Política

Deputados aprovam terceirização irrestrita da mão de obra

Base governista resgatou um antigo projeto do governo FHC, com ainda menos salvaguardas ao trabalhador que a proposta de Cunha de 2015

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A Câmara dos Deputados aprovou na noite desta quarta-feira 22 o texto-base de um projeto que libera a terceirização do trabalho apresentado há 19 anos pelo governo Fernando Henrique Cardoso. Após a votação dos destaques, a proposta de 1998 depende apenas de sanção de Michel Temer.

O PL 4302, de 1998, foi aprovado com 231 votos favoráveis, 188 contrários e oito abstenções. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), é o principal responsável pela celeridade na aprovação da matéria, vendida como uma alternativa para reativar o mercado de trabalho. “Temos que parar com o mito de que regulação gera emprego. O excesso de leis no Brasil tem gerado desempregados”, afirmou na segunda 20, durante evento da Câmara Americana de Comércio em São Paulo.

A oposição chegou a levar patos de borracha para o plenário em inusitado protesto, além de dizer que o projeto é para pagar a “fatura” pelo apoio da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo à destituição de Dilma Rousseff. “É para pagar a conta do golpe, a conta da Fiesp“, ironizou o deputado petista Paulo Pimenta.

Em linhas gerais, o texto permite a terceirização em todas as atividades de uma empresa, tanto no setor privado quanto no serviço público. Embora o atual presidente do Tribunal Superior do Trabalho, Ives Gandra Martins Filho, tenha manifestado simpatia pela proposta, a jurisprudência da Corte proíbe terceirizar as chamadas “atividades-fim”. Ou seja, uma montadora de automóveis não pode subcontratar mecânicos ou metalúrgicos, e sim serviços acessórios, como vigilância e limpeza.

Em 2015, após uma sessão comandada com mão de ferro pelo então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, os deputados aprovaram um projeto que liberava as terceirizações para as atividades-fim, abrindo as portas para mais de 30 milhões de trabalhadores serem convertidos em subcontratados. O texto permanece, porém, nos escaninhos do Senado, que optou por não dar celeridade à tramitação.

A solução usada pela atual base de Temer foi tirar da gaveta o projeto do governo FHC, aprovado no Senado em 2002, com relatório de Romero Jucá, hoje líder do governo no Congresso. Detalhe: apenas 12 dos atuais 81 senadores estavam no exercício do mandato à época.

Um dia antes da votação, até mesmo deputados da base governista não escondiam o descontentamento de apreciar a mesma pauta pela segunda vez, assumindo novamente o ônus político da impopular medida. Durante uma reunião no Colégio de Líderes, apenas Maia e o tucano Ricardo Trípoli fizeram uma defesa contundente da manobra. Foi a pressão do Planalto que assegurou a aprovação da terceirização no plenário da Câmara.

Não é tudo. O projeto aprovado reduz ainda mais as salvaguardas ao trabalhador. Na proposta de 2015, a empresa com trabalhadores terceirizados tem a obrigação de fiscalizar se a fornecedora de mão de obra está em dia com as suas obrigações trabalhistas.

Conforme CartaCapital apurou, o governo federal pretende mobilizar a sua base no Senado para também aprovar o projeto de terceirizações de 2015. Assim, Temer teria a opção de escolher o texto que mais lhe convém, vetando trechos específicos.

Salários menores, jornadas maiores
Um dossiê da Central Única dos Trabalhadores (CUT), preparado por técnicos do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese), revela o cenário tormentoso das terceirizações no Brasil. Com dados de 2013, o estudo mostra que os terceirizados recebem salários 24,7% menores que aqueles dos efetivos, permanecem no emprego pela metade do tempo, além de ter jornadas maiores.

Auditores, procuradores e juízes do Trabalho consultados por CartaCapital alertam ainda para o maior risco de acidentes laborais, calotes trabalhistas e exposição a condições degradantes ou análogas à escravidão nas subcontratações. Embora os defensores da terceirização sustentem que a medida possa reduzir custos para empresas sem afetar os direitos dos empregados, a matemática do patronato não parece fazer sentido.

“Se eu pago determinado valor ao funcionário e coloco um intermediário nessa relação, não tem como ficar mais barato sem perdas para o trabalhador. A empresa prestadora de serviço evidentemente visa o lucro. O trabalhador só custará menos com arrocho salarial e supressão de direitos”, alerta Ângelo Fabiano Farias da Costa, presidente da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT).

“A terceirização promove perda do direito às férias (pela alta rotatividade das prestadoras de serviço), redução de salário, aumento da jornada e consequente aumento do número de acidentes de trabalho e doenças profissionais”, afirma a juíza Valdete Souto Severo, diretora da Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do Rio Grande do Sul, em recente artigo publicado pelo site Justificando, parceiro de CartaCapital.

Não se trata de exagero retórico. Na Justiça do Trabalho, sobejam exemplos dos efeitos deletérios causados pelas terceirizações. Embora a subcontratação das atividades-fim esteja proibida pela legislação vigente, na prática ela ocorre em muitos setores.

Maior risco de acidentes laborais
No setor elétrico, o número de acidentes fatais envolvendo terceirizados chega a ser até  dez vezes superior àquele dos efetivos. Dados extraídos dos relatórios anuais da Fundação Coge, que congrega mais de 70 empresas públicas e privadas de energia elétrica, não deixam margem para dúvidas:

Os problemas não se restringem ao setor elétrico. Na exploração de petróleo, os terceirizados têm cinco vezes e meia mais chance de morrer em um acidente de trabalho do que os efetivos. Segundo a Federação Única dos Petroleiros, de 2003 a 2012, foram registrados 110 óbitos de terceiros contra 20 mortes de trabalhadores efetivos da Petrobras. Na percepção de procuradores do trabalho, o fenômeno repete-se na construção civil, responsável por mais de uma morte por dia no País.

Os terceirizados são mais vulneráveis ao trabalho degradante. Vitor Araújo Filgueiras, auditor fiscal do Ministério do Trabalho e pesquisador da Unicamp, analisou os dez maiores resgates de trabalhadores em condições análogas à escravidão do Brasil e constatou que 90% dos flagrantes ocorreram em empresas subcontratadas para a prestação de serviços. “Há fortes indícios de que terceirização e trabalho escravo estão intimamente relacionados”, disse em um artigo publicado pela ONG Repórter Brasil em 2014.

O presidente da ANPT observa ainda que as empresas tomadoras de mão de obra não fiscalizam se a prestadora cumpre com suas obrigações trabalhistas, e os calotes são práticas recorrentes. “Com base em nossa atuação em diversos processos trabalhistas por todo o País, seja em casos de terceirização lícita ou ilícita, posso garantir que o terceirizado tem sido tratado como trabalhador de segunda categoria”, emenda Costa.

* Colaborou Miguel Martins.

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