Política
Desigualdade omitida
O presidente pretende liderar o grupo dos países emergentes, esquece, porém, o fato deprimente


No discurso pronunciado na Assembleia-Geral das Nações Unidas, a expressão mais usada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi “desigualdade social”. Referia-se a uma pretensa desigualdade a reinar na patética bola de argila que habitamos, girando elipticamente em torno de uma estrela menor chamada Sol. Aquele público selecionadíssimo aplaudiu com transparente entusiasmo. Talvez entendesse que a atual composição do plenário tivesse de ser alterada, de sorte a permitir o ingresso de novos integrantes no grupo, no momento reduzido, habilitado a dar provimento ou a negá-lo às decisões da Assembleia.
Em matéria de desigualdade social, o país governado pelo palestrante é campeão, conforme estatísticas há tempo divulgadas. Nestes dias, aliás, outra surgiu, obra da União dos Bancos Suíços. Informou que 1% dos mais ricos brasileiros controla 48% da riqueza do País. De alguma forma, esta é a chancela de uma autoridade indiscutível à existência de casa-grande e senzala em uma terra que ainda não se livrou da herança medieval. A realidade nua e crua todos a conhecemos. Andar pelas calçadas do Brasil coloca em risco o nosso passo, diante da possibilidade premente de tropeçar em quem ali dorme ou repousa eventualmente sobre um colchão de jornais amarrotados. Seria um luxo, bem como a sombra de uma árvore.
Sabemos também dos efeitos das “cracolândias” sobre o crescimento da criminalidade. De longa data são as estatísticas relativas ao monstruoso abismo que no Brasil separa ricos e pobres. E uma delas nos colocava em segundo lugar no mundo, depois do país do Apartheid, em situação pior do que muitas nações africanas e asiáticas. Só faltava mesmo a passagem de Jair Bolsonaro, energúmeno demente, para piorar ainda mais uma situação já bastante comprometida. Diga-se que o presidente Lula, sempre que entrou na liça eleitoral, teve o apoio declarado de CartaCapital, sem contar os comportamentos da revista para popularizar o líder operário no comando do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema.
Justas críticas à hegemonia do Conselho de Segurança – Imagem: Ed Jones/AFP
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Do discurso pronunciado na ONU transparece o propósito de Lula de tornar o Brasil o representante dos países emergentes, aspiração legítima e condizente com o prestígio do próprio presidente e com as potencialidades da nação. O discurso do mandatário brasileiro é próprio da tradição das Nações Unidas e válidas e oportunas são as críticas à composição que Lula faz do Conselho de Segurança, nascido dos resultados da Segunda Guerra Mundial. Mudaram no ínterim as condições da política internacional, de sorte a justificar a reformulação da organização planetária.
É nesta instância, pelo menos, que a desigualdade apontada por Lula continua em vigor, como resultado de uma decisão hoje totalmente anacrônica. •
Publicado na edição n° 1278 de CartaCapital, em 27 de setembro de 2023.
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