Política

‘Destruiu os nossos sonhos’. O relato de agricultores presos injustamente por Moro

Não havia provas contra os réus. Foram absolvidos, mas o estrago estava feito. Os 13 inocentes ficaram detidos entre 48 e 60 dias na sede da ­Superintendência da PF, em Curitiba

Imagem: Gustavo Marinho/MST
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O agricultor Gelson Luiz de Paula ainda se recorda daquela manhã de 23 de setembro de 2013, quando foi acordado pela mulher com o aviso que viaturas da Polícia Federal cercaram sua casa para prendê-lo, por determinação do então juiz federal Sergio Moro. Os policiais traziam um mandado de busca e apreensão de um carro no valor de 80 mil reais e de um iate. Gelson, um ex-produtor de fumo no município paranaense de Irati, havia trocado o tabaco pelo plantio de feijão, milho e hortaliças em um terreno de 1 alqueire e meio, dividido com o pai. Com ele, outros 12 pequenos agricultores foram presos e acusados de desvios na gestão de recursos e distribuição de produtos do Programa de Aquisição de Alimentos, do governo federal.

As prisões foram revogadas em novembro do mesmo ano, por decisão da ministra Maria Thereza de Assis Moura, do Superior Tribunal de Justiça. Segundo a magistrada, as imputações não ostentavam violência ou graves ameaças. Poderiam ser aplicadas medidas cautelares menos incisivas, uma vez que o encarceramento seria uma medida extrema e desnecessária naquele processo. Moro cumpriu a determinação do STJ. Em dezembro de 2016, a juíza substituta da 13ª Vara Federal de Curitiba, ­Gabriela ­Hardt, a mesma que substituiu Moro na Lava Jato, julgou “improcedente a denúncia apresentada pelo Ministério Público Federal”. Não havia provas contra os réus. Nenhuma prova, absolutamente nada. Foram absolvidos, mas o estrago estava feito. Os 13 inocentes ficaram detidos entre 48 e 60 dias na sede da ­Superintendência da PF, em Curitiba.

A Agrofantasma investigou supostos desvios no PAA. Todos os acusados foram absolvidos por falta de provas

“A Operação Agrofantasma destruiu os nossos sonhos, desmobilizou os agricultores e a própria associação. Uma parte das famílias foi embora para viver em outras cidades”, relata o agricultor. O prejuízo não foi só financeiro. “Houve um enorme desgaste emocional para provarmos a nossa inocência. Continuamos convivendo até hoje com as consequências.”

Passados mais de cinco anos, três integrantes do grupo, Gelson Luiz de Paula, Nelson José Macarroni e Roberto Carlos dos Santos, impetraram uma ação na Justiça Federal pleiteando indenização pelos danos morais e materiais causados pela Operação Agrofantasma. Na peça, seus advogados elencam numerosos erros judiciários cometidos ao longo do processo, como prisão ilegal, abuso de autoridade e má-fé processual.

Para investigar supostos crimes de “colarinho-branco” cometidos pelos agricultores, Moro determinou a busca por matrículas de imóveis, documentos de propriedade de veículos e embarcações, bem como valores em espécie superiores a 30 mil reais ou 30 mil dólares. O despacho era claramente abusivo e fantasioso. Os acusados tinham renda mensal familiar de até dois salários mínimos. O rendimento por família no Programa de Aquisição de Alimentos era de 8 mil reais anuais, não fazia qualquer sentido atribuir a prática de crimes de colarinho-branco sem qualquer evidência concreta de que eles escondiam alguma fortuna.

Para Jaqueline Pereira de Andrade, integrante da banca de advogados que defende os agricultores, a fundamentação do processo carece do mínimo de lógica. “Não seria possível atribuir a agricultores familiares a prática de crimes de colarinho-branco ou ordenar um mandado de busca e apreensão com esse perfil, se houvesse o mínimo de boa-fé e comprometimento com a apuração dos fatos”, avalia. As posturas “arbitrárias, abusivas e ilegais” adotadas pela PF e pelo ex-juiz, acrescenta, geraram danos extensivos aos familiares, como a perda de credibilidade no comércio local e episódios de bullying escolar com os filhos. Mesmo após a libertação, os agricultores passaram a conviver com transtornos psiquiátricos, como ansiedade, depressão, insônia e baixa autoestima. Eles também perderam a colheita de suas safras no período em que estiveram presos. Para agravar, a Associação Agroecológica São Francisco de Assis, que geria toda a estrutura de produção e venda dos hortigranjeiros, perdeu 124 integrantes e deixou de participar de editais da agricultura familiar.

Gelson de Paula cobra reparação do Estado – Imagem: Isa Lagane

Moro fundamentou o pedido de prisão preventiva com base no “histórico dos investigados” e no “risco à sociedade”. “Trata-se de um gravíssimo erro judicial”, diz a advogada. “São razões vazias, sem provas, sem exemplos fáticos.” Os agricultores nem sequer possuíam antecedentes criminais. “Ao contrário, são pessoas que sempre dedicaram suas vidas à organização comunitária e à produção de alimentos saudáveis. Distribuíam e comercializavam seus produtos para sustentar as próprias famílias.”

As “provas” utilizadas na ação penal não demonstraram a existência de desvios de recursos ou irregularidades na gestão do PAA, como Moro afirmou em seus despachos, especialmente no que se refere à falsificação de documentos, como notas fiscais, relatórios de entrega e termos de recebimento e aceitabilidade. Na prática, o que eventualmente ocorria era a substituição de um produto por outro, uma adequação necessária em razão de fatores como o clima e o período de colheita. Ou seja, às vezes estava prevista a entrega de 20 quilos de alface, mas a produção tinha sido de apenas 15 quilos. Neste caso, os agricultores completavam, por exemplo, com 5 quilos de rúcula. Este foi o crime que eles cometeram.

Não ficaram comprovadas quaisquer irregularidades nas documentações, tampouco identificou-se fraude. Segundo Moro, a papelada estava em ordem devido à “intimidação de parceiros”. Uma acusação completamente despropositada, pois os relatórios e as notas fiscais eram exigências formais do programa. “A assinatura de relatório e nota fiscais não se configura como ‘intimidação de parceiros’ como apontou o então juiz na ação, nem como razão para os agricultores serem mantidos presos durante a investigação e instrução do processo”, emenda Andrade.

Na avaliação de João Pedro Stedile, da coordenação nacional do MST, o processo da Operação Agrofantasma, instruído por Moro, é uma vergonha ao Poder Judiciário, ao Ministério Público Federal e à Polícia Federal. “Tudo isso faz parte do ‘ovo da serpente’ gestada pela República de Curitiba, que precisava encontrar casos de corrupção a qualquer preço, para mais tarde mostrar sua face mais cruel, como a morte do reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, Luiz Carlos Cancellier, a prisão de Lula e tantos outros políticos perseguidos e depois inocentados.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1200 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE MARÇO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Mais um legado do inquisidor”

 

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