Política
De olho no quintal
Como outros países, o Brasil avança nas medidas de proteção às empresas aqui instaladas


As importações de pequeno valor por pessoas físicas cresceram exponencialmente em dez anos. De 800 milhões de dólares em 2013, menos de 1% das compras externas totais, para 13 bilhões em 2022, ou 4,4%, nível similar ao acumulado de janeiro a novembro de 2023, conforme o Banco Central. O motivo foi a popularização de sites chineses de comércio como Aliexpress, Shein e Shopee, no embalo da isenção de impostos nas remessas internacionais de até 50 dólares. Em janeiro, as confederações da indústria, CNI, e do comércio, CNC, foram ao Supremo Tribunal Federal tentar derrubar a isenção, sob a alegação de que os dois setores sofrem concorrência desleal. O governo havia ensaiado propor a taxação das remessas em 2023, mas a reação negativa na opinião pública, estimulada pelo bolsonarismo, levou Lula a não aderir aos planos da equipe econômica. A disposição atual do presidente era vetar a taxação, caso o Congresso a aprovasse.
O lobby patronal foi tão forte que na antevéspera do feriado os deputados aprovaram 20% de imposto de importação sobre as remessas, sem dar bola para eventuais impactos na classe política nas eleições municipais de outubro. Um dia depois, o da conclusão desta reportagem, o Senado examinaria a taxação e a tendência era confirmá-la. Coube ao presidente da Câmara, Arthur Lira, abraçar o lobby e bancar a tributação, mesmo após ter se sentado com Lula e ouvido a disposição do mandatário de vetá-la. Nos dias anteriores, Lira citava uma pesquisa segundo a qual os beneficiados pela isenção são as classes A e B. E decidira: deputado ausente do plenário em 27 e 28 de maio teria corte salarial.
O próximo setor a merecer uma política de incentivo é o da informática
A taxação das remessas pegou carona numa proposta do governo também destinada a proteger empresas sediadas no Brasil. Sob o carimbo de “política industrial”, a medida foi baixada em dezembro de 2023 em favor da produção de carros elétricos, turbinas de usinas eólicas e painéis solares de geração de energia. Satanizada pelos liberais do “mercado” e da mídia, a política industrial é objeto de uma “onda” global liderada pelos países mais ricos e governos direitistas. É o que diz o Fundo Monetário Internacional. A “onda” tem provocado tensões entre os Estados Unidos e a Europa, de um lado, e a China, do outro, novela cujos capítulos recentes têm em primeiro plano os carros elétricos e o aço.
Essas duas áreas são alvos de iniciativas de política industrial no governo Lula, e a próxima será a de informática, diz Uallace Moreira, secretário de Desenvolvimento Industrial, Inovação, Comércio e Serviços, do Ministério do Desenvolvimento. Vem aí, ainda neste ano, um redesenho amplo do Padis, de apoio às fábricas de semicondutores. O programa nasceu em 2007, segunda gestão Lula, com incentivo a pesquisas e inovações. Pelas regras atuais, acaba em 2026. Paralelamente a sua reformulação e perenização, o governo negocia a aprovação de uma nova Lei de Informática, que expira em 2029. “Fora da China, o Brasil é um dos maiores ecossistemas da indústria de eletroeletrônicos do mundo”, afirma Moreira.
Dweck: um eventual gasto maior nas compras governamentais é compensado pela arrecadação – Imagem: Adalberto Marques/MGI
Ao dar incentivos, o governo espera que o empresariado invista, gere produção e empregos internamente. No caso do apoio à siderurgia e à fabricação de carros elétricos e ao “esverdeamento” das montadoras tradicionais, deu certo. As fabricantes de veículos anunciaram mais de 100 bilhões de reais em investimentos, favorecidas pelo Mover, programa criado em dezembro e aprovado pelos deputados na antevéspera do feriado. Os parlamentares aproveitaram o ensejo para taxar as remessas internacionais de até 50 dólares.
Com o “Mover, o governo voltará a cobrar impostos sobre carros elétricos importados. O tributo de 35%, extinto em 2015, será retomado de forma gradual até 2026. Idem para automóveis “híbridos” (funcionam com eletricidade e combustível) e caminhões elétricos. Com o dinheiro da taxação, bolada estimada em 19 bilhões de reais, o governo financiará o “esverdeamento” das montadoras. No caso da siderurgia, o governo aumentou, em fevereiro e abril, o imposto de importação de vários produtos. Na primeira vez, as alíquotas de 10% a 14% passaram para entre 12% e 16%. Na segunda, subiram de um teto de 12% para 25%. Como resposta, em 20 de maio as siderúrgicas anunciaram, em Brasília, investimentos de 100 bilhões de reais até 2028. A ociosidade estava alta, cerca de 37%, por conta da concorrência dos importados. As medidas para siderúrgicas e montadoras, diz Moreira, “são instrumentos de garantia de demanda”, o que explica os investimentos.
A última iniciativa do governo em favor da produção nacional beneficia fabricantes de ônibus, trens e metrôs. Estes poderão ter preços até 10% acima da concorrência estrangeira e, ainda assim, vencerem licitações. Foi o que aprovou, em 23 de maio, em sua primeira reunião, a Comissão Interministerial de Compras Públicas. A comissão nasceu em janeiro, com o programa Nova Indústria Brasil, símbolo da política industrial lulista. Caberá a ela definir como usar o poder de compras federais para incentivar empresas instaladas no País. Essas compras equivalem a 20% do PIB, diz a ministra da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, Esther Dweck, “volume gigantesco de recursos”, segundo ela. “Esse instrumento é essencial para o desenvolvimento produtivo e tecnológico, o mundo inteiro usa”, afirma a ministra. Os EUA, compara, valem-se de tal expediente desde 1933, graças a uma lei batizada de Buy American Act.
