Política
Depois do 8 de Janeiro, o novo mapa do risco eleitoral no Brasil
Um relatório recém-lançado pela Abin aponta extremismo político, desinformação, IA e domínio das big techs como vetores centrais das ameaças
Jair Bolsonaro está preso por tentativa de golpe contra o resultado da última eleição. Significa que a próxima disputa estará livre de uma campanha de deslegitimação como aquela levada adiante pelo ex-presidente e seus partidários? Para a Agência Brasileira de Inteligência, a Abin, não.
A segurança do processo eleitoral de 2026 aparece como o primeiro dos cinco maiores riscos ao País listados pela Abin no relatório Desafios de Inteligência, divulgado nesta terça-feira 2.
“O extremismo, ao fornecer narrativas de deslegitimação do processo eleitoral, pode implicar ameaças concretas, como aquelas que culminaram nos eventos de 8 de janeiro de 2023 e que permanecem como risco para 2026”, afirma o relatório.
É apenas a segunda vez que a agência divulga ao público geral — e ao governo — um diagnóstico desse tipo, pensado como bússola estratégica para orientar prioridades de Estado. Cabe à Abin, por lei, “produzir conhecimentos destinados a assessorar o presidente”.
Entre os elementos que ameaçam o processo eleitoral, a Abin destaca o papel das big techs e da inteligência artificial. Dos cinco desafios centrais, quatro têm a tecnologia como eixo: dependência tecnológica, transição para criptografia pós-quântica e ciberataques conduzidos por IAs autônomas. O quinto é a reconfiguração das cadeias globais de produção, marcada pela acirrada competição econômica entre Estados Unidos e China.
“A deslegitimação sistêmica das instituições democráticas constitui um dos principais fatores de vulnerabilidade para as eleições de 2026”, reforça o documento. É nesse terreno já erodido, destacam, que a desinformação prospera – especialmente no ambiente digital.
No poder, Bolsonaro minou a confiança popular nas urnas e no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Chegou a convocar embaixadores estrangeiros para “anunciar” que a eleição seria fraudada, motivo de ter sido condenado pelo TSE, em 2023, a oito anos sem concorrer a cargos eletivos.
A campanha de desinformação bolsonarista valeu-se sobretudo da internet. A efervescência digital dos militantes da extrema-direita desaguou no quebra-quebra de 8 de janeiro de 2023 em Brasília, como rememorado pela Abin no relatório.
Redes sociais e aplicativos de mensagens têm grande capacidade de “disseminar desinformação, discurso de ódio e teorias conspiratórias” anota a agência. Seus algoritmos, reforçam, são elaborados de forma a provocar o máximo engajamento dos usuários, o que produz “bolhas de desinformação”.
O perigo será amplificado pela inteligência artificial, em especial a generativa, e as deepfakes. Gerar conteúdo rápido e realista inaugura “nova era de desinformação e de manipulação política”, segundo a Abin. Os meios de checagem de informação não têm a mesma rapidez e a eficácia regulatória é “incerta”. O uso de IA na eleição municipal de 2024 foi proibido pelo TSE.
Mas não é apenas no terreno digital que os riscos se acumulam.
O crime organizado é outro risco apontado pela Abin. Milícias e facções criminosas controlam territórios, impõem candidatos nestas áreas (às vezes postulantes saídos das próprias organizações criminosas), financiam seus escolhidos e eliminam rivais. É a “politização do crime”.
A polarização política é outro fator. Quadro que, para a Abin, “favorece a emergência do extremismo” e da lógica de que o adversário é um inimigo a ser eliminado. A fé cumpre papel essencial neste caso. “Tem sido observada a instrumentalização de crenças religiosas como elemento e mobilização e de polarização”, destaca o órgão.
A prisão preventiva de Bolsonaro três dias antes de ele começar a cumprir pena foi causada pela convocação de uma vigília religiosa para a porta da casa dele por um dos filhos dele, Flavio. Na convocatória, o senador utilizou a expressão bíblica “senhor dos exércitos”.
Uma articulação internacional do extremismo (a agência não usa a expressão “extrema-direita”) tem potencial para aumentar as ameaças ao processo eleitoral. Isso pode ocorrer por meio “de campanhas de desinformação sofisticadas, ataques cibernéticos à infraestrutura eleitoral ou via financiamento de grupos específicos e de movimentos de viés antidemocrático”.
A ameaça que vem de fora
O documento não cita Donald Trump, mas vale recordar que o governo americano impôs sanções a autoridades do Brasil, ainda não revogadas, para tentar salvar Bolsonaro de condenação judicial. É um exemplo de interferência externa.
Diferentemente do que se viu no mandato anterior de Trump, agora as big techs estão alinhadas à Casa Branca. Elas não constituem um perigo eleitoral somente. Representam um risco mais amplo, daí serem as estrelas de outro desafio listado pela Abin: o da dependência tecnológica, classificada como uma “vulnerabilidade grave e imediata” ao Brasil.
As big techs são empresas privadas com interesses próprios e acordos políticos. Ademais, controlam infraestruturas de comunicação e fluxos de informação. Identidade digital das pessoas, depósitos de dados e informação (nas nuvens), autenticação bancária, vigilância urbana e gestão de dados públicos: tudo depende das plataformas.
O relatório da Abin desenha um cenário hipotético para ilustrar a ameça das big techs. Estas podem “roubar” dados sobre sistema energético brasileiro, identificar pontos de fragilidade, disseminar nas redes sociais a boataria de que haverá “apagão” e promover de fato a interrupção da energia em algum lugar do País.
De acordo com o documento da agência de inteligência, não basta aprovar leis regulatórias. É preciso que o Brasil tenha soberania digital e monte infraestruturas próprias, como nuvens para armazenar dados. A Abin promete tirar do papel em breve um sistema de troca de mensagens criado para ser utilizado pelo governo, uma espécie de “WhatsApp estatal”.
O que a Abin projeta para a próxima década
Os outros dois desafios tecnológicos listados pela Abin olham para o horizonte da próxima década.O primeiro tem relação com o desenvolvimento de supercomputadores quânticos que, acredita-se, serão capazes de quebrar os códigos criptográficos usados nas comunicações atuais. Tais códigos garantem que o conteúdo da comunicação é sigiloso e à prova de fraude. Em um prazo estimado entre 5 e 15 anos, pontua a Abin, computadores quânticos conseguirão “quebrar” os códigos, daí ser necessário investir logo em uma lógica codificadora nova.
Outra consequência são os ataques cibernéticos por IA’s autônomas. Esse tipo de inteligência artificial conseguiria agir por conta própria, sem ordem humana, e fazê-lo de forma contundente e sem rastros. O “alvo” não teria condições de responder rapidamente nem de identificar o “inimigo”.
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