Política

Dilma: A direita não tem um nome alternativo a Bolsonaro

Em conversa com Mino Carta, ex-presidenta fala do passado e do futuro da esquerda no Brasil

Dilma: Nós optamos por fazer a gestão em lugar de capturar as mentes e os corações Dilma: Nós optamos por fazer a gestão em lugar de capturar as mentes e os corações
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Sempre enxerguei em Dilma Rousseff uma amiga afetuosa e ela aprova a definição. Quando ainda candidata de Lula à Presidência da República, ela jantou na minha casa e não deixou de ser uma noite muito agradável. Transitava pelo noticiário à época o caso de Cesare Battisti, o ladrãozinho de arrabalde e pluriassassino que acabou recebendo asilo com a chancela de Lula presidente horas antes da chegada de Dilma, finalmente eleita, ao Planalto. Quando do jantar, lá pelas tantas, decidi levantar a questão Battisti.

“Trata-se de uma clara prova da ignorância brasileira – observei –, como é possível acreditar na versão de uma autora francesa de romances policiais em lugar das certezas de um Estado Democrático de Direito?” Até professores universitários deram seu palpite inexorável a favor de Battisti e do seu asilo em terra brasileira, merecido por quem fora herói na luta pelas liberdades democráticas na Itália dos anos 70. Confiavam em Fred Vargas, entre muitos, o senador Eduardo Suplicy, a polícia francesa, provavelmente o próprio presidente François Mitterrand, grande hipócrita do século passado, superado somente pelo italiano Giulio Andreotti, sem contar o ministro da Justiça brasileiro Tarso Genro e Luiz Eduardo Greenhalgh, defensor petista de Battisti.

Naquela ocasião, Dilma levantou os olhos ao céu e disse: “Algum dia eu lhe conto”. Como se sabe, coube a ela, horas antes da posse no Planalto, assinar o asilo do falso herói peninsular. Recordo agora aquele nosso encontro e Dilma diz que ainda chegará o dia da revelação, embora deixe escapar que Tarso Genro foi um daqueles que se empenharam para manter Battisti entre nós. Há, no entanto, frases pronunciadas durante a nossa conversa muito indicativas, têm o valor de uma pista: “A questão foi resolvida à revelia do presidente Lula”. E acrescenta: “O caso demonstra até onde é levado o tal de esquerdismo, é de uma inconsequência absoluta, e nem sempre quem se diz de esquerda à esquerda milita”.

Dilma Rousseff é personagem orientada claramente pelo senso comum no melhor sentido da expressão. Por exemplo, tem grande apreço por Ulysses Guimarães e Mário Covas, “não eram golpistas tampouco neoliberais”. Se atalho que tenho boas lembranças de ambos, e os lembro com muito respeito, ela exclama: “Deve mesmo”. É o contrário do que merece Bolsonaro, sem deixar de reconhecer que ao assumir foi muito claro quando assegurou: “Vim para destruir”. O que desencadeia a recordação de uma frase de Gêngis Kan: “Você pode conquistar a cavalo, mas para governar será preciso descer dele. Pois é, o presidente do Brasil de fato Bolsonaro Khan jamais aceitará descer do animal galopante.

Se falo, a partir da minha convicção, que a casa-grande só pode ser afastada pelo confronto do seu papel tão daninho para o destino do Brasil, a ex-presidenta retruca que nada se admite fazer fora do jogo democrático. Ela admite ter faltado ao PT a capacidade de alcançar o coração e a mente do povo, para levá-lo à compreensão dos vexames a que é constantemente submetido. Insiste, entretanto, em uma solução democrática. Em contrapartida, teme as consequências da crise inevitável pós-pandemia. Crise econômica de proporções jamais navegadas, com índices de desemprego apavorantes, a ponto de precipitarem a perspectiva de um terremoto social. Revolta popular com entreveros de extrema violência nas ruas.

Pergunto-me com alguma candura se não seria esta a oportunidade para deixar o sangue correr pelas calçadas.

Os tópicos principais de uma longa conversa com Mino Carta.

