Política

De pires na mão

Após torrar o dinheiro da venda da Cedae para se reeleger, Cláudio Castro agora tenta renegociar dívida do estado

Abacaxi. Fernando Haddad só deve decidir sobre o tema depois do Carnaval. Goiás, Minas Gerais e Rio Grande do Sul também querem repactuar os débitos – Imagem: Diogo Zacarias/MF e Tânia Rêgo/ABR
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“Será um ano duro.” A advertência feita por Cláudio Castro na primeira reunião de 2024 com seu secretariado possivelmente foi lembrada pelo próprio governador quando este decidiu interromper férias na Disney e retornar ao Rio de Janeiro para acompanhar as ações do Corpo de Bombeiros e da Defesa Civil após as chuvas que castigaram o estado, deixando trágico saldo de 12 pessoas mortas e duas desaparecidas. A perspectiva de ter pela frente três anos de enfrentamento às emergências climáticas que inexoravelmente surgirão é, porém, apenas uma de suas provações.

Há um ano e meio, o governador era pura animação, graças à privatização da lucrativa Companhia Estadual de Águas e Esgotos, a Cedae, por 22,69 bilhões de reais, dos quais 14,4 bilhões foram repassados aos municípios. O gesto de benevolência garantiu-lhe o apoio de 80 dos 92 prefeitos fluminenses na campanha à reeleição. Hoje, Castro vê-se obrigado a gerir um déficit estimado em 8,5 bilhões de reais para este ano. No balanço entre receitas e despesas, em um curto período o Rio foi da euforia à depressão. Em 2022, ano da reeleição do governador e da venda­ da Cedae, o caixa estadual terminou no azul em 12,94 bilhões de reais. No ano passado, o primeiro do segundo mandato, o saldo caiu para 5,04 bilhões de reais, mas ainda permaneceu positivo. Já para 2024 as previsões do Projeto de Lei Orçamentária aprovado pela Assembleia Legislativa do Rio são sombrias, com 104,56 bilhões de reais em receitas e 113,09 bilhões em despesas.

O discurso adotado por Castro desde a campanha eleitoral, sempre a exaltar as “contas equilibradas” de seu governo, deu um cavalo de pau no segundo semestre de 2023, quando passou a cobrar do Ministério da Fazenda a repactuação do acordo firmado entre o Rio de Janeiro e a União no âmbito do novo Regime de Recuperação Fiscal (RRF), lançado pelo governo Bolsonaro em 2021. “Se não avançarmos em um novo acordo, o problema financeiro do Rio vai causar atraso de salário e fome no estado.” Um contraste e tanto com as palavras de agosto de 2023, quando o governador afirmava estar “conseguindo pagar as parcelas da dívida com a União sem comprometer a prestação de serviços públicos e o pagamento de servidores”.

O déficit previsto para este ano é de 8,5 bilhões de reais. As parcelas devidas à União somam 6,7 bilhões em 2024

Se o “sumiço” do dinheiro da venda da Cedae e a volta em tempo recorde do caixa estadual à penúria fiscal exalam o típico odor de estelionato eleitoral, o mesmo vale para o pedido de socorro feito pelo governador ao ministro Fernando ­Haddad, para que haja um alongamento das dívidas do Rio com a União. Em junho de 2022, às vésperas do início da campanha à reeleição, Castro comemorava publicamente o aval dado pelo ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, ao acordo feito com o então ministro da Economia, Paulo Guedes, para uma nova adesão do Rio ao RRF. O momento foi amplamente propagandeado durante a campanha como vitória da aliança do governador com Bolsonaro. Passados menos de dois anos, o governo fluminense clama por novo acordo, com outros critérios para a rolagem da dívida estimada em 187,2 bilhões de reais. Pelo acordo em vigor, o pagamento previsto para este ano é de 6,7 bilhões de reais.