Os deputados pegaram carona na aprovação do incentivo às montadoras instaladas no País para taxar o comércio online. O presidente Lula promete vetar a cobrança, fonte de desgaste popular – Imagem: Arquivo/Ag. Câmara e BYD Global
A chamada margem de preferência de 10% nas licitações tem como base uma lei de 2021, a 14.133. Era até então, aliás, de 25%, por obra de Lula no último ano do segundo mandato. No caso de quem investiu em inovação a partir de pesquisas no Brasil, serão mais 10% de preferência, ou seja, a empresa poderá cobrar nas licitações até 20% acima do preço dos competidores. Aos liberais que atacam iniciativas do gênero e falam em falta de verba federal para bancá-las, Dweck explica: cálculos de sua equipe mostram que pagar mais caro numa licitação será compensado por tributos cobrados nos negócios que as empresas favorecidas pela margem de preferência irão gerar. “Vamos ter ganho fiscal, mas o objetivo é fomentar emprego e renda no Brasil. A indústria garante emprego de qualidade, a nossa desindustrialização foi precoce.”
“Política industrial” está na moda no mundo, constata o Fundo Monetário Internacional. Em 2023, o FMI criou um observatório para coletar informações a respeito. Identificou 2.580 medidas em 75 países responsáveis por 94% do PIB global. Divulgou neste ano um estudo com as conclusões. Intitula-se O Retorno da Política Industrial em Dados. Há uma “recente onda” de política industrial e “governos mais inclinados para a direita” têm tendência maior a adotar medidas, descreve o documento. O fenômeno possui três explicações: baixo crescimento econômico, transição energética e corrida tecnológica. À frente, as economias mais ricas. EUA, China e União Europeia são o berço de 48% das iniciativas. Nas economias avançadas, as medidas mais comuns são subsídios a produtores locais, preferências em compras públicas, apoio a exportações, barreiras às importações e controle de investimentos em áreas estratégicas. Nas menos, subsídios, barreiras e preferências.
Há uma disputa crescente dos EUA e Europa contra a China
Os ministros da Fazenda e presidentes dos Bancos Centrais dos países do G7, grupo das sete maiores economias do mundo (Alemanha, Canadá, EUA, França, Itália, Japão e Reino Unido), reuniram-se de 23 a 24 de maio na Itália e, na declaração final, citaram a “China” e “política industrial” logo no terceiro parágrafo de um total de 47. Sinal das tensões no ar. “Expressamos preocupações sobre o uso abrangente de políticas e práticas não mercadológicas pela China”, salienta o texto. Os signatários se declaram dispostos a “responder a práticas nocivas”. “Encorajamos esforços” internacionais de mapear e monitorar “dados sobre política industrial”, prossegue o documento, e “apoiamos” estudos sobre o “impacto macroeconômico dos subsídios e outras medidas de política industrial e comercial”.
Nos últimos dias, o governo Biden anunciou várias medidas protecionistas contra Pequim. A partir de meados de junho, voltam a pagar imposto de importação centenas de produtos chineses, como motores, equipamentos médicos, mochilas, cadeiras para crianças e até caranguejo. A taxação de carros elétricos vai quadruplicar, para 100%. Ao menos 18 bilhões de dólares em vendas de produtos chineses nos EUA serão tributados, nas contas da Casa Branca. A China reagiu e mostrou-se pronta para aumentar de 15% para 25% o imposto sobre os carros elétricos norte-americanos e europeus. No último caso, é uma ameaça preventiva. Em setembro de 2023, a União Europeia abriu uma investigação sobre subsídios chineses a veículos elétricos. Em março, o bloco informou ter provas dos subsídios e começou a registrar todas as vendas de carros chineses em sua jurisdição, gesto que coloca essas compras ao alcance de retaliações retroativas.
Lucchesi: não podemos mais nos submeter à “hegemonia financeira estéril” – Imagem: Mardônio Vieira/CNI
“Estamos num momento em que cada vez mais a agenda protecionista é clara. Acabou essa lógica de OMC (Organização Mundial do Comércio)”, diz Rafael Lucchesi, diretor de Desenvolvimento Industrial da CNI. Palavras suas na reunião de 23 de maio da Comissão Interministerial de Compras Públicas. Para Lucchesi, o governo acerta ao adotar medidas de política industrial. O período em que o País mais enriqueceu, afirmou, teve a indústria de locomotiva, dos anos 1930 a 1980. Foi um erro, prosseguiu, abraçar o Consenso de Washington na década de 1990.
O “consenso” pregava uma visão liberal-financeira da economia e, para Lucchesi, empobreceu o País, embora liberais e jornais façam parecer o contrário. “Construímos uma lógica de hegemonia financeira estéril”, declarou. O Brasil está preso, segundo ele, “nas mentalidades e na hegemonia que muitas vezes grupos de interesse de super-ricos querem manter de relação estéril de produção de riqueza no Brasil, que não ajuda a construir o futuro do País. Temos que ter coragem de colocar esse debate de forma mais pública (…) e de desconectar de um conjunto de ideias que deram fragorosamente errado”.
Não é uma batalha fácil. •
Publicado na edição n° 1313 de CartaCapital, em 05 de junho de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘De olho no quintal’
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.
O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.
Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.
Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.