de Haddad. Ele sabe disso. O resultado das eleições na Bahia não deixa dúvida, ganhamos em 413 das 417 cidades da Bahia.”

Padrinho político de Costa, o senador e ex-governador Jaques Wagner estranhou a reação da Executiva Nacional do PT. “Por que a nota, se o partido não foi atacado? E uma nota daquele tamanho…”, comentou a CartaCapital. Wagner reconhece que foi um dos incentivadores da aliança com Ciro, mas diz que agora a situação mudou: “Defendi lá atrás, mas depois de tudo o que o Ciro falou do ex-presidente e do PT depois, não dá. Ele diz que o Lula não é um preso político, e é”.

“Todos os partidos têm problemas. O do PT é o hegemonismo exacerbado”, critica Coutinho

Com uma aprovação popular superior a 80%, segundo uma sondagem divulgada no fim de agosto pela Paraná Pesquisas, Costa busca nacionalizar a sua imagem, razão pela qual deve intensificar a aparição na mídia. A pretensão de disputar a Presidência é legítima, mas a direção do PT parece mais inclinada em renovar as apostas na candidatura de Haddad, visto por muitos petistas e até mesmo por aliados de outros partidos como uma liderança acanhada, com pouca capacidade de articulação e distante do debate político atual.

Com perfil muito distinto, o governador do Maranhão, Flávio Dino, é quem tem roubado a cena. Símbolo de um Nordeste insubmisso e desprezado por Bolsonaro – sentimento recíproco, a julgar pelos índices de rejeição ao presidente na região –, o ex-magistrado destaca-se não apenas por melhorar os indicadores sociais de um dos estados mais pobres do País, mas também por não temer o confronto com o chefe do governo federal.

Wagner estranha a reação do PT contra Rui Costa. Coutinho prega unidade

Com perfil conciliador, Dino mantém boas relações com os demais governadores nordestinos e com outras lideranças do campo progressista, a exemplo do próprio Haddad e de Guilherme Boulos, que representou o PSOL na corrida presidencial de 2018. Apesar dos atributos pessoais, ele sabe que expressiva parcela da sociedade não saberia sequer identificar o Maranhão no mapa do País. Da mesma forma, entende o gigantesco desafio de disputar a Presidência da República na atual conjuntura pelo PCdoB, um partido que, além de pequeno, carrega a palavra “comunista” no nome.

Não por acaso, Dino flerta com o PSB. Sabe que precisa de uma legenda com mais estrutura e dinheiro. Em 2018, o seu PCdoB não conseguiu superar a cláusula de barreira. Precisou fundir-se ao PPL para não ficar sem recursos do fundo eleitoral e sem tempo na tevê aberta. O presidente do PSB, Carlos Siqueira, recebeu o governador maranhense algumas vezes em Brasília nos últimos meses.

Bolsonaro não enfrentou dificuldade para aprovar a reforma da Previdência

Presidente da Fundação João Mangabeira, ligada ao PSB, e ex-governador da Paraíba, Ricardo Coutinho confirma a aproximação de Dino com lideranças do PSB, mas desconversa sobre uma eventual transferência. “Sinceramente, não sei qual será o desfecho.” Para Coutinho, antecipar o debate sobre 2022 pode causar mais prejuízos do que benefícios ao campo progressista. “Todo mundo sabe o perigo que estamos vivendo. O tecido democrático está se esfacelando. Vemos a volta da censura, o desmonte das políticas públicas, o recrudescimento da violência estatal. A prisão de Lula é o exemplo mais claro”, afirma a CartaCapital. “Nesse momento, as lideranças dos diferentes partidos deveriam ter a maturidade necessária para colocar os projetos pessoais de lado e priorizar a construção de uma frente.”

Na avaliação de Coutinho, a construção de uma aliança de esquerda para 2022 dependerá muito do que ocorrer nas eleições municipais do próximo ano. E o PT é peça-chave para viabilizar esse acordo, emenda o ex-governador. “Todos os partidos têm os seus problemas. O do PT é o hegemonismo exacerbado, a incapacidade de entender que em algumas situações outras forças políticas podem ter candidaturas mais promissoras”, afirma. “E 2020 pode ser uma excelente oportunidade para dobrar esse cabo das tormentas, superar a falta de unidade.”

“A esquerda segue distraída com as firulas ideológicas da família presidencial”, alerta Fornazieri

A opinião é compartilhada por Aldo Fornazieri. “Exercer hegemonia é diferente de ser hegemonista. Mesmo sendo o maior partido deste campo, o PT precisa fazer concessões a legendas e grupos menores, ainda mais depois das sucessivas derrotas que sofreu desde a reeleição de Dilma”, diz o cientista político. “Outro grave problema é a ausência de líderes fortes e legítimos o bastante para exercer uma liderança natural sobre o campo progressista. Lula desempenhava bem esse papel, mas está preso. Por sectarismo, vaidade, descontrole ou arrogância, as novas lideranças estão longe de ocupar esse espaço”. •

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