Castro solicitou nova reunião com Haddad, mas o encontro só deverá acontecer após o Carnaval. Nesse meio-tempo, informa a Secretaria Estadual de Fazenda, “será feita a reprogramação de despesas conforme a disponibilidade da receita prevista”. O governador, que antes do Natal chegou a ameaçar entrar com uma ação no STF para interromper o pagamento dos juros da dívida com a União, mudou de estratégia e agora pretende convencer o ministro sobre a legitimidade de seu pleito. “Há cinco anos o Rio não contrai empréstimos, e o nosso déficit em 2024 será causado basicamente pelo pagamento dos juros e encargos da dívida. A União não é uma instituição financeira e não poderia cobrar juros”, diz o governador.

Segundo a Fazenda Estadual, do total de 6,7 bilhões de reais que devem ser pagos este ano ao governo federal via RFF, quase dois terços (4,1 bilhões de reais) representam o pagamento de juros e apenas 2,6 milhões uma real amortização da dívida. Em abril de 2022, a CPI aberta na Alerj para investigar a dívida do Rio com o governo federal constatou que o valor acumulado até aquele ano (134,7 bilhões de reais) seria de somente 63 bilhões de reais se a dívida fosse corrigida apenas pelo IPCA. O Ministério da Fazenda, por sua vez, informa que “não comentará o caso do Rio de Janeiro” até que sejam definidos também os próximos passos das negociações em curso entre a União e outros estados que querem renegociar suas dívidas, como Rio Grande do Sul, Goiás e Minas Gerais. O objetivo de Haddad é anunciar até março um acordo conjunto.

Imprudência. Os 22,69 bilhões de reais obtidos com a Cedae escorreram pelo ralo. Agora, o estado tarda a prestar assistência às vítimas das chuvas – Imagem: Mauro Pimentel/AFP e Prefeitura de Itaboraí/RJ

“A crise no Rio de Janeiro é muito grave e o acordo de recuperação fiscal tem de ser feito mesmo, não tem jeito”, avalia o deputado federal Reimont Otoni, do PT, que tem como uma das bandeiras de seu mandato na Câmara o aumento da arrecadação estadual. Ele ressalta que a crise do Rio é antiga e foi apenas convenientemente esquecida no momento de euforia com a venda da Cedae: “Em dez anos, o PIB do estado praticamente não cresceu e a dívida torna-se, a cada ano, mais impagável”. Para o economista Mauro Osório, professor da UFRJ e especialista em temas ligados ao desenvolvimento econômico fluminense, buscar um novo acordo é o caminho natural e imediato que se apresenta ao governo: “De 2010 a 2021, o PIB estadual cresceu apenas 1,5%. Se a economia não cresce, a relação ­dívida/PIB aumenta. Nesse sentido, a reivindicação do governo é correta”.

Osório avalia que a crise específica do Rio demanda um novo acordo de recuperação fiscal, mas esse tem de ser acompanhado por reformas estruturais para “a reestruturação do setor público, o enfrentamento do controle territorial imposto pelo tráfico e a milícia, a realização de concursos públicos e elaboração de um New Deal que capacite o estado para o enfrentamento às mudanças climáticas”. André Luiz Marques, coordenador do Centro de Gestão Política do Insper, pondera que a judicialização para suspender o pagamento dos juros da dívida pública é uma medida paliativa: “O Rio precisa de uma solução definitiva para seus problemas financeiros. Contar com a sorte ou eventuais decisões favoráveis da Justiça não é a saída”.

Uma das queixas de Castro é a queda de arrecadação do estado, estimada em 10 bilhões de reais desde janeiro de 2022, quando o governo federal promulgou as leis complementares 192 e 194 e reduziu as alíquotas de energia, telecomunicações e combustíveis, na média, de 30% para 18%. “A medida tomada pelo governo Bolsonaro foi trágica para os estados brasileiros e agravou ainda mais a crise do Rio”, avalia o deputado estadual Luiz Paulo Corrêa da Rocha, do PSD, vice-governador na gestão de Marcello Alencar (1995-1998). O parlamentar defende uma mudança no atual modelo, também definido pelo governo federal, já na atual gestão, no qual os juros da dívida são pagos pela correção monetária mais 4% ao ano ou pela Taxa Selic, o que for menor: “São juros extorsivos. Qualquer país ou estado que tomar dinheiro emprestado em grande quantidade e pagar juros acima do crescimento do seu PIB quebra”.

