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Democrata indomável

Perseguido por criticar a crescente politização das Forças Armadas, o coronel da reserva Marcelo Pimentel tornou-se alvo de cinco processos disciplinares

Imagem: Sergio Lima/AFP
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O coronel da reserva Marcelo Pimentel não acampou na porta de quartéis, permaneceu a centenas de quilômetros dos vândalos da Praça dos Três Poderes, jamais lançou dúvidas sobre o processo eleitoral e tampouco admoestou ministros da Suprema Corte às vésperas do julgamento de um habeas corpus determinante para o destino do líder das pesquisas de intenção de voto para a Presidência em 2018 – esse lamentável papel coube ao general tuiteiro Eduardo Villas Bôas, então comandante do Exército. Na verdade, a ficha de Pimentel é impecável, não há uma única punição ao longo dos 38 anos de carreira. Foi depois de migrar para a reserva, como os fardados chamam a própria aposentadoria, que o coronel começou a ter problemas.

Desde que entregou a chefia do Estado-Maior no Comando da 7ª Região, no Recife, seu último posto, o militar coleciona cinco processos administrativos disciplinares. Todos motivados por textos publicados nas redes sociais, com supostas violações de disposições regulamentares. A Lei nº 7.524, de 17 de julho de 1986, diz textualmente, contudo, ser “facultado ao militar inativo, independentemente das disposições constantes dos Regulamentos Disciplinares das Forças Armadas, opinar livremente sobre assunto político, e externar pensamento e conceito ideológico, filosófico ou relativo a matéria pertinente ao interesse público”. A única exceção prevista são os “assuntos de natureza militar de caráter sigiloso”.

Ficha limpa. Em 38 anos de carreira, Pimentel não sofreu uma única punição – Imagem: Redes sociais

Protegido pela lei, o coronel passou a opinar sobre política na inatividade. Nas eleições de 2018, declarou voto no pedetista Ciro Gomes no primeiro turno e no petista Fernando Haddad no segundo. Logo após a vitória de Jair Bolsonaro, Pimentel publicou um artigo na ­Folha de S.Paulo, no qual manifestava preocupação com o “mau exemplo” dado pelo presidente aos jovens oficiais. “O desobediente capitão será, a partir de janeiro, o comandante em chefe das Forças Armadas e jurará obedecer à Constituição”, observou Pimentel. “Minha maior preocupação é que não tenha compreendido, até hoje, o significado daquela frase que emoldura o pátio da Academia Militar das Agulhas Negras: ‘Cadete, ides comandar, aprendei a obedecer’. Espero estar errado.” O texto teve enorme repercussão no meio militar e o coronel tornou-se alvo de alguns colegas de farda, que passaram a chamá-lo de “traidor” e “comunista”, entre outros impropérios.

Passados seis meses, o coronel também teve de responder a dois processos disciplinares. O primeiro por criticar a patética Ordem do Dia assinada pelo então ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva e pelos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, em 31 de março de 2019, no aniversário de 55 anos do golpe de 1964. Na verdade, os signatários do documento em momento algum mencionam a palavra “golpe”. Em vez disso, apelaram à velha cantilena da ameaça comunista: “As famílias no Brasil estavam alarmadas e colocaram-se em marcha. Diante de um cenário de graves convulsões, foi interrompida a escalada em direção ao totalitarismo. As Forças Armadas, atendendo ao clamor da ampla maioria da população e da imprensa brasileira, assumiram o papel de estabilização daquele processo”. Nenhum comentário sobre milhares de prisões ilegais e torturas durante os 21 anos de regime militar, nenhuma escassa linha sobre os 434 mortos e desaparecidos políticos pelos algozes da ditadura.

As sindicâncias citam textos do militar nas redes sociais, mas a lei permite ao inativo “opinar livremente sobre assunto político”

Pimentel cometeu o pecado de classificar como “mentira histórica” a insistência de setores das Forças Armadas em chamar o golpe de 1964 de “Revolução” ou “Movimento”. Pior, ousou dizer que o então porta-voz da Presidência, general da ativa Otávio Santana do Rêgo Barros, “mentiu” ao rememorar a “Revolução Democrática de 31 de Março de 1964”. Onde já se viu um militar da reserva opinar sobre um tema tão sensível e ainda por cima falar a verdade? Quem disse que o direito à livre expressão inclui criticar um general no exercício de uma função política?

Se a motivação do primeiro processo parece risível, o que dizer então sobre a causa do segundo? Ao repercutir uma notícia de jornal no Facebook, o coronel alertou para o processo de “bolsonarização” do Exército, acrescentando que vários de seus colegas, ao se portarem como “bolsominions”, poderiam concorrer para que a instituição também fosse percebida dessa forma. Hoje, após diversos integrantes das Forças Armadas serem flagrados nos acampamentos golpistas e entre os terroristas que devastaram Brasília em 8 de janeiro, a acusação pode parecer prosaica. À época, contudo, os oficiais que faziam campanha descarada pró-Bolsonaro se sentiram atingidos, e tacharam a crítica como “ofensiva” ao Exército.