O começo do golpe

As manifestações de 2013, quando, de repente, uma manifestação que começa pedindo que não se reajustem as tarifas de ônibus, pleito eminentemente municipal, se transforma, por obra da Globo também, num movimento pela adoção do padrão Fifa”. Também de forma surpreendente surgem os dez pontos da pauta anticorrupção do Dallagnol. (…) Ali não estava excluída a possibilidade de um golpe. E isso vai num crescendo: a campanha eleitoral inteira de 2014 é um processo extremamente forte nessa direção. Eu me lembro que, ainda no final da campanha do primeiro turno, aparece aquela capa da Veja com dois perfis, metade do meu, metade do perfil do Lula: “Eles sabiam”, dizia a chamada. Não se dizia o que nós sabíamos, mas há de se convir que “eles sabiam” é algo extremamente terrorista. (…) Mas na sequência do “eles sabiam” você tem a eleição. Há algo inusitado que não acontecia no Brasil nos últimos anos, que é o pedido de recontagem dos votos. Nós percebemos que um segmento do PSDB pretendia um ganho fácil do processo eleitoral. E também um pedido para não haver diplomação. (…) Isso no início de dezembro, e eu tinha sido eleita em novembro, e o Eduardo Cunha é líder do PMDB. Ele anuncia que ele será candidato à presidência da Câmara e, em fevereiro, na reabertura da sessão legislativa, nós perdemos, ele foi eleito.

O PT no poder

Os nossos governos, o meu e o do Lula, onde nós erramos substantivamente, temos vários erros, mas quero falar do erro central, eu acho que é justamente o seguinte: nós optamos por fazer a gestão em lugar de capturar as mentes e os corações. (…). Fizemos ainda, durante meu primeiro mandato, uma pesquisa para averiguar qual foi o ganho principal do cidadão em função das políticas do governo petista, cada qual dava uma resposta: melhores salários e ou o filho na universidade. A pergunta seguinte era: você deve isso a quem? Ele respondia que, primeiro, a Deus, a ela ou ele próprio, depois à família, depois ao amigo e, por último, ao governo. Na Argentina, Cristina Kirchner fez uma pesquisa parecida e o fundamental é que não tinha primeiro Deus, que vinha mais atrás, mas tudo isso mostra um processo em que houve uma discrepância entre a realização e o tratamento político dessa realização. (…) Nós optamos por uma tecnologia que está na origem do problema, sem deixar as nossas impressões digitais. O mesmo critério para a política de cotas, o Mais Médicos, Minha Casa Minha Vida. (…) Mas refiro-me ao tratamento político da questão, concentrada na luta pela igualdade, e é consolidar a consciência de que ainda tem muito a conquistar. (…) Outra incógnita diz respeito ao tempo à disposição: em 13, 14 anos, você consegue dar este salto? Creio ser no escuro, haver uma estrutura anterior com maior enraizamento, fruto das lutas sociais. (…) E há outro engano, ah sim, tem isso também, a ideia de que a conciliação é possível a partir da convicção de que quando se ganha economicamente também se ganha politicamente.

O presidencialismo de coalizão

Comigo, todas as contradições do presidencialismo de coalizão emergiram. Em que aspecto? Nas características mais básicas do País, por exemplo, por que sempre o parlamentar, aliás, o voto parlamentar é mais conservador e o voto presidencialista está um pouquinho à frente? Seja para o bem ou para o mal, estou pensando no Fernando Henrique Cardoso, ou seja, ele está um pouquinho à frente dos conservadores do Congresso, e não tem a sofisticação neoliberal. De certa forma, o Fernando Henrique e a base de sustentação do PSDB são mais hard do que o Congresso que o sustentava, tanto o PFL quanto as demais forças. Mas, o que eu quero dizer é que você também tem um problema sério, que é a forma como foi feita a transição no Brasil, da ditadura para a democracia. Ou seja, o fato de dizerem até hoje que uma das responsabilidades pela adesão dos militares ao Bolsonaro foi a Comissão da Verdade é assustadoramente ingênua.

