Política
Dedicação exclusiva
Como funciona a primeira, e ainda única, vara especializada em casos de feminicídio no Brasil


Em Porto Alegre, todos os casos de feminicídio são julgados pela 4ª Vara do Júri, instalada em março de 2021. Trata-se da primeira e, até hoje, única instância do País dedicada exclusivamente a crimes dolosos contra a vida motivados por razões de gênero. Em diversas localidades, existem juizados especializados em violência doméstica e contra a mulher, mas a unidade da capital gaúcha destaca-se por atuar especificamente em assassinatos, consumados ou tentados, de competência do Tribunal do Júri.
Na contramão da tendência de redução das mortes violentas em geral, o número de feminicídios segue em alta no Rio Grande do Sul. Entre janeiro e setembro deste ano, 57 mulheres foram assassinadas por razões de gênero no estado, segundo dados da Secretaria Estadual de Segurança Pública – um aumento de 21% em relação ao mesmo período do ano anterior, quando foram registrados 47 casos. As tentativas também cresceram: foram 205 ocorrências, 23% a mais na comparação com 2024. O ápice da escalada violenta ocorreu em abril, durante o feriado da Páscoa, quando ao menos dez gaúchas foram assassinadas em uma única semana.
A vara específica para casos de feminicídio foi criada por recomendação do Conselho Nacional de Justiça, com o objetivo de garantir uma resposta judicial mais célere, sensível e qualificada às vítimas e seus familiares. A iniciativa integra a política do CNJ de enfrentamento à violência contra a mulher, que incentiva a especialização de magistrados, a padronização de procedimentos e o fortalecimento das redes de proteção.
A juíza titular da 4ª Vara do Júri de Porto Alegre, Cristiane Busatto Zardo, reconhece a morosidade do Judiciário, mas pondera que o Estado tem adotado políticas públicas importantes para combater a impunidade e fortalecer as ações de prevenção. Ressalta, no entanto, que o problema é mais complexo do que parece, envolvendo fatores pessoais, familiares e culturais que extrapolam o alcance das medidas institucionais. “Não se trata apenas de aplicar a lei, mas de compreender contextos marcados por dependência emocional, vulnerabilidade econômica e padrões culturais que ainda naturalizam a violência contra a mulher”, observa a magistrada.
Ao longo de sua carreira, a juíza sempre atuou na área criminal. Seus primeiros contatos com casos de violência doméstica ocorreram quando o tema ainda era tratado pelos Juizados Especiais Criminais. Desde 2007, acumula sólida experiência no julgamento de crimes dolosos contra a vida. “Para mim, essa área sempre foi especial. Quando pude juntar o Tribunal do Júri com a violência doméstica, aceitei o desafio”, afirma Zardo.
A magistrada salienta que há dois tipos de feminicídio: o decorrente da violência doméstica, quando o agressor não aceita perder o controle sobre a mulher, mesmo após uma separação ou divórcio; e o motivado pelo ódio à figura feminina, expressão extrema de um padrão social que ainda resiste em reconhecer a mulher como sujeito pleno de direitos. Essa distinção, acrescenta a magistrada, é fundamental para compreender as motivações por trás do crime e orientar a atuação do Judiciário na busca por justiça e na prevenção de novas tragédias.
“Para suportar, é preciso algum acompanhamento psicológico. Eu faço terapia”, diz a juíza Cristiane Busatto Zardo
Há um intenso debate jurídico sobre o limiar entre feminicídio e homicídio. Frequentemente, o movimento feminista critica a Polícia Civil por não reconhecer a motivação de gênero em crimes dolosos contra a vida de mulheres, o que contribui para a subnotificação dos casos. Segundo Zardo, essa caracterização costuma ser mais evidente quando há histórico de violência doméstica ou familiar. No entanto, em situações motivadas por menosprezo ou discriminação à condição de mulher, as autoridades policiais nem sempre fazem a distinção adequada. Na verdade, destaca a magistrada, até mesmo promotores e juízes cometem equívocos na aplicação do conceito. Não por acaso, o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, lançado pelo CNJ em 2021, recomenda que toda morte violenta de mulher seja tratada, inicialmente, como um caso suspeito de feminicídio – cabe à investigação confirmar ou descartar essa hipótese.
Um dos maiores desafios enfrentados pelo Judiciário no combate ao feminicídio é a dependência financeira e emocional das vítimas em relação aos agressores. Por diferentes razões, muitas mulheres suportam agressões e maus-tratos por longos períodos antes de buscar apoio na Justiça. “Os motivos são de toda ordem: falta de autonomia financeira, preocupação com os filhos, amor pelo companheiro”, observa a magistrada. Outras acabam perdoando os agressores, seja por acreditar em promessas de mudança, seja por medo de desestruturar a família. O pedido por medidas protetivas, previstas na Lei Maria da Penha, costuma ser feito apenas quando a situação se torna insustentável, como último recurso de proteção.
Além da demora das vítimas em buscar amparo judicial, outro fator contribui para a repetição das tragédias. “A desobediência por parte dos agressores é frequente, e muitas vezes as medidas protetivas não são suficientes para impedir novos episódios de morte ou tentativa de homicídio”, lamenta a magistrada. Por isso, o enfrentamento da violência de gênero exige mais do que a aplicação da lei: requer uma atuação integrada do Estado, que envolva prevenção, apoio social, acompanhamento psicológico e rigor na fiscalização das decisões judiciais.
Zardo reconhece que lidar diariamente com histórias marcadas por dor e violência exige equilíbrio emocional, sobretudo quando há crianças envolvidas. “Para suportar, é preciso algum acompanhamento psicológico. Eu faço terapia”, revela a magistrada, que também destaca o valor do apoio entre colegas. “Nós, que vivemos esses dilemas no dia a dia, conseguimos nos compreender melhor.” Para ela, o caminho mais promissor no enfrentamento ao feminicídio passa pela educação. “Precisamos fortalecer a prevenção em casa, no diálogo entre pais e filhos, e também nas escolas. Só o conhecimento é capaz de humanizar e transformar esse cenário.” •
Publicado na edição n° 1384 de CartaCapital, em 22 de outubro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Dedicação exclusiva’
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