Ele pode. Villas Bôas, o general tuiteiro, jamais foi punido por seus pitacos nas redes – Imagem: Isac Nóbrega/PR

Os bolsominions de farda pretendiam silenciar Pimentel, mas o efeito foi o oposto ao pretendido. Mestre em Ciências Militares pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, o coronel voltou-se à produção acadêmica, sempre dedicado ao tema da politização das Forças Armadas. Escreveu capítulos de livros e, a partir de 2021, quando ingressou no curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de Pernambuco, dedicou-se à elaboração de artigos e à participação em debates. Desde então, entrou de vez no radar da mídia e passou a receber numerosos convites para entrevistas.

Em uma delas, à CartaCapital, explicou a razão de evitar o uso do termo “governo Bolsonaro” ao se referir ao período de 2018 a 2022. “Prefiro chamá-lo pelo que é de fato: o governo de generais do Partido Militar, que manobra o presidente, com consentimento e participação dele, e controla a máquina pública na administração direta e indireta”, disse em maio de 2021. “Difícil é precisar o projeto político. Esses generais, ao longo da carreira, pouco se interessavam por política e mal discutiam os temas relacionados, limitando-se a opiniões genéricas de senso comum. O projeto dos militares é movido pela pauta corporativa e de interesse específico, caracterizada por inúmeras iniciativas que beneficiam a classe em geral, com prioridades para a cúpula com benesses, privilégios e prerrogativas de toda ordem.”

Pimentel é alvo de ação “persecutória, arbitrária e, acima de tudo, ilegal”, conclui o Instituto Vladimir Herzog

O terceiro processo não foi por conta de uma dessas entrevistas, e sim por uma singela observação deixada no site do jornal O Estado de S. Paulo. Em sua coluna, o economista Pedro Fernando Nery observou que a Academia Militar das Agulhas Negras estava formando oficiais para atuar em todas as áreas, da saúde pública à gestão dos Correios, mais parecia uma escola de negócios. O enrosco é que os “técnicos” da Aman sempre se saíam mal na empreitada. “O Brasil descobriu que tem oficiais muito ruins. Na reconstrução, precisaremos debater o que fazer com essas escolas ‘deformação’”, concluiu. Pimentel então escreveu na caixa de comentários: “Artigo muito bom e importante. Como oficial do Exército (inativo) e crítico do atual protagonismo político de cúpulas hierárquicas das Forças Armadas, pelos seus efeitos nocivos ao Brasil e às próprias FFAA, ouso acrescentar na conclusão: antes, é preciso debater o que fazer com esses generais”. Foi o que bastou para um general se sentir atingido e abrir uma sindicância.

O quarto processo foi aberto em 10 de outubro de 2022, no mesmo dia em que Pimentel lançou Comentários a um Delírio Militarista, do qual é coautor, na companhia de Manuel Domingos Neto, organizador da obra. A investigação não tem, porém, qualquer relação com o livro. Desta vez, a desculpa foi o fato de o coronel ter relatado a dificuldade de seu pai, de 90 anos, em marcar uma consulta para tratamento de um tumor na orelha em um hospital militar. Uma semana depois, a ouvidoria do próprio hospital entrou em contato e resolveu o problema. Fim da história? Nada disso. Logo depois, o caso foi tratado como uma gravíssima “denúncia” que precisava ser comprovada pelo coronel, ainda que ele tenha feito apenas um tuíte, sem a formalização de queixa alguma. Com o pai no pós-operatório, Pimentel esclareceu por telefone, ao oficial sindicante, que tudo havia sido resolvido. Ainda assim, foi acusado de “publicar ato ou assunto militar que pode contribuir para o desprestígio das Forças Armadas”. A capacidade da turma em fazer tempestade em copo d’água é realmente espantosa.

Aliados? A simbiose entre extremistas e militares prova a tese de Pimentel, as Forças Armadas foram “bolsonarizadas” – Imagem: Ton Molina/AFP

O quinto e último processo disciplinar – ao menos até a conclusão desta reportagem – está relacionado às críticas do coronel aos oficiais que lançaram dúvidas sobre as urnas eletrônicas e mantiveram acesa a chama do golpismo, inclusive ao permitir os acampamentos dos extremistas na porta de quartéis. Essas ponderações foram feitas em vídeos no YouTube e em um thread (fio, sequência de postagens relacionadas) no Twitter. Embora as análises mais contundentes de Pimentel estejam presentes em entrevistas à mídia, todos os casos baseiam-se em publicações nas redes sociais – provavelmente uma covarde estratégia da turma para não dar publicidade aos casos e tampouco comprar briga com veículos de comunicação.

Os dois primeiros processos resultaram em punição de advertência. O terceiro foi arquivado. O quarto gerou uma repreensão, mas o coronel recorre da decisão. O quinto ainda não foi julgado. A perseguição é tão escandalosa que entidades de defesa dos direitos humanos se manifestaram. “Pimentel está sendo vítima de uma punição absolutamente persecutória, arbitrária e, acima de tudo, ilegal”, afirmou, por meio de nota, o Instituto Vladimir Herzog. “Conclamamos as autoridades a agirem para resguardar o direito constitucional à liberdade de expressão e sustar esse processo persecutório.”

Procurado por CartaCapital, o coronel preferiu não se manifestar sobre os processos antes do desfecho de todos os casos, até por temer “possíveis retaliações”. O Centro de Comunicação Social do Exército não respondeu às perguntas da reportagem até o fechamento desta edição. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1244 DE CARTACAPITAL, EM 1° DE FEVEREIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Democrata indomável”

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