Luiz Paulo diz esperar que a recomposição da alíquota modal do ICMS de 18% para 20%, acordada com o ministro ­Haddad no ano passado e a valer a partir de abril de 2024, faça com que a arrecadação o Rio cresça em 2 bilhões de reais ao longo do ano, reduzindo o déficit para 6,5 bilhões: “A saída é pagar a correção monetária, mais juros que sejam iguais ao crescimento decenal real do PIB nacional, a partir de uma média móvel. De resto, o governo do Rio precisa melhorar a fiscalização e combater a sonegação”. O deputado aguarda ainda a tipificação legal da figura do devedor contumaz – um projeto nesse sentido, com apoio do governo Lula, tramita no Senado –, para coibir os artifícios tributários utilizados, principalmente por grandes empresas, para o não pagamento das dívidas. “A Petrobras, por exemplo, está inscrita na dívida ativa do Estado e a demanda judicial é de 19 bilhões de ­reais. A Refit idem, com 11 bilhões de reais.”

Em 18 anos, a participação do Rio no PIB nacional caiu de 12,38% para apenas 9,91%

Para o deputado estadual Carlos Minc, do PSB, Castro “não tem um bom controle das despesas do governo nem faz esforço consistente para aumentar a arrecadação”. Ele menciona “os gastos completamente absurdos” na Secretaria de Educação: “Foram centenas de milhões de reais para comprar livros paradidáticos que já existiam disponíveis no MEC. Há vários outros exemplos de despesas desmedidas e completamente inúteis ou injustificadas”, diz o ex-ministro do Meio Ambiente de Lula. Minc e Luiz Paulo são autores de Projetos de Lei que visam aumentar a arrecadação sobre a venda de bebidas adocicadas, produtos nocivos e armamentos, entre outros, além da cobrança de taxa sobre a fiscalização das plataformas de petróleo: “Projetos que normalmente devem ser apresentados pelo governo, mas somos nós, da oposição, que temos essa responsabilidade”, diz o pessebista.

Minc também é autor de uma lei que obriga a divulgação mensal nos sites da Secretaria de Fazenda e da Procuradoria-Geral do Estado de uma lista com os cem maiores devedores, abrangendo pessoas físicas e pessoas jurídicas. “Depois de muita guerra, isso está sendo cumprido, até para que esses devedores não recebam benefícios e a Procuradoria cobre o que é devido. Há poucos procuradores cuidando disso e, como os grandes devedores em geral têm muitos advogados, acabam não pagando. Aí estão incluídos nomes como Petrobras, Eike Batista e vários outros”, diz.

Reimont propõe reequilibrar a participação do Rio de Janeiro dentro da Federação e lembra que o estado foi o que mais perdeu importância econômica no País neste século. Números do Pnad do IBGE mostram que, em 2002, os fluminenses representavam 12,38% do PIB nacional, mas 18 anos depois essa participação caiu para 9,91%. O estado vem “ladeira abaixo”, lamenta o deputado petista. “Desde setembro, o Rio é a economia que menos cresce, em uma lógica de territórios controlados pelo tráfico e as milícias, estagnação desde a década de 1970 e mortalidade materna maior do que no Norte e Nordeste do País. O desemprego entre os jovens chegou a 26% no ano passado, também maior que no Norte e Nordeste. O Brasil tem uma taxa de desemprego média de 7,7%. No Rio, ela é de 10,9%.” •

Publicado na edição n° 1294 de CartaCapital, em 24 de janeiro de 2024.

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