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De mãe para filha

Em Vitória da Conquista, um imbróglio familiar impede a diplomação da prefeita reeleita

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Sub judice. Segundo a prefeita, a mãe ocupou o cargo de forma interina. Pereira espera novas eleições. O desfecho depende do TSE – Imagem: Redes sociais
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Terceiro maior colégio eleitoral da Bahia, Vitória da Conquista, cidade com 400 mil habitantes, ainda não sabe quem assumirá a prefeitura em 1° de janeiro do próximo ano. Os quase 116 mil votos conferidos à ­atual prefeita, Sheila Lemos, que disputou a reeleição pelo União Brasil, estão ­sub ­judice, após terem sido considerados nulos pelo Tribunal Regional Eleitoral. A decisão está nas mãos do Tribunal Superior Eleitoral, em Brasília, e não há prazo para a análise do caso. Se até a data da posse não ocorrer uma definição, quem vai sentar na cadeira de prefeito de forma interina é o presidente da Câmara Municipal, a ser escolhido dia 1º de janeiro, em votação dos pares. Com porcentual de 58,83% no primeiro turno, Lemos havia sido impugnada pela maioria do TRE. Os juízes entenderam tratar-se de um terceiro mandato do mesmo grupo familiar, em infração ao artigo 14 da Constituição, que versa sobre a chamada inelegibilidade reflexa, e das Leis Complementares 64 e 135.

O caso tem gerado muita controvérsia. Tudo começou em 2016, quando a mãe de Sheila, Irma Lemos, foi eleita vice-prefeita na chapa de Herzem Gusmão. Em 2020, Gusmão foi reeleito, mas a mãe abdicou do posto de vice em favor da filha. A 13 dias de tomar posse do segundo mandato, o prefeito foi acometido por Covid-19 e faleceu três meses depois, sem nunca assumir o cargo. Com o afastamento de Gusmão no fim do primeiro mandato, Irma assumiu o posto em 18 de dezembro de 2020 e coube a ela passar a faixa à filha, em 1º de janeiro, até então em caráter provisório. Em 8 de janeiro de 2021, a Câmara Municipal chegou a realizar uma sessão online para, simbolicamente, dar posse a Gusmão, que acompanhou a solenidade de um leito do hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, onde estava internado. O ato não teve efeito prático, pois em 21 de março o titular morreu e Sheila assumiu a cadeira em definitivo.

“O parágrafo 5º do artigo 14 da Constituição é claro ao dizer que o chefe do Poder Executivo, seja o presidente da República, governador ou prefeito, pode candidatar-se a uma única reeleição para o período subsequente. O parágrafo 7º do mesmo artigo completa e diz que o impedimento se estende aos familiares”, explica Alexandre Pereira de Souza, advogado da chapa A Força Pra Mudar a Conquista, autora da ação que pede a impugnação da candidatura de Lemos e é encabeçada pelo deputado federal Waldenor Pereira, segundo colocado na disputa municipal. Candidato pelo PT, Pereira obteve 26,74% dos votos válidos. Caso o TSE decida realizar uma nova eleição, o petista deverá concorrer novamente.

Para o Tribunal Eleitoral, Sheila e Irma Lemos cumpririam três mandatos consecutivos

“Uma das conquistas da ­Constituição brasileira foi colocar barreiras ­para que não se continuasse o controle do Poder Público por parte das famílias ­poderosas, que passavam os mandatos de pais para filhos. É um princípio republicano a possibilidade da alternância de poder e isso é incompatível com a perpetuação do mandato familiar”, diz Pereira. “Esse assunto da inelegibilidade vem sendo tema de debate público desde março de 2023. As eleições ocorreram com essa pendência jurídica e a própria prefeita tinha consciência do risco que corria ao postular uma nova candidatura que configurava um terceiro mandato familiar. Mas ela preferiu continuar como se nada tivesse acontecido, criando uma sensação de normalidade. Não é isso que estamos vendo, com a Justiça Eleitoral impossibilitada de decretar o vencedor do pleito até a decisão final do TSE.”

A defesa da prefeita alega que Irma Lemos não sucedeu a Gusmão, o que impediria legalmente a reeleição da filha neste ano, mas o substituiu interinamente. Após o resultado do primeiro turno, ­Sheila afirmou ter confiança de que a Justiça Eleitoral vai respeitar o resultado das urnas. Em entrevista a CartaCapital, preferiu não comentar a judicialização do resultado e afirmou ser vítima da oposição por ser mulher, a primeira a governar Vitória da Conquista. “Vencemos os ataques machistas, as acusações infundadas e apresentamos um projeto validado pelo povo nas urnas. Foram quase 60% dos votos e somos muito responsáveis com cada um”, disse, antes de ressaltar a “votação histórica” e a vitória no primeiro turno, um feito nunca visto na cidade desde o estabelecimento de dois turnos.

Para o cientista político Cláudio André de Souza, professor da Universidade da Integração da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), caso o TSE confirme a decisão do TRE baiano e mantenha a impugnação da candidatura, ainda assim, no caso de uma nova eleição, é grande a chance de a candidata da UB fazer um sucessor. “Vitória da Conquista foi governada por muitos anos pelo PT, mas, nas últimas eleições, tem se posicionado mais à direita, numa postura muito crítica ao PT, apesar de o partido ainda ter ali um terço do eleitorado. A prefeita foi reconduzida, independentemente da questão jurídica. Então, uma nova eleição deve mobilizar os partidos do seu grupo político, favorito a ganhar”, avalia. “Apesar de a cidade continuar a eleger deputados estaduais e federais do PT e a esquerda ter uma militância forte, a gente percebe que isso já não tem sido suficiente para ganhar as disputas majoritárias.” •

Publicado na edição n° 1334 de CartaCapital, em 30 de outubro de 2024.

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