Casa-grande e senzala

A ideia de que a questão social no Brasil é racial é também uma visão da elite. A visão excludente da elite, que explica como e por que eles são capazes de repetir sempre a mesma história. (…) Agora, na pandemia, eles vão engolir o Bolsonaro pelo tempo que for necessário, caso ele mantenha a agenda neoliberal que lhes interessa. Mas ela é muito atrasada, sabe por quê? Eu estava vendo outro dia no Financial Times, você não vai falar que o Financial Times é um antro de bolivarianismo, uma análise do responsável pela pauta econômica internacional e nacional, que é Martin Wolf, que passou seus últimos dois ou três meses, defendendo que não é possível sair desta pandemia, como se deu em 2008, com austeridade. Ou se tem uma política de gastos e, mais, aí é que entra a pauta interessante, porque eles já se reciclaram, tem de tributar ganhos de capital, grandes fortunas, heranças, o setor digital e o setor financeiro. Por quê? Porque não tem mágica. Aqui eles ainda estão tentando, o Paulo Guedes está querendo privatizar três empresas estatais. No mínimo, ele quer uma política de austeridade na contracorrente de tudo que o mundo está fazendo. Mario Draghi, ex-presidente do Banco Central Europeu, diz: “Nós vamos viver um momento em que todos os países sairão endividados. Não temos de ter preocupação com este fato, porque vamos enfrentar uma deflação”. Então veja que, no Brasil, a coisa mais típica é escutar a GloboNews e eles falando em investidor estrangeiro.

O Brasil e Tio Sam

Houve quem afirmava que Lula e eu tínhamos a responsabilidade de não conter o FBI. Bom, nós não sabíamos que o FBI andava solto por aí. Quando soube que estava sendo gravada pela NSA, a Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos, tomei todas as providências cabíveis. Era vice-presidente o senhor Joe Biden, atual candidato do Partido Democrata a presidente. Fizemos a primeira reclamação não presidencial, porque a ele que cabia responder, e depois eu estive com o presidente Barack Obama, e tinha programada uma visita minha aos Estados Unidos. Disse ao presidente estadunidense que uma presidente vigiada não poderia ir visitar aqueles que a vigiavam. (…) Eu quero que me digam o que já foi grampeado, que me digam que não vão grampear. O que foi grampeado não conseguiam dizer. E que não iam grampear mais foi aquela discussão ultraprotocolar que, no final, eles não tinham como voltar atrás. (…) Também Angela Merkel foi grampeada na ocasião e ambas recorremos à ONU. (…) E a Lava Jato? Na Lava Jato eles burlam todo o controle e vão fazer a relação indevida com o Departamento de Justiça americano. Porque é público e notório que existem várias formas pelas quais os Estados Unidos agem no resto do mundo para impor seu poder. Uma delas é a guerra. Depois têm as bases militares. Terceiro, tem a utilização de leis domésticas norte-americanas impostas para terceiros países. Exemplo são os casos relativos aos bloqueios que eles fazem sistematicamente. Quando eles querem obrigar países e empresas a aceitar o não fornecimento de equipamento, e num caso específico dessa forma, que é a forma Lava Jato, acho que ela faz parte daquele processo que tem a ver não só com os nossos golpes, os chamados golpes latino-americanos, mas tem a ver também com a Primavera Árabe. Aliás, um aiatolá disse uma coisa interessante: de fato há uma Primavera Árabe que se transformará num verão muçulmano, e foi isso que se viu, um verão muçulmano bem quente.

O precariado

O Brasil entrou na idade do precariado de forma abrupta e violenta, via essa reforma, que torna servos os trabalhadores sem direitos e, como diz Ricardo Antunes, que transforma o trabalho num mundo de captura que não é igual à escravidão, mas é o domínio amplo do tempo de trabalho. O cara trabalha 12 horas para ganhar 900 reais. Eles começaram a desmontar o Estado de Bem-Estar Social mínimo que existia no Brasil depois da Constituição de 88, acabaram com mínimo de investimento em saúde e educação, e começaram a destruir a rede de proteção social, porque é isso que está na origem da guerra ao PT.

