Política

assine e leia

De arrepiar os cabelos

A péssima qualidade do serviço funerário privatizado une opositores e governistas pela anulação das concessões

De arrepiar os cabelos
De arrepiar os cabelos
Urubus. Retardar o sepultamento é uma tática suja das empresas para obrigar as famílias a pagar por procedimentos que não seriam necessários, alerta funcionário – Imagem: iStockphoto
Apoie Siga-nos no

Há um ano e meio, o serviço funerário da capital paulista foi privatizado. Desde então, a administração de 22 cemitérios municipais está nas mãos de quatro empresas: Consolare, Cortel, Maya e Velar. À época, o prefeito Ricardo Nunes garantiu que a concessão permitiria revitalizar os espaços e reduzir custos para os usuários. Os resultados apontam para um cenário radicalmente oposto. Avolumam-se as denúncias de má gestão nas necrópoles, cobrança de taxas abusivas, péssimo atendimento, trapaças e até mesmo desaparecimento de corpos.

Diante do quadro catastrófico, ocorreu o improvável na Câmara Municipal: vereadores da oposição e da base governista uniram-se em defesa da caducidade dos contratos com as concessionárias. Após uma oitiva com João Manuel da Costa Neto, atual diretor-presidente da SP Regula, realizada na segunda-feira 11, os parlamentares concluíram não ser possível manter o modelo atual.

A oitiva foi convocada pelo vereador Rubinho Nunes, do União Brasil, presidente da Comissão de Política Urbana da Câmara. Segundo ele, vários vereadores, de diferentes partidos, têm recebido incontáveis denúncias de munícipes. A cobrança de taxas indevidas de famílias pobres, incluídas no Cadastro Único para Programas Sociais, tem sido corriqueira, apesar de elas terem direito a isenção total nas tarifas. Costa Neto admite que as empresas têm cobrado por serviços que deveriam ser gratuitos, mas minimizou o problema, ao argumentar que as pessoas lesadas podem exigir ressarcimento em até 60 dias.

De acordo com o chefe da agência reguladora paulistana, 70% dos boletos emitidos para pessoas inscritas no CadÚnico este ano foram cancelados. Sobre os demais 30%, não soube responder. É possível que beneficiários do Bolsa Família tenham despendido 850 reais, relativos ao “funeral social”, e não conseguiram reembolso, devido a alguma irregularidade ou falta de atualização cadastral.

“É um absurdo. O diretor da SP Regula disse claramente que a pessoa chega nervosa para solicitar o funeral gratuito e ganha um boleto porque falta algum documento. Em vez de ser acolhida, recebe um boleto, para depois talvez conseguir a isenção”, declarou Nunes. A Coordenação Geral de Benefícios da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, responsável pelo registro de famílias de baixa renda no CadÚnico, alega que “o registro não garante acesso imediato a benefícios”, e cabe à agência reguladora avaliar quando o munícipe tem ou não direito à gratuidade do serviço funerário.

Ao contrário do que informa a SP Regula, a falta de atualização cadastral não justifica o cancelamento imediato de benefícios, acrescenta a secretaria, por meio de nota. O CadÚnico, explica a pasta, deve ser atualizado a cada dois anos ou sempre que houver uma mudança nas condições da família, como alteração de endereço, nova composição familiar ou evolução na renda. “Periodicamente, as famílias são informadas da necessidade de atualização dos seus dados por meio de cartas, mensagens de SMS e mensagens do aplicativo do CadÚnico.”

No contrato com as empresas, está prevista a reforma dos cemitérios. Um ano e meio depois, só foi remodelado o Cemitério da Quarta Parada, administrado pela Consolare. Os demais, explica Costa Neto, ainda estão em fase de apresentação de projetos, e as obras nem começaram. As novas instalações devem ser inauguradas apenas em 2027. Nunes considera “inaceitável” a demora para investir: “A caducidade dos contratos é necessária, já deveria ter sido feita. Essas empresas estão recebendo e nem sequer realizaram qualquer benfeitoria. Para mim, isso é falcatrua”.

