Política
Descruze os braços
Sem o engajamento da sociedade civil na luta por justiça fiscal, o Congresso Nacional seguirá inerte


Nas últimas semanas, a expressão “Congresso inimigo do povo” tornou-se um dos principais motes de mobilização nas redes sociais e nas ruas. A faísca inicial foi a derrubada, pelo Legislativo, do decreto presidencial que aumentava a alíquota do Imposto sobre Operações Financeiras para compras e remessas internacionais. A medida atingiria principalmente famílias de alta renda, que viajam e fazem intercâmbios no exterior, além de investidores que transferem recursos para paraísos fiscais. Paralelamente, os parlamentares aprovaram um projeto para aumentar o número de deputados federais, dos atuais 513 para 531. Coube ao presidente Lula vetar essa mudança, que custaria cerca de 95 milhões de reais por ano aos cofres públicos, considerando o salário de 41,6 mil reais, os penduricalhos e as verbas de gabinete de cada um dos novos deputados.
O mesmo Congresso que prega austeridade fiscal e rigor no controle dos gastos públicos é também aquele que sustenta, como nunca antes na história, um bilionário sistema de emendas parlamentares, que consumiram mais de 44,8 bilhões de reais do orçamento em 2024, segundo dados do Portal da Transparência. Diante dessa contradição, o governo federal encontrou uma forma assertiva de reposicionar a narrativa: expôs, de maneira sistematizada, que os verdadeiros beneficiários das recentes decisões dos deputados e senadores têm sido os super-ricos. Mais uma vez, a elite brasileira busca esquivar-se de qualquer iniciativa de justiça tributária, perpetuando um sistema regressivo, no qual os 10% mais pobres comprometem 32% da sua renda com tributos, enquanto o 0,1% mais rico contribui com apenas 10%, segundo recente estudo da Oxfam.
Esse movimento coincidiu com o avanço do Projeto de Lei 1087/2025, que isenta do Imposto de Renda quem ganha até 5 mil reais por mês e reduz a carga tributária para rendimentos de até 7,3 mil. Relatado por Arthur Lira e aprovado em uma comissão especial da Câmara, o “PL do Imposto Zero”, como a proposta ficou conhecida, representa um marco histórico: mais de 20 milhões de brasileiros seriam beneficiados com alívio fiscal. A despeito do impacto positivo, o projeto tem recebido pouca atenção de parlamentares e da mídia, o que levanta uma série de dúvidas. Por que o Congresso não abraça o PL 1087 como uma de suas maiores entregas à sociedade? Por que não há mobilização dos partidos para aprovar rapidamente a proposta no plenário? Medo dos super-ricos? Pressão dos setores financeiros e empresariais? Ou uma silenciosa tentativa de desidratar o projeto?
IR zerado para quem ganha até 5 mil reais pode aliviar o bolso de 20 milhões de brasileiros
Esse silêncio ocorre em um momento em que o Congresso já enfrenta forte desgaste, devido às suas posições impopulares. Além dos episódios relacionados ao IOF e à ampliação do número de deputados, uma nova frente de indignação surgiu com a aprovação do PL 2159/2021, apelidado de “PL da Devastação”. O projeto desmonta a atual legislação de licenciamento ambiental, reduz drasticamente as exigências para a avaliação de impactos e abre brechas para uma guerra regulatória e judicial, com graves consequências para o meio ambiente e para a economia brasileira. O texto foi aprovado de madrugada, sem diálogo, mesmo diante da resistência de mais de cem organizações da sociedade civil e de campanhas de mobilização, como a organizada no site www.pldadevastação.org, que enviou centenas de milhares de e-mails de eleitores indignados aos parlamentares.
Mais uma vez, o Congresso priorizou os interesses do agronegócio e da indústria, ignorando os alertas sobre a crise climática e os desastres ambientais que há tempos afetam o País. A narrativa de um Legislativo capturado por interesses privados se fortalece justamente pela ausência de uma agenda de pactuação com o povo. Não há sinais de escuta aos movimentos sociais, às lideranças populares ou às demandas urgentes por justiça social, ambiental e tributária. A chance, no entanto, ainda existe.
O PL do Imposto Zero segue em tramitação e pode ser votado no plenário da Câmara em breve. Se aprovado como está, representará uma das medidas mais significativas em benefício da população de baixa e média renda nos últimos anos. Além disso, o Brasil voltaria a taxar lucros e dividendos, com alíquota de 10% para rendimentos mensais acima de 50 mil reais. Agora, cabe ao Congresso decidir: vai abraçar o projeto e mostrar que pode, sim, estar ao lado do povo? Ou seguirá alimentando sua imagem de inimigo da população, barrando ou desidratando uma proposta histórica?
A sociedade civil tem demonstrado de que lado está e tem se esforçado para abrir diálogo com líderes parlamentares e setores econômicos. No entanto, diante da atual correlação de forças, é indispensável manter a mobilização – e um dos instrumentos à disposição é o site www.pldoimpostozero.com.br, que articula uma incidência direta e pressão parlamentar organizada, com o apoio de cerca de 30 organizações. •
*Ativista político e gestor de advocacy no Nossas, organização que desenvolve tecnologias cívicas e campanhas de mobilização para fortalecer a democracia e promover a justiça social no Brasil.
Publicado na edição n° 1374 de CartaCapital, em 13 de agosto de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Descruze os braços’
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