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Direita, volver!

A militarização das escolas avança em todo o País, mesmo em estados governados por partidos de esquerda

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Tá dominado. A Assembleia Legislativa autorizou o governador Ratinho Júnior (PSD) a replicar o modelo em todas as unidades de ensino, inclusive as de tempo integral – Imagem: Geraldo Bubniak/GOVPR e Colégio Militar de Foz do Iguaçu
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Na segunda-feira 27, a Assembleia Legislativa do Paraná aprovou, em regime de urgência, um Projeto de Lei que permite ao governador Ratinho Júnior (PSD) ampliar a militarização do ensino na educação integral. O estado lidera o ranking nacional de escolas cívico-militares, com 312 unidades e 190 mil alunos matriculados. Nesse modelo, adotado nos colégios paranaenses desde 2020, na esteira de um programa federal lançado por Jair Bolsonaro e extinto no atual governo, João, um estudante que pediu para ter o nome protegido, foi “convidado” a trocar de escola. Negro e morador da periferia de Curitiba, ele recebia constantes ameaças para cortar seu cabelo afro, conforme exigia a unidade. Outro aluno, José, igualmente receoso de retaliações, não suportou as frequentes humilhações aplicadas pelos policiais militares responsáveis pela área disciplinar e acabou deixando a instituição.

Os problemas emergiram quando José começou a trabalhar para ajudar a família. O garoto saía da escola ao meio-dia e às 13 horas já estava no serviço. Só chegava em casa por volta da meia-noite. Mal tinha tempo de descansar, pois às 6 horas precisava estar de pé para não se atrasar para as aulas. Cansado, um dia cochilou em sala e a professora o encaminhou ao setor disciplinar. Sem ouvir sua versão, um policial acusou o aluno do sexto ano do ensino fundamental de ser “maconheiro” pelos olhos vermelhos. “Fui chamada à escola e perguntaram como eu deixava meu filho passar a noite fora, chamando-o de marginal. Respondi que ele trabalhava até tarde e não podia ser tratado como bandido”, lembra a mãe de José, que pediu para ter o nome preservado, por medo de retaliação à filha, aluna da mesma escola.

A partir de então, o militar passou a perseguir o adolescente. “O policial soltava indiretas e falava coisas para ele. Meu filho chegava em casa e dizia: ‘Mãe, não aguento mais, vou sair da escola, uma hora esse cara vai fazer alguma coisa comigo’. Uma vez ele respondeu ao policial e eu fui chamada novamente. Quando viram que meu filho já tinha 18 anos, ainda amea­çaram: ‘Se eu soubesse, não tinha convocado a senhora, teria chamado direto uma viatura’”, lembra a mãe. Ela também relata que “depois que a escola foi militarizada, virou uma bagunça, com mais brigas.”

Com 312 colégios cívico-militares, o Paraná lidera o ranking nacional

Embora o governo Ratinho Jr. utilize como bandeira eleitoral a narrativa de que as escolas do estado têm o melhor Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) do País, nenhuma delas figura entre as 50 melhores notas do Enem 2024. Além disso, das sete unidades paranaenses com melhor desempenho no Ideb, apenas duas seguem o modelo cívico-militar.

Contrária à presença de militares nas escolas, Walquíria Mazeto, presidente do Sindicato dos Professores do Paraná, afirma que a disciplina é parte do trabalho pedagógico dos docentes. “A educação precisa de um amplo debate para garantir a aprendizagem efetiva e condições adequadas para os professores. Não é preciso ter um policial para abrir e fechar portões, cantar o Hino Nacional e receber salários superiores aos de outros profissionais da educação, inclusive professores em início de carreira”, diz a sindicalista, lembrando que um policial da reserva lotado em escola militarizada do Paraná recebe, em média, 5,5 mil reais. Procurada, a Secretaria Estadual de Educação não respondeu aos questionamentos da reportagem.

A militarização da rede pública de ensino cresce de forma acelerada Brasil afora. Até 2015, o País contava com 56 escolas estaduais e nenhuma municipal nesse modelo. Hoje, são 875 unidades sob responsabilidade dos estados, 426 dos municípios, 25 geridas por grupos privados, além de 94 vinculadas às Forças Armadas ou às secretarias estaduais de Segurança Pública. Desde o governo Bolsonaro essa forma de ensino vem se expandindo e se tornou uma bandeira ideológica. Em ano pré-eleitoral, muitos governadores investem na expansão da rede, visando as urnas, como Ratinho Júnior, cotado para disputar a Presidência pelo bloco bolsonarista. Além das 312 escolas estaduais, 12 unidades municipais também foram militarizadas.

Vitrine. O petista Jerônimo Rodrigues também investe em colégios cívico-militares – Imagem: Mateus Pereira/GOVBA

Com pretensões de disputar a Presidência em 2026, os governadores de Goiás­, Ronaldo Caiado (União Brasil), e de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), também apostam na militarização das escolas. Até mesmo em estados comandados por líderes do campo progressista, como Bahia e Maranhão, a expansão da rede é uma realidade. Jerônimo Rodrigues (PT) e Carlos Brandão (PSB), governadores baiano e maranhense, respectivamente, participam com frequência de eventos de inauguração dessas unidades. Ambos devem disputar a reeleição no próximo ano. Na Bahia, já são 16 escolas estaduais e 117 municipais militarizadas. No Maranhão, dez estaduais e 92 municipais foram transformadas em cívico-militares.