Chega Bolsonaro

Eles confiam que se tornou impossível ganhar em 2018 porque não tem candidato, e apostam que Bolsonaroso seria moderado assim que subisse ao poder, mas o Bolsonaro não tem chip da moderação, ele não é moderável, isso nós vamos ver daqui para a frente. Naquele momento, sofremos a maior derrota, na medida em que Bolsonaro assume em 2019, Lula é impedido e nós sofremos uma derrota política ali, mas não tirou a nossa capacidade de luta. É óbvio que não vai levar dois meses, é óbvio que não vai ser no curto prazo, mas os instrumentos nós os mantivemos, e não acredito que não teremos problemas seríssimos de legitimidade política pós-Covid. A Covid-19 é um genocídio por vários aspectos, é genocídio na saúde, é desestruturação integral da cadeia produtiva no mundo todo, mas aqui é muito mais, é perda violenta de empregos. (…) O maior problema que o senhor Bolsonaro não mediu é o colapso social. Ou ele mantém os 600 reais ou nós vamos ter uma revolta social de grandes proporções. Não há como sair da Covid-19 sem uma política de gastos claro na área da saúde, sem uma política de gastos na economia e no social. (…) Outra coisa estarrecedora é eles dizerem que não pode, por conta da Covid-19, tirar o Bolsonaro. Ora, quem impede o País de resistir? De fato, unificar o País e gerir essa crise tem nome: o Bolsonaro e a política dele. As forças que compõem e sustentam o governo dele produzem isso. (…) Eles não têm um nome alternativo a Bolsonaro, não acho que o Mourão seria.

As “corporações”

Elas surgiram no bojo da Constituinte de 88. Nós do PT votamos na forma pela qual o Ministério Público indicou como seria gerido. Nós defendemos a autonomia e podemos ter errado porque não estava na lei escolher numa lista tríplice indicada pelo próprio Ministério Público, o que redundava em um jogo corporativo muito forte. (…) A consagração do engavetador-geral da República. (…) Hoje eu acredito que talvez fosse melhor a gente manter um processo de pesos e contrapesos e não deixar que a Procuradoria acumulasse esse poder de escolher a si mesmo, mas você também não resolve isso. (…) Nenhum governo é capaz de transformar uma corporação em 13 anos, tem de haver um processo de formação dessa corporação, tem de ter todo um teste dela. O mesmo raciocínio vale em relação à Polícia Federal, é a mesma coisa.

Aparece Moro

Quando Sérgio Moro diz que teve uma luta de ringue contra o presidente Lula, ele mente, o presidente Lula estava preso e tinha de ser ter tratado de forma neutra pelo juiz. Ao perseguir Lula, Sérgio Moro destruiu a base fundamental da Justiça, que é a neutralidade, com o aval do Supremo Tribunal Federal, porque o STF tem autoridade para controlar o juiz de primeira instância, com uma mão nas costas. Podia enquadrar. Mas repare no que aconteceu comigo quando convidei o presidente Lula para integrar o meu governo, ele tem dúvidas, passa um tempo tendo dúvidas, porque ele não sabia se ia porque o lance tinha seus riscos e dona Marisa já estava doente. Eu ligo para o Lula. Há uma dúvida: eu estava sendo grampeada? Parece que não, pelo menos é a avaliação dos técnicos da PF. De fato, gravaram Lula além da hora e Moro pegou e divulgou. Isso era um escândalo. O máximo que ele levou foi uma leve admoestação, mas tem mais. Os dados sobre Eduardo Cunha foram entregues para ele assinar no Supremo em dezembro. Desde dezembro eles sabiam quem era Eduardo Cunha. (…) Mas eu acho haver um órgão que vai ter de ser chamado às falas, chama-se Ministério Público. Tem de explicar o que aconteceu.

Joaquim Levy

Joaquim Levy tem seus méritos e uma grande inadequação: tem uma visão extremamente austericida do processo econômico. Leve-se em conta que se trata de um quadro do Estado, não é um banqueiro, até trabalhou em bancos, mas é um quadro que conheci como secretário do Tesouro no governo Lula. (…) É um quadro formado no Brasil, tem uma visão neoliberal e não estava à altura daquele momento que a gente vivia. O partido não tem nada com a nomeação dele, a responsabilidade é minha integralmente.

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