A vereadora Silvia Ferraro, da Bancada Feminista do PSOL, apresentou outras duas denúncias contra a concessionária Maya. O primeiro caso é relativo à família do senhor Duszimar Pereira de Oliveira, que teve o corpo da filha Camile Lacerda de Oliveira exumado compulsoriamente, sem que ninguém da família tivesse sido informado. Ele só soube quando foi visitar o túmulo e não conseguiu achar os restos mortais no cemitério. “Agora, a empresa tem um prazo de 90 dias para resolver esse imbróglio. Mas veja a gravidade, o pai nem sabia que isso tinha acontecido. Vai passar o Natal e o Ano-Novo sem saber onde está a filha.”

Há relatos de cobranças indevidas ou abusivas, de trapaças nas vendas e até mesmo de restos mortais desaparecidos

O outro caso diz respeito à cobrança abusiva para o sepultamento de um recém-nascido. Ao procurar a Maya, o pai foi informado que o valor do serviço seria 12 mil reais. A vereadora teve acesso à conversa por WhastApp, na qual a empresa não esclarece o motivo da cobrança tão alta nem apresenta um orçamento detalhado. As concessionárias devem seguir uma tabela-padrão de política tarifária, onde o serviço mais caro de sepultamento infantil é a cremação, cujo valor é 2.264,33. Nenhum dos serviços oferecidos custa o que a empresa tentou cobrar dessa família. O valor mais alto da tabela é de R$ 9.989,71, e diz respeito ao traslado internacional de corpo. Por meio de nota, a empresa reconheceu que o atendimento foi inadequado, por não detalhar o que estava sendo cobrado. “No caso específico, como a família não era proprietária de um espaço no cemitério, foi realizada a oferta de venda de um jazigo, cujo preço é mais elevado.”

Para Ferraro, existe consenso na Câmara Municipal, entre os vereadores de oposição e da base governista, sobre a necessidade de uma revisão dos contratos. “Se comprovarmos todas as denúncias que estamos recebendo, fica claro que esse modelo de concessão fracassou. Piorou muito o serviço funerário do município. Eu não estou questionando só as empresas, mas esse modelo como um todo.”

Outra denúncia foi feita pelos jardineiros e empreiteiros autônomos dos cemitérios. Em maio deste ano, CartaCapital denunciou as más condições de trabalho às quais eles estão submetidos. Agora, eles denunciam que muitas empresas têm forçado as famílias a esperar mais tempo pelo corpo do parente falecido para fazer o sepultamento. Dessa forma, é possível forçar a venda de procedimentos para preservar o cadáver que não seriam necessários.

O jardineiro Welerson Sampaio trabalha há vários anos no cemitério de Vila Formosa, na Zona Leste, o maior da América Latina, e garante que tal prática tornou-se rotina. “Agora, dizem que só pode fazer 13 enterros por dia. Antes, fazíamos mais de 30. Eles retardam os sepultamentos para obrigar a família a contratar a tanatopraxia”, denuncia. Trata-se de um procedimento de preparação do corpo para o velório. Além do embalsamamento para preservar o cadáver por mais tempo, a tanatopraxia inclui maquiagem e outros detalhes estéticos. Antes da privatização, esse serviço tinha um preço fixo de 750 reais. Agora, pode variar de 2 mil a 6 mil reais, a depender da empresa contratada. Luciana Helena, do Cemitério do Araçá, confirma o relato do colega. “Eles mentem que não tem jazigo disponível. Na hora do desespero, as famílias aceitam, nem sabem que podem questionar isso.”

Depois de Costa Neto, ainda serão rea­lizadas oitivas com os diretores das empresas Maya e Consolare, as duas concessionárias com maior número de reclamações na SP Regula. Está prevista ainda uma audiência pública, para que os trabalhadores dos cemitérios possam participar, mas a data do encontro ainda não foi anunciada. •

Publicado na edição n° 1337 de CartaCapital, em 20 de novembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘De arrepiar os cabelos’

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo