Política

Descendo a serra da política externa

José Serra, ministro das Relações Exteriores, indica que haverá um recrudescimento do protagonismo internacional brasileiro

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Às vésperas do encerramento do ciclo do PT no governo federal, uma das heranças mais marcantes que o partido deixa é a sua abordagem na política externa.

Ainda que não tenha havido durante a presidência de Dilma Rousseff a continuidade da política “ativa e altiva” elaborada e conduzida pelo chanceler Celso Amorim, o princípio fundamental seguiu o mesmo durante todo o período: a consolidação da inserção internacional brasileira via diálogo e cooperação multilateral.

Desde a primeira passagem de Amorim pela chefia do Itamaraty, no governo de Itamar Franco, o alinhamento pela pluralização das parcerias Sul-Sul já ganhava seus primeiros traços. Com o fortuito casamento com o perfil de diplomacia presidencial de Lula da Silva, o Brasil ampliou, em todos os continentes, sua atuação política, buscando maximizar o aspecto brando de seu poder.

O próprio Amorim, diplomata-acadêmico que é, sempre enfatizou bastante em obras e discursos a sua inspiração na definição já clássica do poder feita por Joseph Nye Jr.

Ainda que tenha buscado robustecer o poder duro, através do investimento no reaparelhamento das Forças Armadas brasileiras, a forma de inserção internacional buscada nos últimos treze anos foi empregada até mesmo em situações nas quais o Brasil tinha maiores recursos de poder que seus parceiros, como no caso da crise do gás com a Bolívia.

Os ganhos trazidos por essa política externa foram inegáveis: criação e consolidação da União de Nações Sul-Americanas (UNASUL); mediação de crises na América do Sul; robustecimento de participação em operações de paz da ONU, em especial no Haiti; a escolha de sediar a Copa do Mundo e as Olimpíadas; a pluralização das parcerias comerciais Sul-Sul; o comando da Organização Mundial do Comércio (OMC), entre tantos outros.

Após a saída de Lula da presidência, o protagonismo capitaneado pelo Itamaraty deixou de ser evidente. Chanceleres opacos, desinteresse da presidente pela temática internacional e a diminuição do crescimento econômico estagnaram o movimento internacional nos anos Dilma.

Algum protagonismo, contudo, ainda persistiu durante o primeiro mandado da presidente, em especial durante a passagem de Amorim pelo Ministério da Defesa. Os escândalos de espionagem catapultaram a liderança brasileira na discussão de legislações para controle da internet mundo afora.

As parcerias regionais, em especial via cooperação em defesa, através do Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS), passaram a ser o principal fio de liderança do Brasil junto à América do Sul.  

Pelo CDS passaram projetos de fomento da base industrial de defesa sul-americana, com iniciativas como desenvolvimento de drones, avião, lanchas, tanques, metodologia de gastos comum, além do aumento do intercâmbio de militares em cursos de treinamento conjunto.

A criação da Escola Sul-Americana de Defesa consolidou esse espírito de liderança progressista do Brasil na região. O princípio fundamental seguia com o intuito de elevar o status internacional do país buscando a consolidação de sua liderança, mas sempre de forma a levar também o desenvolvimento e a inclusão a outros países.

A saída de Amorim do Ministério da Defesa e o acirramento da crise econômica, contudo, estagnaram também na pasta o projeto de um Brasil líder regional/internacional. Novos ganhos deixaram de vir. Contudo, deixar de ser protagônico não era necessariamente sinônimo de perda do prestígio colaborativo adquirido previamente.

A entrada de José Serra na chancelaria, contudo, marca uma retomada de prioridade para o Itamaraty, mas marca também a mudança de um perfil consolidado da inserção internacional brasileira.

Sua primeira decisão como ministro foi responder “rejeitando enfaticamente”, palavras suas, as críticas internacionais recebidas ao processo de impeachment de Dilma Rousseff. Foram nominalmente citados “Venezuela, Cuba, Bolívia, Equador e Nicarágua, assim como da Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América (ALBA)” (nessa ordem), além da presidência da própria Unasul.

Essa decisão não altera apenas a forma de relacionamento do País com seus vizinhos, mas já anuncia que o espírito brando do exercício do poder internacional do país já é fato passado. O tom adotado por Serra já em seus primeiros dias denota que a busca pelo diálogo dará lugar a uma maior imposição naqueles relacionamentos em que o Brasil detém maior poder.

Não é novidade que nossos vizinhos sul-americanos historicamente veem o Brasil como imperialista na região. A história dá-lhes motivos para tal. Se, durante os últimos treze anos, a trajetória de inserção brasileira vinha tentando justamente desconstruir esse mito, o prenúncio da gestão de Temer e Serra já indica que haverá novos, e muitos, motivos para um recrudescimento contra o protagonismo internacional brasileiro.

Na América do Sul, diretamente citada nos primeiros textos da nova chancelaria, a resistência será, por certo, bem maior.

A realidade da política de poder continua sendo uma constante na política internacional, mas é inegável que prestígio importa, e muito. Um país com relativamente poucos recursos de poder consolidados, como o Brasil, precisa, ainda mais de respaldo político para maximizar sua atuação internacional.

Com o orçamento para a defesa despencando vertiginosamente, o prosseguimento da crise econômica e uma diplomacia regional ofensiva corremos o risco de perder, em pouco tempo, os frágeis ganhos consolidados em nossa atuação exterior nos últimos anos.

*Lucas Pereira Rezende é doutor em Ciência Política, professor da graduação e do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina e autor de “Sobe e Desce: Explicando a Cooperação em Defesa na América do Sul” (Editora UnB, 2015).

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