A justificativa para a expansão das escolas militarizadas é a mesma em todo o País: mais disciplina e melhor desempenho dos alunos, algo contestado por especialistas. “Essas unidades, ao se tornarem militarizadas, deixam de oferecer matrículas de EJA (Educação de Jovens e Adultos), fecham turmas à noite e reduzem vagas no ensino médio. Isso eleva automaticamente a nota no Ideb, porque os alunos com menor rendimento geralmente são aqueles que conciliam estudo e trabalho”, explica a geógrafa Rafaela­ Miyake, que pesquisou o modelo paranaense em seu mestrado. “Observa-se ainda mudança no perfil socioeconômico dos estudantes. Alunos mais pobres estão sendo excluídos. Dizer que o desempenho melhora por causa da militarização é um equívoco”, acrescenta, ressaltando que, no Paraná, as escolas cívico-militares já apresentavam bom desempenho no Ideb antes da mudança de modelo.

Fernando Cássio, professor da Faculdade­ de Educação da USP, reconhece que algumas escolas militarizadas apresentam desempenho superior às convencionais, mas atribui isso não à mudança de modelo, e sim aos maiores investimentos e à atenção do Poder Público. “Quando analisamos onde estão localizadas essas escolas, percebemos que não ficam nas periferias. Pelo contrário, estão em áreas centrais, atendendo principalmente alunos brancos e de classe média”, ressalta. “Essas unidades têm infraestrutura melhor, realizam processos seletivos socioeconômicos, são reformadas, amplas e voltadas a uma população mais urbana.” De fato, a presença de bibliotecas, laboratórios de ciências, quadras esportivas cobertas, computadores e acesso à internet, entre outros serviços, é muito superior nas escolas cívico-militares, revela um levantamento do pesquisador.

Governada pelo PT, a Bahia possui 16 escolas estaduais e 117 municipais militarizadas

“No Distrito Federal, esse tipo de escola é a joia do governador Ibaneis Rocha, outro expoente da extrema-direita. Há pouco tempo, uma briga no pátio, algo comum no cotidiano escolar, levou os policiais a usar spray de pimenta para separá-la”, denuncia, sob anonimato, uma professora de uma escola cívico-militar de Brasília. Ela acrescenta que vários alunos foram transferidos após tirar notas baixas em avaliações. “Isso é negar ao estudante o direito de escolher uma escola próxima de casa”, diz, citando ainda casos de perseguição a quem usa cabelo afro, tatuagens, piercings ou brincos (no caso dos meninos).

A narrativa de que os militares ficam encarregados pelo setor disciplinar, enquanto os educadores mantêm o controle da parte pedagógica, também é contestada por especialistas. “Tudo em uma escola é pedagógico. O que acontece no pátio também é pedagógico”, dispara Cássio.

Miriam Alves, da Rede Nacional de Pesquisa sobre Militarização da Educação, ressalta que o modelo aprofunda as desigualdades nas redes de ensino. “Essas mudanças alteram o perfil do alunado. A exigência de uniforme, por exemplo, encarece a escola e restringe o acesso. Como as aulas estão concentradas no perío­do diurno, os estudantes que precisam trabalhar também são excluídos. Ficam os menos pobres, mais brancos, aqueles que enfrentam menos dificuldades e têm melhores condições de vida e culturais.”

Catarina de Almeida Santos professora da UnB e coordenadora da Rede Pesquisa sobre Militarização e Educação no Brasil, ressalta que a segregação não é apenas socioeconômica. “Quando crianças e adolescentes são obrigados a repetir ritos militares, os atípicos e os neurodivergentes acabam excluídos, pois não se encaixam nesse padrão. Ao afirmar que o cabelo e a roupa do aluno são inadequados, você está violando grande parte dos estudantes”, explica. Uma professora baiana, que pediu para não ser identificada, relata que, na escola onde trabalha, em Salvador, os militares circulam armados e há aulas de instrução militar, nas quais policiais ensinam ritos e até canções ao estilo Bope, inclusive com xingamentos. “É um equívoco tratar a rotina escolar como a de um batalhão da Polícia Militar. Estudantes com comportamentos considerados transgressores recebem notificação e são encaminhados à Unidade Militar, que conduzirá o processo de averiguação”, afirma.

Mais de 40% das escolas cívico-militares contam com policiais e quase 15% com bombeiros, a maioria da reserva, recebendo gratificação paga com recursos que deveriam ser destinados à educação. “A presença militar na gestão escolar não é apenas uma questão administrativa, é uma violação do caráter civil e público da escola, com efeitos pedagógicos graves, pois restringe a autonomia docente, impõe censura de conteúdos e padroniza práticas educativas baseadas na obediência e na vigilância”, alerta Gibran Freitas, diretor do Sindicato dos Professores de Mato Grosso, que possui 130 escolas militarizadas na rede estadual. Ele acrescenta que chegou a ser censurado na escola onde dava aula por ter tatuagem e usar barba.

Catarina de Almeida Santos, lembra que a presença de militares não está prevista na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Ela cobra do governo federal, especialmente do Ministério da Educação, medidas concretas para reverter esse processo. “Esses profissionais não têm habilidade para lidar com crianças e adolescentes, exigindo que se comportem como soldados”, afirma. “A escola é, por natureza, um espaço da diversidade. Militarismo e democracia não cabem na mesma frase, sobretudo no Brasil de hoje. Esse modelo tenta apagar as diferentes faces da diversidade – racial, social, ideológica e de pensamento.” •

Publicado na edição n° 1386 de CartaCapital, em 05 de novembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Direita, volver!’

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